As condições de saída de Alexandra Reis, que a presidente da TAP reconhece ter sido excecional, foram negociadas pelos advogados e a aprovação da tutela foi pedida e dada, por escrito, pelo secretário de Estado das Infraestruturas. Nas primeiras explicações sobre a compensação de meio milhão de euros paga há quase um ano pela TAP para afastar uma administradora executiva — Alexandra Reis — Christine Ourmières-Widener deixou claro que considera ter condições para se manter na presidência executiva da TAP. “A gestão tem a missão de seguir em frente”, mesmo que nem todas as decisões tenham sido as mais corretas ou perfeitas”, admite. “Temos atuado de boa fé” contratando consultores jurídicos externos para sustentar legalidade das ações e sua comunicação e, por outro lado, pedindo autorização ao acionista público.
Tal como o Governo já tinha feito saber sobre o futuro da presidente da TAP, também a própria remeteu as consequências deste caso para as conclusões das investigações que estão a ser feitas, nomeadamente a avaliação da Inspeção-Geral de Finanças. “Acataremos tudo o que for considerado”, garantiu, sem nunca admitir demitir-se do cargo que algumas pessoas lhe disseram ser o “pior emprego do país”. E deixou sem resposta quem questionou quanto receberia de indemnização numa eventual demissão. Não foi a única pergunta não respondida. No centro do caso continua a dúvida — e que mereceu várias perguntas, que ficaram sem resposta: afinal Alexandra Reis foi demitida ou demitiu-se?
Christine não se demite. “Gestão tem a missão de seguir em frente e temos atuado de boa fé”
Mas, ao longo de três horas de audição, a presidente executiva da TAP defendeu-se das acusações de ilegalidade com a reputação dos escritórios de advogados que propuseram a solução e das acusações de ter decidido sem a autorização da tutela financeira, repetindo que o secretário de Estado das Infraestruturas sabia e até autorizou por escrito. Só falou do secretário de Estado das Infraestruturas, Hugo Mendes, dizendo Christine Ourmières que assumiu que este governante teria coordenado a decisão com o Ministério das Finanças.
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A presidente executiva (CEO) da TAP confirmou divergências com Alexandra Reis que, na versão dada aos deputados, não se mostrou alinhada com a execução do plano de reestruturação. Pouco adiantou sobre as divergências em concreto — sem referir os motivos avançados por alguns media de que os desacordos se prendiam com a mudança da sede e com as contratações feitas pela nova CEO. Perante a insistência falou das reservas que Alexandra Reis teria demonstrado ao aumento da oferta para 2022 superior ao previsto no plano e que seguia as previsões da IATA, e diferenças não especificadas sobre frota, compras (que eram tutela da administradora) e outros negócios.
De quem foi a iniciativa de negociar um acordo?
Foi uma pergunta que não teve uma resposta clara. Christine Ourmières-Widener nunca assumiu que propôs a saída a Alexandra Reis, como a ex-administradora tornou público quando ainda era secretária de Estado do Tesouro. Mas na resposta dada aos ministérios das Finanças e Infraestruturas, a TAP assumiu ter sido sua a iniciativa. Sobre o teor desta negociação, Christine Ourmières-Widener remeteu quase tudo para os assessores jurídicos externos. “Estas transações são muito complexas e essa é a razão pela qual contratamos advogados”.
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Qual foi o envolvimento dos assessores jurídicos e quem eram?
A presidente executiva desvalorizou o envolvimento da administração da TAP na negociação do acordo que resultou no pagamento de meio milhão de euros a Alexandra Reis em fevereiro do ano passado. As duas partes contrataram consultores jurídicos externos para apoiar o processo e “seguimos o seu conselho, passo a passo para ter a certeza de que o que fizemos era legal”. Sobre a identidade destes assessores, Christine confirmou que a TAP contratou o escritório de advogados SRS que tem acompanhado os processos de negociação laborais.
Quem mais sabia desta negociação na TAP?
A CEO explicou, ainda, que o departamento jurídico da TAP foi informado do acordo final, no qual não participou, tendo apenas enviado à Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) o comunicado cujo teor tinha sido negociado entre as partes e no qual é dito que Alexandra Reis renunciou ao cargo na administração da TAP para prosseguir outros desafios profissionais. “Palavra por palavra” foi respeitado o comunicado sugerido pelos consultores externos, justificou.
O presidente não executivo, Manuel Beja, que tem como função o contacto com o acionista, foi informado pela presidente executiva e pelo secretário de Estado das Infraestruturas da proposta inicial — na qual Alexandra Reis pediu 1,5 milhões de euros. Não ficou claro se a decisão foi validada pelo conselho de administração ou pela comissão executiva, tendo a gestora referido que a compensação não tinha de ser aprovada pela comissão de vencimentos.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre a audição da CEO da TAP no Parlamento.
E no Governo quem sabia?
De acordo com o testemunho de Christine Ourmières-Widener, o interlocutor privilegiado (se não mesmo o único, segundo o que apontou) foi o secretário de Estado das Infraestruturas, Hugo Mendes, que deu a autorização por escrito ao pagamento da compensação de 500 mil euros a Alexandra Reis. A gestora adiantou ainda ter entendido que “haveria uma coordenação (do Ministério das Infraestruturas) com as Finanças”, mas reconhece que não contactou com a tutela financeira da TAP ( então ocupada por João Leão e pelo secretário de Estado, Miguel Cruz, que já afirmaram desconhecer a indemnização).
Com a atual equipa das Finanças, os contactos com João Nuno Mendes, o secretário de Estado que ficou com a tutela da TAP a partir de março (e que já lá estava quando a negociação foi fechada), estiveram focados nas questões do financiamento da transportadora. Com Fernando Medina, a interação foi mais reduzida, tendo Christine referido que o ministro das Finanças a aconselharia a dizer a verdade nesta audição.
A presidente executiva da TAP nunca mencionou, em três horas, Pedro Nuno Santos, nem foi questionada pelos deputados sobre o grau de conhecimento e envolvimento do ex-ministro das Infraestruturas que se demitiu por causa deste caso logo a seguir ao secretário de Estado Hugo Mendes. No comunicado da demissão, Pedro Nuno Santos diz que só “agora” [comunicado a 29 de dezembro] tinha tido “conhecimento dos termos do acordo”, mas também acrescentava que o secretário de Estado das Infraestruturas, “dentro da respetiva delegação de competências, não viu incompatibilidades entre o mandato inicial dado ao Conselho de Administração da TAP e a solução encontrada” para o caso de Alexandra Reis. Dizia também que tinha sido “dada autorização para se proceder à rescisão contratual com a Eng.ª Alexandra Reis”.
Leia aqui na íntegra o comunicado da demissão de Pedro Nuno Santos
A legalidade e a não aplicação do estatuto de gestor público
Christine Ourmières-Widener não explicou como se chegou ao valor dos 500 mil euros (um terço do montante inicialmente pedido por Alexandra Reis), remetendo sempre a solução para os escritórios de advogados que assessoraram as partes. Mas sinalizou que não terá sido discutida a aplicação do estatuto do gestor público. Hoje, a presidente executiva da TAP não tem dúvidas de que os administradores são gestores públicos, mas reconhece que só após o caso da saída de Alexandra Reis terá percebido as consequências desse estatuto. E admitiu mesmo que essa dimensão não terá sido totalmente considerada na estrutura do acordo negociado com a ex-administradora cujo valor ultrapassa o limite de 12 meses de salário estabelecido no estatuto do gestor público em caso de demissão por conveniência (mas por iniciativa de quem nomeia — o acionista Estado — e não do conselho de administração).
As consequências legais e as outras
A presidente executiva da TAP garantiu que a empresa irá cumprir todas as determinações e correções que resultarem da auditoria da Inspeção-Geral de Finanças, o que, no limite, poderá levar a empresa a pedir a devolução da indemnização paga à ex-administradora (se a sua atribuição vier a ser considerada ilegal) e até a processar os advogados que propuseram essa solução. Hipótese que não exclui.
Christine Ourmières-Widener reconheceu ainda os danos que este caso está a ter para a empresa e para os seus funcionários. Os “ataques diários” não estão a ajudar na recuperação da TAP e há pessoas que entram no seu escritório a chorar por verem o seu nome nos jornais. “Não é fácil”… mas “mantemos o foco e a motivação”, porque “temos de assegurar que a TAP é sustentável e rentável, porque se não assegurarmos isso, tudo o que estamos a conquistar não vai ter um resultado positivo”. E parece que tudo “o que é positivo que estamos a fazer pela empresa é esquecido”. Foi este lado positivo — que nada interessava aos deputados nesta audição — que a presidente executiva da TAP focou na sua intervenção inicial, repetindo a informação dada um dia antes aos colaboradores: as receitas mais altas da história em 2022 e um alívio de 48 milhões de euros nos cortes salariais de 2022 e 2023.
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As perguntas feitas “20 vezes” e as respostas que ficaram por dar
As três horas e três rondas de questões a que foi sujeita não foram suficientes para que Christine Ourmières-Widener esclarecesse todas as dúvidas dos deputados. Por não querer ou não saber, deixou pontas soltas e chegou a levar os deputados à exasperação com uma questão concreta, que segundo Rui Tavares terá sido colocada “mais de 20 vezes”. Afinal, Alexandra Reis demitiu-se ou foi demitida pela administração da TAP?
A CEO não tirou a dúvida, revelando apenas que a “única razão” para a saída da gestora foi um “desalinhamento na execução do plano de reestruturação”, e que, na equipa executiva, “é crucial” ter pessoas alinhadas. No comunicado enviado à CMVM, que entretanto foi corrigido a mando do supervisor, a TAP referia uma “renúncia” ao cargo por parte de Alexandra Reis. Nas respostas enviadas aos ministérios das Infraestruturas e Finanças, foi dito claramente que “por iniciativa da TAP foi iniciado processo negocial com Alexandra Reis no sentido de ser consensualizada por acordo a cessação imediata de todos os vínculos contratuais existentes entre Alexandra Reis e todas as empresas do Grupo TAP”.
Já a própria Alexandra Reis, à Lusa, afirmou que o acordo de cessação de funções “como administradora das empresas do universo TAP” e a revogação do seu “contrato de trabalho com a TAP S.A., foram “ambas solicitadas pela TAP”. O que parecia claro, afinal não está. Deverá ser a auditoria da IGF, e a comissão de inquérito, a dar a resposta que falta.
Outro dos buracos deixados abertos pela CEO da TAP diz respeito às indemnizações recebidas por outros gestores. Ourmières-Widener afirmou categoricamente que não foi paga qualquer quantia a Diogo Lacerda Machado, administrador não executivo da anterior gestão. Não deixou a mesma certeza em relação a outros, como Antonoaldo Neves, sobre quem deu a entender ter sido paga uma compensação. Porém, a TAP sempre afirmou que Antonoaldo só recebeu os salários que lhe seriam devidos até ao final do ano em que saiu, 2021, tendo recebido, de acordo com a companhia, o equivalente a três meses de vencimentos, para evitar uma indemnização. Sobre o pagamento de outra indemnização, a CEO nada disse.
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Outro dos temas que deverá saltar para a comissão de inquérito será o bónus a que Christine Ourmières-Widener terá direito se cumprir com sucesso o plano de reestruturação da companhia. A CEO confirmou que existirá, mas não quis revelar o valor. O montante da sua própria indemnização, a que supostamente terá direito se for afastada do cargo, também ficou por saber.
Também não se sabe, por não ser do conhecimento da própria CEO, se existem outras cláusulas nos contratos de membros do Conselho de Administração que tornem possível o surgimento de “outras Alexandras Reis”, como apelidou o deputado Bruno Dias.
E na lista de perguntas que ficaram no ar restou também esclarecer qual é, afinal, a consultora que está a assessorar a TAP no processo de privatização. O Jornal Económico adiantou que será a Evercore, a mesma empresa que assessorou a venda da Flybe, onde Christine Ourmières-Widener trabalhou, e que acabou por falir, mas a CEO não revelou nomes. Deixou apenas a garantia de que o processo de escolha foi longo e que foram consultados os maiores bancos de investimento do mundo. A escolha foi validada pela Comissão Executiva e o objetivo era “ter uma consultora independente”.
Não levará muito tempo até que Christine Ourmières-Widener seja novamente questionada pelos deputados. A comissão de inquérito à TAP vai ser discutida dia 1 de fevereiro no parlamento, votada dia 3 e deverá tomar posse a 8 de fevereiro.