Índice
Índice
Um ano e meio depois de o procurador Orlando Figueira ser condenado por ter sido corrompido pelo ex-vice-Presidente angolano Manuel Vicente, o seu recurso da decisão continua por apreciar num tribunal superior. O magistrado diz que quer que o processo corra rápido e que tem “a vida suspensa” por nunca mais ver um ponto final no caso. No entanto, ele próprio contribuiu para isso: é que, na mesma altura em que entregou o recurso de 1.700 páginas no tribunal, Figueira voltou a integrar o Ministério Público, provocando assim um conflito de competências entre tribunais que terá agora de ser resolvido pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Segundo o Estatuto do Ministério Público, o tribunal competente para investigar, instruir ou julgar um processo cujo suspeito seja procurador deve ser sempre o da categoria superior aquele em que ele se encontra colocado. Ora, quando foi investigado e julgado, Orlando Figueira estava em licença sem vencimento de longa duração (desde setembro de 2012) e até se tinha inscrito na Ordem dos Advogados, depois de anos a trabalhar no Departamento Central de Investigação e Ação Penal — onde terá, alegadamente a troco de dinheiro, arquivado processos em que Manuel Vicente estava a ser investigado.
Assim, Orlando Figueira foi julgado num tribunal comum de primeira instância, como qualquer outro cidadão. Com ele foram também julgados o advogado Paulo Blanco e Armindo Pires, o representante legal em Portugal de Manuel Vicente. Os factos contra Manuel Vicente foram separados e entregues a Angola para investigar, não tendo até ao momento resultado em qualquer acusação, ao contrário do que aconteceu em Portugal.
Armindo Pires foi absolvido, o magistrado Orlando Figueira foi condenado a uma pena única efetiva de seis anos e oito meses de cadeia pelos crimes de corrupção passiva, branqueamento, falsificação de documento e violação do segredo de justiça e proibição de voltar à magistratura durante cinco anos. Já o advogado Paulo Blanco foi considerado corresponsável (embora por corrupção ativa) e condenado a uma pena suspensa única de quatro anos e quatro meses de prisão, sem necessidade de deixar o exercício da profissão.
Fizz. Magistrado condenado a pena de cadeia por ter sido subornado por Manuel Vicente
O recurso de Orlando Figueira foi entregue no mesmo tribunal onde foi julgado, no Campus de Justiça, a 28 de fevereiro de 2019. Em 1.729 páginas, um dos argumentos que usou foi o da nulidade do julgamento. Segundo a defesa, uma das juízas que integrou o coletivo de juízes que o julgou tinha participado numa busca durante a investigação, logo tinha conhecimento do caso e não seria imparcial.
Cerca de um mês depois Orlando Figueira acabaria por anunciar no processo que tinha voltado a ingressar no Ministério Público e que tinha mesmo sido colocado num tribunal — embora suspenso de funções até que o processo-crime transitasse em julgado, ou seja, se tornasse definitivo. Razão: dinheiro. Só assim, regressando ao Ministério Público, podia receber um salário, porque até então vivia com 1.550 euros por mês retirados do valor arrestado na sequência do processo — o que o tribunal autorizou. E com as ajudas da irmã. “Uma situação de indigência e miséria”, descreve a sua advogada.
“Para evitar transformar-se num sem-abrigo, fez cessar a sua licença sem vencimento de longa duração e, desde então, tem vindo a receber o vencimento mensal”, lê-se no recurso da defesa a que o Observador teve acesso.
No requerimento que então entregou no tribunal, a defesa do procurador lembrava ainda que agora, sendo magistrado, o juiz de primeira instância não podia mais fazer qualquer intervenção naquele processo. Teria sempre que ser alguém de um tribunal superior, neste caso o Tribunal da Relação de Lisboa.
O juiz acatou e enviou o caso para o Tribunal da Relação, explicando que não podia fazer subir o recurso da decisão final ao tribunal superior porque nada mais podia fazer no processo, uma vez que estava em causa um magistrado.
Seis meses depois, a juíza desembargadora, segundo os documentos consultados pelo Observador, declarou, por seu turno, ser igualmente incompetente para prosseguir com o caso, considerando que cabia ao juiz de primeira instância fazer subir todos os recursos relacionados com o caso. Só depois poderia apreciá-los.
Orlando Figueira não ficou quieto e mal soube deste despacho recorreu, argumentando sempre que “tem toda a sua vida suspensa” e que “tem a máxima urgência na resolução deste processo”.
O caso está agora nas mãos do Supremo Tribunal de Justiça, que irá decidir se Figueira ganhou ou não o seu direito a ter tratamento especial ao regressar ao Ministério Público.
Quais os argumentos de Orlando Figueira para ter tratamento especial
Segundo a defesa de Orlando Figueira, de acordo com o estatuto do Ministério Público Figueira tem direito ao foro especial — uma vez que neste momento mantém a categoria de magistrado, podendo ser colocado em tribunais, como já foi, recebendo salário e contando o tempo de colocação, mesmo quando se trata de uma suspensão, para efeitos de antiguidade.
O arguido diz que o Conselho Superior do Ministério Público decidiu, a seu pedido, admiti-lo de volta a 1 de fevereiro de 2019 — ainda antes de entregar o recurso no tribunal da primeira instância, e que agora anda de mãos em mãos sem que ninguém consiga perceber quem o deve analisar. Logo nessa altura foi colocado na área cível de Sintra e pouco depois no Tribunal de Execução de Penas em Ponta Delgada. Para o magistrado, a “dignidade e o melindre” das funções de magistrado fazem com que goze de “foro especial”. Uma garantia que o próprio compara às garantias dadas aos magistrados doentes ou em licença paternal.
Na verdade, como diz a certa altura no seu recurso, a esperança de Figueira é que o tribunal considere nulo o seu julgamento — pelos argumentos que apresenta — e que este seja repetido, mas no tribunal superior.
Juízes não se entendem. Qual é a posição do Ministério Público?
A posição do Ministério Público é que Orlando Figueira não tem razão e que deve ser a primeira instância a analisar todos os recursos que entregou e a decidir se estes devem ou não subir à Relação. Ainda assim, havendo um conflito, deverá ser o Supremo a resolver se é a primeira instância, onde foi julgado, que deve enviar o recurso de Figueira para o Tribunal da Relação apreciar ou se, eventualmente, é o Tribunal da Relação, que teria, assim, que fazer subir o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
O Ministério Público considera que, para perceber se há foro especial, deve ter-se em conta o “momento processualmente relevante”. Ou seja, no momento em que foi fixado qual o tribunal competente para o processo, é este que fica. Mesmo que a situação de Orlando Figueira mudasse nessa altura. “Se assim não fosse, poderíamos estar perante situações em que o arguido poderia, eventualmente, ter possibilidade de dificultar ou mesmo impedir o seu julgamento ao fazer saltitar a competência de um tribunal para outro”, lê-se na posição do Ministério Público do Tribunal da Relação de Lisboa. “Seria inaceitável, inconstitucional e absurdo”, acrescenta.
O Ministério Público acusa mesmo Orlando Figueira de se colocar “à sombra de dois estatutos, convocando, conforme as circunstâncias, aquele que melhor satisfaz as suas pretensões”. Quando, na verdade, na altura em que o processo nasceu ele era advogado.
Já a a 22 de junho de 2016 Orlando Figueira tinha suscitado uma questão semelhante, alegando que o caso devia estar num tribunal superior àquele em que fora colocado. Isto porque, argumentou, os factos de que vinha acusado — como o arquivamento de processos que envolviam Manuel Vicente — correspondiam a uma altura em que era, sim, magistrado do DCIAP.
O que diz Paulo Blanco, que também tem que esperar
Contactado pelo Observador sobre como esta questão da competência o afetava, o advogado Paulo Blanco disse que só responderia por e-mail. Ao contrário de Figueira, o advogado não foi condenado com a suspensão de funções.”Agi sempre como advogado e segundo as regras da deontologia profissional, o que foi demonstrado no julgamento e conduziu à minha absolvição do pedido do Ministério Público de suspensão de advogar. Sublinho, portanto, que fui absolvido de um dos pedidos, absolvição da qual o Ministério Público não recorreu, pelo que continuo diariamente a exercer advocacia e morrerei advogado”, disse.
“No mais, a decisão sob recurso, para além da evidente denegação de justiça em meu prejuízo e chocante benefício de terceiros, julgou incorretamente vários pontos essenciais da matéria de facto, o que conduziu a uma inevitável errada aplicação da lei que, confio, será corrigida no recurso pendente. O processo ainda em curso é um inconveniente inesperado na carreira profissional de advogado que abracei em 1989 e exerço há 31 anos, mas nenhuma carreira existe sem eles. Estou mais preocupado com o meu carácter, em escrever apenas palavras e frases que não podem magoar ninguém, do que com a minha reputação, pelo que, com esperança na minha total absolvição, não farei por ora qualquer outro comentário”, acrescentou.