O ator Nuno Lopes será julgado por um tribunal de júri se o caso for a julgamento, num processo com cerca de 200 potenciais testemunhas. Passou um ano desde que Anna Martemucci, argumentista e profissional de realização norte-americana que no meio dá pelo nome de A.M. Lukas, acusou o ator de a ter drogado e violado em 2006. O Observador consultou documentos do processo, que revelam que o ator recusou uma conferência entre as partes a 1 de novembro.
É quase certo que o julgamento, ainda sem data prevista, aconteça com um tribunal de júri. O pedido foi feito pelo ator português à justiça de Nova Iorque, depois de também A.M. Lukas ter avançado com o mesmo requerimento quando apresentou uma queixa por violação, em novembro do ano passado. No estado de Nova Iorque é possível reverter esse pedido, no entanto, depende do momento do processo: “Não é depois de o júri ter sido constituído que o réu pode desfazer o requerimento”, explica ao Observador Ana Cavalieri (especialista em Direitos Humanos e Direitos das Mulheres, viveu em Nova Iorque durante 10 anos, conhecedora da justiça norte-americana). No programa Onde Pára o Caso, da Rádio Observador, a advogada diz que acredita que o ator pode ter interesse em prosseguir com esse modelo, já que nos Estados Unidos a decisão do tribunal de júri num processo cível não tem de ser unânime. Uma vez que tem de ser a autora da queixa a provar o alegado crime — fica com o ónus da prova —, basta que dois dos seis jurados decidam pela defesa de Nuno Lopes para que o ator seja absolvido, esclarece a advogada. O caso, divulgado em novembro do ano passado, está neste momento em fase de troca de provas.
Segundo a documentação remetida pelos advogados ao tribunal, a que o Observador teve acesso, o processo arrastou-se durante mais de meio ano só para que o ator português fosse “oficialmente notificado”. Numa primeira tentativa de notificação, a morada de Nuno Lopes em Portugal não foi encontrada. Houve ainda uma segunda tentativa, que o ator recusou receber por haver um erro nos documentos que indicava que ele era um cidadão brasileiro.
Os mesmos documentos mostram que há 192 potenciais testemunhas que podem ser relevantes para este processo apontadas por Lukas. Entre essas pessoas, Nuno Lopes identificou uma como relevante para o processo — que, segundo o documento, vive na Noruega.
Episódio remonta a festival de cinema em 2006
A.M. Lukas, que se identifica como pessoa não-binária e usa os pronomes “them/they”, diz ter conhecido Nuno Lopes a 28 de abril de 2006, em Nova Iorque, durante o Festival de Cinema de Tribeca — que este ano teve uma edição portuguesa. O encontro terá acontecido na festa de estreia do filme Journey to the End of the Night, de Eric Eason. Lukas teria 24 anos e Lopes 27. Nessa noite em que se terão cruzado pela primeira vez, Lukas afirma ter apenas consumido um cocktail e alguns copos de vinho antes de ter conhecido o ator português, hoje um dos mais conhecidos e respeitados da sua geração, que na altura estudava em Nova Iorque.
Na queixa, A.M. Lukas relata que nessa noite, depois de tomar as bebidas, começou a sentir o corpo “estranhamente pesado” e a cabeça “a flutuar”, acabando por terminar a noite no apartamento do ator. No dia seguinte, Lukas — que à época trabalhava em lojas e num bar — foi trabalhar, mas era incapaz de se lembrar da noite anterior. No entanto, nesse mesmo dia, desconfiou do que se tinha passado naquela madrugada e terá ido ao hospital onde pediu para lhe ser feito um exame por suspeitar ter sido vítima de uma violação. Foi nesse momento que ligou a Nuno Lopes questionando se tinham tido relações sexuais sem contraceção. A resposta, alega, foi afirmativa. A.M. Lukas relata, na queixa, “não ter tido sexo consentido com o sr. Lopes” e diz ter ido ao hospital Long Island College ao final do dia 29 de abril de 2006. Dias depois, os dois voltaram a encontrar-se, a pedido de A.M. Lukas, num café. Nuno Lopes voltou a ser questionado sobre os detalhes da noite que passaram juntos e reiterou que os dois se envolveram sexualmente, mas negou que tenha havido violação. Garantiu, pelo contrário, que a relação foi consentida.
Passaram 17 anos até que Lukas decidisse dar entrada com um processo judicial contra o ator português. No dia 20 de novembro de 2023, três dias antes do prazo de prescrição, Lukas interpôs um processo num tribunal de Nova Iorque acusando Lopes de a ter “drogado e violado” em abril de 2006. A notícia, avançada pelo tabloide britânico Daily Mail, e originando réplicas na imprensa portuguesa e internacional, provocou uma resposta imediata do ator, que refutou “todas as acusações” e disse estar “ciente das consequências gravíssimas que este caso representa”.
Em menos de 24 horas, o processo entrou em fase de litigação mediática, com os advogados de ambos a desmentirem-se mutuamente quanto a uma peça central da acusação: se foi exigido ao ator português dinheiro em troca de um acordo sigiloso. Michael J. Willemin, da firma Wigdor, que representa Lukas, disse então ao Observador que “Lukas nunca propôs qualquer quantia monetária para resolver este assunto e também nunca propôs manter nada confidencial em troca de dinheiro”. A informação era refutada pelo ator português, que, através da sua advogada, Rute Oliveira Serôdio, garantia que lhe fora enviado um e-mail a 6 de novembro a informar que “após ter dito que durante o fim de semana revelaria a quantia que a cliente [A. M. Lukas] pretendia receber, que a Sra. Lukas pretendia que fosse o Nuno Lopes a avançar com uma proposta de quantia monetária”. A advogada de Lopes assegura que a defesa de Lukas tinha em vista “uma quantia monetária”. “Confirmo que foi apresentada como uma condição para evitar que a ação fosse interposta”, lê-se nas declarações enviadas pela advogada ao Observador na época. “Ficou muito claro para todos que a ação seria tornada pública se o Nuno Lopes não indemnizasse a Sra. Lukas, e que publicidade seria dada à mesma, como foi”, continua o mesmo texto.
Desde então, o caso tem estado longe dos holofotes mediáticos. Em fevereiro, o ator participou na série The New Look, da Apple TV+, na qual vestiu a pele do costureiro espanhol Cristóbal Balenciaga. Só em agosto o caso voltou a ser referido, com a notícia de que o ator iria protagonizar a próxima novela da TVI, A Fazenda, que se estreou esta segunda-feira.
Notificações adiadas e registos perdidos
Têm sido longos meses para avançar no processo. A viver atualmente em Portugal, foram precisos dois meses para que a morada de Nuno Lopes fosse encontrada. Até então fora pedido, por duas vezes, o adiamento de sessões previstas entre as defesas, uma vez que os dois advogados do ator se recusaram a receber as notificações em seu nome, e a morada onde vive, em Lisboa, era desconhecida pelas autoridades.
[Ouça aqui a estreia de Onde Pára o Caso, sobre o processo de Nuno Lopes]
De acordo com documentação do processo a que o Observador teve acesso, só em junho deste ano Nuno Lopes foi oficialmente notificado, depois de os advogados de A.M. Lukas terem recorrido à Convenção de Haia para que toda a documentação fosse enviada para Portugal devidamente traduzida.
Entretanto, foi pedida, em nome do ator, uma conferência para o passado dia 2 de agosto, entre os advogados. Como resultado dessa sessão surgiu uma resposta por escrito de Nuno Lopes sobre as acusações de que é alvo. O ator voltou a negar que tenha violado ou colocado drogas na bebida de A.M. Lukas, admitindo, somente, que os dois tiveram relações sexuais na noite em que se conheceram. Assume também que chamou um táxi à guionista na manhã seguinte, pagou o transporte e entregou-lhe um cartão com o número de telefone. Horas depois, confirma o ator, A.M. Lukas ligou-lhe a questionar o que tinha acontecido entre os dois durante a madrugada, alegando que estava no hospital. Nuno Lopes confirma ainda que se encontrou com a guionista num café, no dia 1 de maio de 2006, a pedido de Lukas.
Nesta resposta por escrito, no passado mês de agosto, Nuno Lopes acrescenta que A.M. Lukas não tem qualquer direito a indemnização (o valor ainda não foi sequer definido) e reclama que a queixa não tem efeito, alegando que não foram demonstrados quaisquer danos sofridos. O ator pede que a queixa seja considerada nula e que o juiz interceda a seu favor e contra a autora da queixa, considerando ainda o pagamento de uma compensação pelas despesas decorrentes do processo. Neste ofício, Nuno Lopes repete 54 vezes que não tem conhecimento suficiente sobre detalhes apontados pela guionista na queixa para os confirmar ou desmentir. Dez dias depois, a 12 de agosto, uma nova carta revela que Nuno Lopes pediu para ser julgado por um tribunal de júri.
Desde então, a troca de informação entre as duas partes foi acelerada. Numa carta conjunta dirigida ao juiz, pode ler-se que a queixosa está a “recolher e consultar registos eletrónicos” e continua a tentar providenciar toda a informação médica relevante à defesa”. Apesar das 1.500 páginas apresentadas que contêm informação sobre tratamentos relacionados com saúde mental em clínicas afiliadas à New York State Mental Health, outros estabelecimentos mencionados pela alegada vítima já fecharam. Houve ainda quem se tenha negado a entregar os registos, como foi o caso de Roberta Samet (uma assistente social clínica), que depois de alguma insistência acabou por alegar que a documentação tinha sido destruída na sequência de uma inundação na cave das instalações onde prestava serviço, segundo os documentos consultados.
Um pré-julgamento com falta de respostas
Há pelo menos dois pontos ainda por esclarecer que podem ser determinantes para o desfecho do caso. Lukas diz ter ido ao hospital Long Island College na noite seguinte ao alegado abuso, onde terá sido usado um kit de violação para apurar se teria existido crime. Diz-se na queixa que a alegada vítima reportou ter sido alvo de violação à polícia. Como explica a advogada Ana Cavalieri ao Observador, “a partir do momento em que a NYPD recebe uma queixa, tem de investigar”, o que pode levar, eventualmente, à abertura de um processo no District Attorney — o equivalente ao Ministério Público, em Portugal — caso se justifique, e posteriormente à convicção, ou não, de que o réu pode ser culpado. Segundo a documentação remetida pelos advogados ao tribunal, disponibilizada pela justiça de Nova Iorque, desconhece-se o desfecho desse alegado inquérito e a resposta da polícia ainda está por chegar às mãos do ator.
O processo está numa fase pré-julgamento, ou “discovery”, nos Estados Unidos, como confirma ao Observador Tess Neudeck, do escritório de advogados contratado por A.M. Lukas, que disse não ter “informação nova para partilhar de momento”. Trata-se de uma fase processual em que, antes do julgamento, “todas as partes devem estar munidas do máximo de informação possível até para que os dois lados possam avaliar se vale a pena ir a julgamento ou chegar a um acordo extrajudicial”, clarifica Ana Cavalieri. Ao longo deste período, as defesas de Lukas e Nuno Lopes devem responder a solicitações oficiais para produção de documentos, a menos que seja apresentada uma objeção ao tribunal — que foi o caso de Nuno Lopes. De acordo com um documento enviado a 29 de outubro, o ator opôs-se a uma conferência prevista entre ambas as partes para 1 de novembro. “Os advogados das partes planeavam encontrar-se e conferenciar a 1 de novembro sobre o âmbito de algumas das questões de descoberta da queixosa, à qual o Réu se opôs.”
O processo cível interposto no tribunal de Nova Iorque pela alegada vítima tem como objetivo o pagamento de uma indemnização por parte de Nuno Lopes, para ressarcir A.M. Lukas por danos que alega ter sofrido na sequência deste caso, tendo sido posteriormente diagnosticada com bipolaridade e depressão, alegadamente como resultado da noite que passou com o ator.
Mas o montante da indemnização ainda não foi referido por nenhuma das partes. No entanto, neste tipo de processos, deve ser considerada a base compensatória, mas não só: o valor a pagar pelo réu — se for essa a decisão — deve também ter em conta o fator de punição pelo ato praticado, numa tentativa de dissuadir futuros crimes. Segundo Ana Cavalieri, “é por isso que muitas vezes são definidos montantes avultados que o réu terá de pagar”.
Uma mudança na lei que abriu a porta a vários processos mediáticos
O crime de violação não prescreve nos Estados Unidos? Sim, só que há um “mas”. A.M. Lukas conseguiu entrar com este processo 17 anos depois na sequência de uma lei aprovada no estado de Nova Iorque, em 2022, que permite a vítimas de abuso sexual entrem com processos em tribunal [Adult Survivor Act] mesmo depois da prescrição: “As vítimas têm mais um ano para abrir um processo cível”, explica Cavalieri. É a mesma lei que permitiu que Donald Trump fosse acusado no caso Jean Caroll e que fosse feita uma denúncia contra a estrela norte-americana do hip-hop Sean Combs. Já em 2019, o prazo de prescrição do crime de abuso sexual tinha sido prolongado para 20 anos.
O Observador contactou o escritório de advogados, Wigdor, que representa A.M. Lukas, assim como Thomas Dollar da Clayman Rosenberg Kirshner & Linder, em representação de Nuno Lopes nos Estados Unidos. Nenhum deles quis adiantar detalhes sobre o processo. A.M. Lukas não respondeu e os representantes de Nuno Lopes em Portugal recusaram prestar declarações. Advogados de ambos os escritórios estiveram envolvidos na acusação de Julia Ormond contra Harvey Weinstein, de acordo com uma notícia publicada em outubro de 2023 na Rolling Stone.