Os especialistas e técnicos que trabalham com o Governo preveem que, em janeiro — mês das eleições legislativas — possam existir mais de 600 mil isolados em Portugal. O voto antecipado em confinamento no domicílio e lares está novamente em vigor, mas a dimensão do número de isolados pode levar a problemas logísticos que impeçam milhares de pessoas de votar. Mais: quem ficar isolado nos 7 dias anteriores à eleição não tem mesmo forma de votar (o que aconteceu a 135 mil nas últimas presidenciais). Os especialistas alertam que este fator pode ter um impacto no resultado eleitoral (até no vencedor) e colocam em cima da mesa a possibilidade de ser necessário adiar eleições. A CNE, contactada pelo Observador, remete para o Ministério da Administração Interna, que ainda não revelou como pretende responder a este problema que se agravou com a variante Ómicron.
A secretaria-geral do Ministério Administração Interna — que gere o processo eleitoral — enfrenta outro problema grave: a lei eleitoral já não pode ser alterada para, por exemplo, as eleições ocorrem em mais do que um dia ou criar horários de votação só para isolados, como acontece noutros países. O vice-presidente da bancada do PS e um dos subscritores da proposta que o Parlamento aprovou para permitir o voto em confinamento explica ao Observador que a lei já não pode ser alterada por duas razões: “Porque a Assembleia da República está dissolvida e porque a Lei Eleitoral não pode ser alterada depois de serem convocadas eleições, porque seria mudar as regras a meio do jogo”.
Pedro Delgado Alves diz que as autoridades que gerem o processo têm de perceber primeiro a “evolução da situação”, a “escala e a dimensão” do problema, para depois utilizarem os “instrumentos que têm, que são os que já estão previstos na lei”. Embora o deputado do PS diga que ainda “é cedo” para perceber a dimensão do problema, admite que possam existir problemas de “mobilização de recursos”. O vice-presidente da bancada do PS diz que “as peças do xadrez existem e vão existir equipas organizadas pelas autarquias locais, mas o problema é que os membros dessas equipas também podem estar potencialmente confinados porque a variante Ómicron não escolhe quem infeta e, como se vê, bate à porta de toda a gente”.
O que foi feito para prevenir a situação? Pouco
Depois de o Parlamento ter chumbado o Orçamento do Estado, o PS demorou apenas seis dias a dar entrada com uma proposta que prorrogasse o regime excecional de exercício do direito de voto. A principal excecionalidade que a lei permite é que os eleitores isolados, fazendo prova dessa condição, possam votar antecipadamente em casa ou, no caso dos idosos em instituições, num lar ou residência.
A 12 de novembro, o Parlamento aprovaria esse voto confinado, mas sem conseguir corrigir um (grande) problema detetado nas autárquicas e acima de tudo nas presidenciais, que decorreram também em janeiro num mês de inverno em que se sentem mais os efeitos da pandemia. A exceção na lei em vigor permite que os isolados votem antecipadamente, mas, para isso têm de se registar numa plataforma criada para o efeito pelo MAI “a partir do 10.º e até ao final do 7.º dias anteriores ao do sufrágio”. Para estarem elegíveis para votarem desta forma, os eleitores têm de ter tido o confinamento decretado pelas autoridades de saúde.
Este sistema tem um problema de criar obstáculos ao voto e de não contemplar todas as pessoas a quem seja decretado o isolamento entre o 7º dia anterior ao sufrágio e o dia das eleições. Nas presidenciais deste ano isto retirou o direito de votar a 130 mil pessoas, mas os números podem agora ser muito superiores. O legislador encolhe os ombros, dizendo-se impotente. “Para essas pessoas não há mesmo alternativa. Há limitações logísticas. Estas medidas que minimizam, mas infelizmente não conseguem resolver tudo. Estamos em situação de crise. É como se existisse uma situação de calamidade natural e as pessoas de determinada zona ficassem impedidas de votar”, diz Pedro Delgado Alves.
Apesar de ter prolongado a lei que vigorou nas autárquicas e nas presidenciais — como a situação pandémica estava mais controlada nas duas primeiras semanas de novembro — o Parlamento decidiu cortar a hora extra de votação que estava prevista na lei para permitir menos concentração de pessoas. Se nos dois atos eleitorais em pandemia (presidenciais e autárquicas), os portugueses puderam votar até às 20h00, para as legislativas foi revogado o artigo que o previa, vigorando o regime geral: 19h00.
Voto antecipado em mobilidade pode ser solução?
Há um outro instrumento que foi utilizado nas Presidenciais, que é mais preventivo, e que pode ajudar a minorar o impacto desta situação: o voto antecipado em mobilidade. Em janeiro, 246.880 eleitores inscreveram-se para votar nesta modalidade e 198 mil acabaram mesmo por votar na eleição para Presidente da República no dia 17 de janeiro (as eleições foram a 24 de janeiro). Ainda assim, é apenas uma pequena parte do universo eleitoral
Esta é uma alternativa para quem não quiser correr o risco de se infetar até ao dia das eleições, mas é um sistema, ainda assim, mais trabalhoso do que simplesmente ir à urna de voto com o cartão do cidadão e uma caneta. Envolve inscrição numa plataforma, deslocação a um local de voto e, já no momento de colocar a cruz, a colocação do boletim de voto num segundo boletim. Quem se inscrever e falhar este voto pode sempre deslocar-se às urnas para a votação no dia “normal”.
Pedro Delgado Alves diz que “o processo tem melhorado” e lembra que nas primeiras Europeias em que o modelo foi testado houve “longas filas” que depois se foram esbatendo nas últimas eleições. O vice-presidente da bancada do PS está confiante que se podem, neste caso, prevenir falhas porque “sabe-se antecipadamente quantas pessoas vão votar, o que permite adaptar os locais de voto”.
Isolados podem ter impacto no vencedor e o risco de a eleição ser uma “farsa”
Em 2015, nas últimas eleições legislativas em que as sondagens davam os dois principais partidos (PS e PSD) tão renhidos como atualmente (nalguns casos dentro da margem de erro), a coligação PàF (PSD e CDS) acabou por vencer o escrutínio por 335 mil votos. Ou seja: a diferença que definiu quem ficou em primeiro nesse ano é inferior ao número expectável de isolados (600 mil).
O politólogo Jorge Fernandes diz que “se chegássemos a uma situação em que 600 mil pessoas por questões de saúde não teriam possibilidade de ir votar, não lhes sendo dada qualquer alternativa, estaríamos perante uma farsa eleitoral”. E adverte: “Não se pode tirar 600 mil eleitores de uma votação”.
O investigador auxiliar no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa diz que, caso acontecesse uma situação similar, “seria avisado adiar eleições“, embora admita que essa é sempre “uma decisão difícil de tomar”. A resposta a esta situação é, admite o politólogo, “muito delicada” porque “não há uma solução que seja boa”.
Outro politólogo Luís Humberto Teixeira, que tem vários estudos sobre o impacto dos eleitores-fantasma (que também rondam os 600 mil), também adverte que “tudo aquilo que impeça os eleitores de exercerem o seu direito de voto tem impacto na votação”. Quanto maior a dimensão do número de eleitores impedidos, maior o impacto.
Sobre o facto de poder influenciar o resultado, Luís Humberto Teixeira diz que “dependeria, em primeiro lugar, “da vontade que esses eleitores teriam de ir votar”, de “em quem iam votar” e da “distribuição dessas pessoas pelos círculos eleitorais”, daí que seja difícil “fazer uma extrapolação sobre se isso pode ou não ter impacto no vencedor, mas na eleição tem sempre”. O investigador lembra que já houve eleições neste país que terminaram empatadas a nível local porque foram exatamente os mesmos votos dos dois lados, agora “imagine-se com uma ordem de grandeza desse género”.
MAI criticado por inoperância. “Se for preciso, polícia vai buscar votos a casa”
As autoridades ainda não anunciaram como vão reagir a esta situação. Contactado pelo Observador, o porta-voz da Comissão Nacional de Eleições, João Tiago Machado, admite que o problema pode ter uma dimensão maior do que nas eleições presidenciais, mas lembra que todo o “processo organizativo” é responsabilidade do MAI. Em termos operacionais a CNE nada faz e que nem sequer “é voz ativa na preparação” do processo eleitoral.
A secretaria-geral do Ministério da Administração Interna, contactada pelo Observador, não respondeu às questões em tempo útil, embora tenha comunicado que o fará em breve.
Entretanto, já existem partidos a criticar a inoperância do Ministério da Administração Interna. O líder da Iniciativa Liberal, João Cotrim Figueiredo, já alertou que “podemos chegar às eleições com meio milhão de pessoas em isolamento” e que “estas pessoas têm direito a votar”.
Para Cotrim Figueiredo, “o Governo via MAI não pode esperar mais para arranjar uma solução. Se for preciso é pôr a polícia a ir buscar votos a casa.” O liberal termina com o seguinte apelo: “A pandemia não pode suspender a democracia”.
Podemos chegar às eleições com meio milhão de pessoas em isolamento. Estas pessoas têm direito a votar!
O governo via MAI não pode esperar mais para arranjar uma solução. Se for preciso é pôr a Polícia a ir buscar votos a casa.
A pandemia não pode suspender a democracia.
— João Cotrim Figueiredo (@jcf_liberal) December 29, 2021