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Faltava o dia, o mês e a assinatura no documento, mas o resto era claro. As buscas a casa do ex-ministro da Justiça de Jair Bolsonaro, Anderson Torres — cuja prisão foi decretada pelo juiz Alexandre de Moraes na sequência da invasão aos edifícios do Congresso, Planalto e Supremo Tribunal —, encontraram um documento polémico. Tratava-se de uma minuta para efetivar um golpe de Estado. Perante o resultado eleitoral das presidenciais, em caso de vitória de Lula da Silva, aquele documento em nome de Bolsonaro Presidente instauraria o Estado de Defesa no Tribunal Supremo Eleitoral e acionaria um plano para não reconhecer o resultado.
A minuta, que foi divulgada pela Folha de S. Paulo, era detalhada. Deveria ser criada uma Comissão de Regularidade Eleitoral, composta por membros do Ministério da Defesa, do Ministério Público, da Polícia, do Senado, da Câmara dos Deputados e outros órgãos de investigação criminal do Estado.
É o episódio mais recente e polémico da mega-investigação judicial relacionada com a invasão em Brasília, que já levou à detenção de quase 1.500 pessoas — das quais 140 se mantêm presas. E um particularmente relevante, pela possível ligação de Bolsonaro a intenções golpistas, através de Anderson Torres — que à altura da invasão ocupava o cargo de secretário de Segurança do Distrito Federal (Brasília), mas estava na Florida (EUA), onde se encontra neste momento o próprio Bolsonaro.
A par disso, o juiz do Supremo Alexandre de Moraes — também ele contestado por alguns, que o acusam de abuso de autoridade — já direcionou diretamente a investigação para o antigo Presidente, por causa de um vídeo publicado (e depois apagado) por Bolsonaro nas redes sociais que pode ser interpretado como incitamento a um golpe.
O cerco judicial parece, por isso, apertar-se em torno do antigo Presidente polémico. Mas significa isso que Bolsonaro está em risco de ser detido em breve? Há sequer uma possível acusação judicial no horizonte? O Observador falou com dois juristas brasileiros para tentar perceber a implicação das últimas notícias no futuro de Bolsonaro. E a conclusão é só uma: Bolsonaro não está em bons lençóis, mas, com os indícios que se conhecem neste momento, isso não significa que vá sequer ser acusado — quanto mais condenado ou sujeito a prisão.
Minuta em gabinete de Torres reforça “indícios” de que Bolsonaro queria golpe de Estado
Comecemos então pela minuta encontrada na casa de Anderson Torres. Pode provar de alguma forma uma organização prévia para levar a cabo uma tentativa de golpe de Estado? O jurista Wallace de Almeida Corbo, professor na Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, tem mais dúvidas do que certezas. “Quem elaborou a minuta? Quem viu essa minuta? Quem pediu a elaboração dessa minuta?”, enumera, em conversa com o Observador, apontando algumas das questões que ainda precisam de ser respondidas e para as quais Anderson Torres não apresentou esclarecimentos no interrogatório desta quarta-feira, mantendo-se em silêncio.
Agora, que ela pode representar um problema legal para o antigo ministro de Jair Bolsonaro, o jurista não tem dúvidas. “No mínimo, se Anderson Torres recebeu essa minuta de terceiros e não reportou a tentativa de golpe de Estado ou de abolição violenta do Estado democrático de Direito, então pode ter incorrido no crime de prevaricação. No entanto, se o próprio Anderson Torres elaborou a minuta ou pediu a sua elaboração, então podemos estar falando aqui na prática de crimes contra o Estado pelo próprio ex-ministro”, afirma.
Quanto ao envolvimento de Bolsonaro, continua tudo em aberto. O antigo Presidente irá responder às diligências feitas pelas autoridades esta quinta-feira e deverá revelar se tinha ou não conhecimento deste documento. “Se o ex-Presidente Jair Bolsonaro soube da elaboração desta minuta, ou até participou no desenho deste documento, também ele pode estar envolvido na prática destes crimes”, alerta Corbo. “Mais que isso, a descoberta da minuta no escritório do seu ex-ministro da Justiça tende a reforçar os indícios de que Bolsonaro possuía interesse em praticar um golpe de Estado.”
Nem todos os especialistas, contudo, consideram o documento juridicamente tão relevante. O advogado criminalista Rodrigo Faucz, por exemplo, é muito mais cauteloso sobre a possibilidade de este documento provar uma ligação de Bolsonaro a uma tentativa de golpe. Será preciso a investigação provar, diz, “se ele teve alguma relação direta com a minuta”. “Apenas a minuta, desassociada de outros elementos de prova, não pode servir de fundamento para condenação na esfera criminal”, resume ao Observador.
Que a situação é grave, não há dúvidas. Tão grave que levou um antigo presidente do Supremo Tribunal, Ayres Britto, a afirmar que poderíamos mesmo estar perante um ato de “traição” ao país, com a Constituição a ser “rasgada”.
Contudo, Bolsonaro ainda está a salvo de qualquer tentativa de ação da Justiça brasileira sobre si. A investigação ainda tem de conseguir provar que havia intenção de avançar, contacto entre as várias partes, organização montada. E para ligar tudo isso à invasão de 8 de janeiro são necessárias ainda mais provas.
Provas de que a polícia brasileira está ativamente à procura — no telemóvel de Torres, por exemplo. Quando regressou ao Brasil e foi imediatamente detido, o antigo ministro não trazia consigo o aparelho. Deixou-o nos Estados Unidos por, diz, ter sido clonado. Os investigadores tentam agora aceder aos dados que ali estão armazenados através da cloud, explica a Globo. Documentos e trocas de mensagens podem servir de provas no futuro.
Super-juiz Alexandre de Moraes aponta baterias a Bolsonaro
Na passada sexta-feira, quando ainda não tinha sido descoberta a minuta, a investigação ligada à invasão já tinha passado a visar diretamente Jair Bolsonaro. A Procuradoria-Geral da República pediu ao Supremo Tribunal Federal que incluísse o ex-Presidente como um dos alvos do inquérito, invocando como argumento um vídeo publicado por Bolsonaro nas redes sociais, a 10 de janeiro, que questionava o resultado das eleições presidenciais. Bolsonaro apagou entretanto a publicação.
O juiz responsável pelo inquérito, Alexandre de Moraes, concordou. No despacho, o juiz sublinhou que esta é uma conduta reiterada por Bolsonaro, que “em tese” pode configurar uma postura “criminosa e atentatória às instituições” ao pôr em causa o resultado das eleições, e que pode “ter contribuído” para os atos criminosos.
Mas, uma vez mais, os juristas ouvidos pelo Observador consideram que esta é uma prova muito frágil. Embora Wallace Corbo considere que há “indícios fortes” da prática do crime de “incitação a ato criminoso”, diz que só este vídeo não chega para provar um “envolvimento direto do Presidente Jair Bolsonaro nos atos golpistas”. Rodrigo Faucz aponta ainda outro dado relevante: o facto de o vídeo ter sido publicado já depois da invasão aos edifícios dos Três Poderes. “Não existe incitação de um crime com algum ato ocorrido após o crime”, afirma. “O vídeo só seria prova de algum ato que fosse cometido após a sua publicação.”
A estratégia dos procuradores, porém, pode ser a de que este seja apenas um ponto de partida para uma investigação mais sólida a Bolsonaro. Fontes da investigação ouvidas pela CNN Brasil dizem mesmo estar confiantes de que o inquérito venha a recolher mais provas que possam servir para acusar o antigo Presidente de ser o “mentor intelectual dos ataques golpistas do dia 8 de janeiro”.
Para já, os sinais dados por Alexandre de Moraes, juiz responsável pelo inquérito, sugerem que o magistrado não tenciona travar esses esforços. No despacho sobre a decisão de incluir Bolsonaro no inquérito, Moraes comparou mesmo a situação atual no Brasil com a da Alemanha Nazi: “A democracia brasileira não irá mais suportar a ignóbil política de apaziguamento, cujo fracasso foi amplamente demonstrado na tentativa de acordo do então primeiro-ministro inglês Neville Chamberlain com Adolf Hitler”, escreveu.
Declaração que contribui para as críticas dos que consideram que Moraes tem ido demasiado longe nas suas investigações que já visaram aliados próximos de Bolsonaro no passado. “Ele realmente não vem contribuindo para a paz social. Não vou tecer considerações maiores, e olha que o conheço há muitos anos”, afirmou ainda na semana passada o antigo colega do Supremo, o juiz Marco Aurélio Mello. No passado, já vários juristas criticaram o juiz, que se tornou um alvo para muitos bolsonaristas.
Wallace Corbo, porém, diz que para já não há erros a apontar ao juiz no processo da invasão, porque todas as suas decisões, mesmo as “geradoras das maiores controvérsias jurídicas”, foram “submetidas e confirmadas pelo plenário” do Supremo Tribunal. Isto inclui a decisão de investigar muitos dos invasores pelo crime de terrorismo — uma decisão com que nem todos os juristas concordam.
Dentro do próprio Supremo também terá havido algum desconforto com essa classificação, partilharam alguns juízes que mantiveram o anonimato ao UOL. “Na avaliação de um ministro [juiz], embora nem todos concordem com a classificação dos atos dessa forma, evitou-se tratar do assunto agora, para não enfraquecer a decisão de Moraes. No entanto, em um momento futuro, na avaliação de eventual denúncia contra os golpistas, esse tema teria de ser abordado pelo plenário”, pode ler-se na peça.
Por agora, porém, o coletivo apoia totalmente Moraes, razão pela qual Corbo considera que não é possível fazer qualquer crítica ao juiz, rejeitando o paralelismo que alguns críticos fazem com Sérgio Moro, o juiz da Lava-Jato. “Não há qualquer elemento de parcialidade que possa ser atribuído seja ao ministro Alexandre de Moraes seja ao colegiado do Supremo, como ocorreu com o ex-juiz Sérgio Moro”, afirma, referindo-se a algumas das decisões de Moro anuladas por tribunais superiores — a mais conhecida de todas a decisão de revogar as condenações de Lula da Silva.
Uma vez mais, Faucz diverge do colega. Evitando pronunciar-se diretamente sobre Moraes, o advogado frisa apenas que quaisquer violações de direitos e garantias constitucionais no processo podem levar a que este seja anulado no futuro. “E, mesmo que não seja anulado, faz com que eventuais condenações não sejam legitimadas, criando-se um discurso de perseguição, revanche ou injustiça”, alerta.
No caso da invasão em Brasília, além das dúvidas sobre a classificação do crime como terrorismo, o juiz aplicou aquilo que a Folha de S. Paulo classificou de “decisão incomum” ao impedir os juízes de primeira instância, que realizaram as audiências de custódia com os primeiros detidos em Brasília, de tomarem a decisão de os manter ou não sob prisão. Esse poder ficou reservado apenas para si.
Faucz não quis comentar diretamente as ações do juiz do Supremo, mas sublinhou que “o perigo para o Estado de Direito surge quando se criam exceções nas garantias processuais para atingir determinado fim”, o que fortalece “discursos punitivistas e arbitrários”.
Num caso desta complexidade, a mínima decisão de Alexandre de Moraes vai ser escrutinada ao pormenor. E isso inclui qualquer ação sobre Jair Bolsonaro, que ainda permanece fora do país.
Se regressar ao Brasil, ex-Presidente “é um homem livre”
No estado norte-americano da Florida desde o final do ano de 2022, Jair Bolsonaro assiste a tudo isto à distância e não é claro se e quando regressará ao Brasil.
Inicialmente tinha previsto voltar no início de janeiro. Após a invasão e depois de uma complicação de saúde, anunciou que anteciparia o regresso. Agora, estará a ponderar alargar a estadia, tendo-se já comprometido com a participação numa palestra em território americano, organizada por empresários de Bolsonaro que querem custear um aumento da duração da estadia.
O desconforto com a presença de Bolsonaro nos EUA enquanto decorre esta investigação em Brasília é notório em alguns setores. Quatro dias depois da invasão, 46 congressistas democratas escreveram uma carta ao Presidente Joe Biden, dizendo-se “preocupados” com o facto de o antigo Presidente brasileiro estar em Orlando. “Os EUA não devem dar abrigo a ele ou a qualquer autoritário que tenha inspirado tamanha violência contra as instituições democráticas”, escreveram.
Uma possível deportação de Bolsonaro “depende exclusivamente de decisões a serem tomadas pelos Estados Unidos nos termos da legislação americana”, aponta Wallace Corbo. E não é sequer público com que visto está neste momento o ex-Presidente no país. Se for com o passaporte diplomático, este expira no final do mês, por ter deixado a presidência entretanto; se for um visto de turista, Bolsonaro dispõe de seis meses.
A extradição, porém, está completamente fora de hipótese, para já. Muito embora o antigo Presidente já esteja formalmente incluído no inquérito, não pende sobre ele qualquer sentença de condenação ou ordem de prisão preventiva. Se decidir regressar ao Brasil nos próximos dias, Bolsonaro não terá à sua espera agentes da polícia, nem homens prontos para o algemar. “Pelo contrário. No cenário atual, o ex-Presidente ao regressar seria um homem livre”, resume o jurista da Fundação Getúlio Vargas.
Rodrigo Faucz acha até “improvável” que a situação se altere em breve, por a prisão preventiva só poder ser aplicada “em casos excecionais, quando a liberdade do sujeito prejudica o próprio processo”. E uma eventual condenação seria um cenário ainda mais inverosímil, pois “pode levar alguns anos para — e se — ocorrer”.
O advogado, porém, deixa uma ressalva: “Devemos ter em mente que as investigações estão avançando, então não se sabe quais elementos serão encontrados ou produzidos. Os extremistas estão a ser ouvidos, dados de telemóveis acessados, documentos analisados. A situação pode alterar-se de uma hora para outra”, lembra.
Jair Bolsonaro também o sabe. Guilherme Amado, jornalista de investigação brasileiro, escreveu um dia depois de o inquérito ter oficialmente passado a incluir Bolsonaro que o antigo Presidente terá trocado de número de telefone. Bolsonaro não tem dúvidas: crê estar a ser alvo de escutas, ordenadas por Alexandre de Moraes.