Índice
Índice
50 a 100 mortes por dia. Foi essa a estimativa feita pelo Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky sobre o número de soldados ucranianos que perdem a vida no Donbass, o local da Ucrânia onde a Rússia concentra agora a sua ofensiva. Os dados foram divulgados por Zelensky há já quase uma semana — e, desde então, as tropas russas avançaram ainda mais no terreno.
“Se os ocupantes pensam que Lyman ou Severodonetsk será deles, estão enganados”, disse o Presidente ucraniano à altura. Desde então, Lyman já caiu e Severodonetsk continua a ser fortemente atacada, a par de Lysytchansk. Estas duas últimas cidades são os maiores pontos urbanos ainda controlados pelos ucranianos na região de Lugansk.
Três meses depois, a leste nada de novo. “Guerra de desgaste” no Donbass será longa e sangrenta
Severodonetsk é agora o grande objetivo das tropas de Moscovo, que continuam a tentar cercar a cidade, mantendo uma estratégia de pequenos cercos “modestos” às forças ucranianas, mas altamente eficazes. “Um progresso lento, mas palpável” no Donbass, como resumiu o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, esta sexta-feira.
É impossível saber qual dos lados pode conseguir ter a palavra final no leste da Ucrânia, mas os avanços desta semana tornam claros que se confirma a tendência já previamente feita por vários analistas ao Observador: a luta pelo Donbass será lenta, sangrenta e os russos têm aqui mais vantagem do que nas grandes cidades como Kiev ou Kharkiv. Não por acaso, o chefe militar ucraniano da região de Lugansk estimou esta semana que haja atualmente cerca de dez mil tropas russas na região.
O que não implica, é claro, que o Kremlin não tenha de pagar um preço elevado por isso. Com Vladimir Putin a continuar a recusar-se a declarar formalmente guerra à Ucrânia e sem possibilidade de recrutar à força, a Rússia continua a necessitar de soldados. Na autoproclamada república de Lugansk, controlada pelos separatistas pró-russos, as autoridades estão a recrutar homens à força, segundo revelou uma habitante em segredo à BBC. Os locais já chamam ao processo “mogilização”, em referência à palavra mogila, que significa “túmulo” em russo.
Bombas de vácuo sobre a pequena Lyman. A caminho de uma “nova Mariupol” em Severodonetsk?
A conquista militar mais relevante desta semana pelas tropas russas foi Lyman, pequena cidade de apenas 20 mil habitantes que, porém, tem grande relevância estratégica por ser ponto de confluência de linhas ferroviárias e ter pontes que atravessam o rio Donets — relevantes para o abastecimento das tropas russas e para permitir o avanço em direção a Kramatorsk.
“A comida que eles cozinham em fogueiras ainda é a que sobrou de antes da guerra, porque tudo fechou: as lojas, as farmácias. Aqueles que tinham os seus próprios animais, como galinhas, mataram-nos e comeram-nos”, descreveu a filha de uns habitantes de Lyman que recusaram deixar a cidade ao site Meduza.
São sobreviventes de uma ofensiva intensa, cujo número de mortes causadas ainda está por apurar, mas que ilustra a violência das batalhas no Donbass. A chuva de artilharia russa sobre Lyman incluiu mesmo bombas termobáricas Solntsepek (também chamadas bombas de vácuo), frequentemente descritas como a arma não-nuclear mais poderosa do arsenal russo. Com a conquista de Lyman, os russos ficaram apenas a 20 quilómetros de distância de Slavyansk, importante ponto logístico da região. Este tornou-se um novo ponto estratégico a alcançar, depois de o exército ucraniano ter conseguido conter a ofensiva vinda do norte, de Izyum.
A tomada de Lyman é um exemplo da nova estratégia russa no terreno: conquista de pequenos pontos no território, de forma a deixas as tropas ucranianas isoladas em pequenas bolsas, sem acesso a reforços. A Rússia leva agora a cabo uma “reorientação progressiva das suas operações, com foco em objetivos modestos”, resumiu Nick Reynolds, especialista militar do Royal United Services Institute, citado pelo The Guardian.
Depois de Lyman, os próximos objetivos vão-se alinhando: Slavyansk e Kramatorsk, ali perto, mas também Bakhmut, Siversk e Berestove. Em Bakhmut, a maioria dos civis já abandonou a cidade, mas cerca de 30 mil ainda ali permanecem, a maioria idosos. As tropas russas estão cada vez mais próximas, de dia para a dia, e os bombardeamentos sucedem-se. Questionado pelo correspondente da BBC sobre se teme o que pode vir a acontecer na sua cidade, um residente de 40 anos, cuja casa foi destruída pela artilharia russa, mostrou-se apenas desesperançado: “Não sou o Nostradamus”, respondeu.
Se as tropas do Kremlin conquistarem estes objetivos “modestos”, alcançam o objetivo de cercar as cidades de Severodonetsk e Lysychansk, como explicou Oleksiy Arestovych, conselheiro de Zelensky. “Esse é o principal objetivo deles agora: criar uma ‘nova Mariupol’”, acrescentou Arestovych.
Valas comuns em Lysytchansk e ucranianos a considerarem retirar
A barragem de ataques de artilharia ao objetivo principal de Severodonetsk continua à distância, com os russos a já controlarem dois terços do perímetro da cidade e a terem conseguido ocupar o Hotel Myr e a colocarem as forças ucranianas numa posição complicada. “Estão a atacar bairros residenciais sem mercê”, descreveu o governador regional, Serhiy Haidai, na passada sexta-feira. “Os residentes de Severodonetsk já se esqueceram da última vez em que houve um silêncio de pelo menos meia hora na cidade.”
Menos de 13 mil pessoas ainda permanecem na cidade onde, de acordo com as autoridades ucranianas, 90% dos edifícios residenciais já estão destruídos ou danificados. Haidai garante que já ali morreram mais de 1.500 pessoas. Os que ficaram temem agora sair, por o único caminho ainda não controlado pelos russos ser perigoso, com militares a abrirem fogo à distância a todos os carros que passam pela estrada.
A vizinha Lysytchansk ainda não foi tão afetada, mas os 250 civis que ali morreram devido aos bombardeamentos foram na maioria enterrados em valas comuns, por já não terem família no local, como testemunhou o enviado do Le Monde no local. “Quando uma vala está cheia, é tapada com terra e cava-se uma nova ao lado. A última, a céu aberta, já tem uma dúzia de corpos. Emana dela um cheiro forte dos cadáveres”, escreveu o jornalista.
Os próximos dias continuarão a ser de ataques ininterruptos sobre as duas cidades: “As forças russas irão provavelmente continuar a conseguir avanços incrementais e podem conseguir cercar Severodonetsk nos próximos dias”, prevê o Institute for the Study of War. A grande dúvida para o exército ucraniano neste momento é se fica para tentar defender a cidade ou se retira de imediato enquanto o cerco não se fecha — uma hipótese avançada por Haidi na noite de sexta-feira.
Também Petro Kuzyk, um dos comandantes no terreno, avançou essa possibilidade ao jornal Ukraynska Pravda, dizendo que pode ser a melhor solução. “Aconselho-o a olhar para as coisas com sobriedade. Se não houver paridade de meios, é provável que consigam cercar o nosso grupo, pois também nos superam em números”, disse, explicando que a cada projétil ucraniano lançado corresponde uma média de 20 a 50 russos. “Aí os nossos militares, na melhor das hipóteses, terão que recuar e procurar novas fortificações.”
A única forma de o evitar seria se os meios de artilharia das forças ucranianas fossem reforçadas. Fontes da Casa Branca garantiram esta semana à CNN que Joe Biden irá anunciar um pacote de apoio na próxima semana que inclui os lança-foguetes de longo alcance MLRS. A entrega, contudo, pode ainda demorar mais de um mês a chegar — o que deixa Severodonetsk em forte risco de cair nas mãos do exército russo até lá.
Os ucranianos a lutar em Donbass sabem que a situação atual é delicada. “Ninguém quer ser cercado, ninguém quer ser morto, mas…”, desabafou com o Le Monde um coronel em Lysytchansk. “Os homens olham uns para os outros com um olhar de quem sabe o que se passa e não precisam de terminar as frases para partilhar um segredo como este: a batalha pela região de Lugansk, a ponta mais a leste da frente de Donbass, parece perdida”, escreve o diário francês.
Se russos conquistarem todo o Donbass, Kiev pode manter-se como objetivo
Se em Lugansk os russos levam vantagem, mais a sul, em Donetsk, a situação não é tão favorável a Moscovo. As defesas ucranianas em Pisky, Avdiivka e Marinka, do lado ocidental da cidade, ainda se mantêm firmes, como explicou à Der Spiegel um comandante no local. Apesar disso, a chuva de artilharia russa tem estado a intensificar-se nas últimas semanas. Só em Marinka, a média diária é de 300 mísseis Grad a atingirem o local.
Se Lugansk ficar totalmente dominada pelos russos nas próximas semanas, mais a sul em Donetsk a situação também pode mudar. Até porque, conquistando essa região, ficam mais próximos de criar corredores até Mariupol, Zaporíjia e Kherson, locais já controlados pelos russos. Denis Pushilin, o líder da auto-proclamada república de Donetsk, disse esta semana que se os russos passarem a controlar toda a região de Lugansk e Donetsk irão realizar um referendo para confirmar a separação da zona face ao governo de Kiev.
Se este cenário — o de maior pesadelo para os ucranianos — se confirmar, coloca-se a questão sobre se Moscovo poderá tentar ir mais longe. Esta semana, fontes do Kremlin garantiram ao Meduza que a “operação especial” russa na Ucrânia tem como objetivo “mínimo” o controlo total do Donbass e como objetivo “máximo” a tomada de Kiev, mesmo que tal implique “mais derramamento de sangue”.
A opinião dos analistas militares é de que ainda é cedo para fazer previsões sobre quais podem ser as verdadeiras metas do Kremlin — até porque podem não estar fechadas e dependem dos resultados no terreno. Sam Cranny-Evans, investigador do Royal United Services Institute, disse à BBC que, caso a tomada total do Donbass pelos russos seja bem sucedida, Moscovo pode tentar ir mais longe: “Se os russos sentirem que são capazes de ganhar mais do que os objetivos declarados, suspeito que se irão atirar”.
Já o analista Mark Galeotti alerta que, quanto maior for a área controlada pelos russos, mas expostas estão as suas tropas a possíveis contra-ataques. “É mais território onde terão de policiar uma população local irada que já está a inclinar-se para a sabotagem e para o combate de guerrilha”, escreve o britânico no The Telegraph, alertando ainda para a necessidade constante de mais soldados por parte do Kremlin.
Por enquanto, tudo está ainda em aberto, tanto no Donbass como para lá dele. “A Ucrânia pode perder território a curto-prazo, mas a Rússia tem graves problemas para manter o seu esforço militar a longo-prazo e para não perder as conquistas”, alertou esta semana o especialista militar Michael Kofman.
In my view it is too early to make predictions on how the battle for the Donbas will go. Ukraine may lose territory in the short term, but Russia faces major problems with sustaining its military effort in the long term, or holding on to gains. The war could become protracted.
— Michael Kofman (@KofmanMichael) May 25, 2022
A certeza, para já, é só uma: “A guerra pode tornar-se demorada.” Pelo meio, os civis que ainda restam no Donbass podem engrossar o número de vítimas mortais do conflito.