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TIAGO PETINGA/LUSA

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Certezas, "cambalhotas" e recuos. Como o Infarmed acabou por não ir para o Porto

A mudança era dada como certa, mas na última sexta-feira o ministro da Saúde travou a fundo e, afinal, essa decisão terá de ser reavaliada. Rui Moreira lembra que Costa tem "responsabilidade máxima".

Minutos antes de o Governo anunciar que o Infarmed ia ser transferido para o Porto, no final de novembro do ano passado, o presidente da Câmara Municipal do Porto recebeu duas chamadas: uma do primeiro-ministro e outra, logo a seguir, do ministro da Saúde. A decisão estava tomada, a autoridade para o medicamento ia mudar de casa e a transferência até tinha data marcada para janeiro de 2019. Mas, na semana passada, Adalberto Campos Fernandes travou a fundo e fez depender essa mudança das conclusões de uma nova comissão técnica independente para a descentralização que só em outubro se reúne para definir o que vai, afinal, estudar. Foi a “cambalhota” derradeira num processo em que tudo estava decidido e que, agora, não tem fim à vista. O Governo garante que é “coerente” com o que sempre disse sobre o assunto. E Rui Moreira parte para o ataque.

Há dez meses, António Costa quis dar a notícia em primeira mão a Rui Moreira. Passados dez meses, Rui Moreira não voltou a ouvir uma palavra do Governo, e já tirou as suas conclusões. “Aquilo que o senhor ministro [da Saúde] disse é que no dia de São Nunca À Tarde, na semana dos nove dias, é capaz de decidir que o Infarmed vem para o Porto e, nesse dia, cria uma outra comissão para ver se alguma comissão diz que é mau o Infarmed vir para o Porto”, ironizou na noite de segunda-feira o autarca, juntando-se ao coro de críticas que se fez ouvir desde o recuo do Governo.

“O poder político sucumbiu à maquina do Estado, à maquina instalada”, acusa o autarca. Rui Moreira lembra que a decisão de transferir a autoridade para o medicamento “é uma deliberação do Conselho de Ministros” e que, por isso mesmo, a “responsabilidade máxima é do primeiro-ministro”. Mas quer António Costa, quer Adalbeto Campos Fernandes, escapam à exigência que se começou a fazer ouvir nos últimos dias para que o ministro deixe a pasta. “Não sou comentador”, disse o autarca, recusando-se a exigir demissões. Por outro lado, Rui Moreira está convicto de que o processo da transferência do Infarmed para o Porto morreu: “Tenho a certeza de que o Infarmed vai continuar forever and ever, como diz a  música, em Lisboa.”

Rui Moreira lembra que António Costa tem a "responsabilidade máxima" neste processo

ANTÓNIO COTRIM/LUSA

Não é um deitar da toalha ao chão, mas o tom é muito diferente daquele que se ouvia em novembro do ano passado. A cidade do Porto tinha acabado de lidar com a contrariedade de ter perdido a corrida para receber a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) e o Infarmed aparecia como uma solução de recurso. “Já estava previsto”, garantiu António Costa, três dias depois do anúncio. “Uma sequência natural da vitória da EMA seria a aproximação do Infarmed” e “um dos critérios importantes era a sua proximidade entre a agência europeia e as agências nacionais”. A agência europeia não veio, mas o Infarmed continuava nos planos do Governo.

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No dia em que ligou para Rui Moreira, o ministro da Saúde disse publicamente que a autoridade para o medicamento estava a caminho do Porto. À saída da VIII Conferência Anual do Health Cluster Portugal, a 21 de novembro, Adalberto Campos Fernandes disse que “a data fixada para a mudança é 1 de janeiro de 2019”, o que dava ao Governo “um ano para, em conjunto com o Infarmed e a Câmara do Porto, encontrar as melhores soluções que permitam que o Infarmed mantenha a sua atividade sem nenhum tipo de desarticulação”.

Entre essa certeza e a surpresa da última sexta-feira passaram 10 meses. Nesse período, apesar de alguns sinais de mudança — uma sondagem interna do Infarmed revelou fortes resistências dos trabalhadores à transferência e o ministro da Saúde acabaria por dizer que é preciso levar em conta algumas “linhas vermelhas” antes de tomar uma decisão que até já tinha sido anunciada.  No Porto imperou sempre a convicção de que estava tudo encaminhado para que a autoridade do medicamento mudasse de morada. A mudança sempre vai concretizar-se? Já ninguém tem a certeza.

Especialistas nomeados pelo Governo defendem mudança

O anúncio da transferência não tinha sido feito há um mês quando o Governo aprovou em Conselho de Ministros a criação de um grupo de trabalho para avaliar os “cenários alternativos para a implementação da deslocalização do Infarmed para a cidade do Porto”. O grupo anunciou resultados em junho e tudo apontava para a transferência.

Contas feitas, mudar as instalações (e as valências) do Infarmed para o Porto teria um custo imediato de 17 milhões de euros. Mas, decorridos quinze anos dessa transferência, a decisão já estaria a representar uma poupança de 8,4 milhões de euros para os cofres públicos e os ganhos em eficácia faziam pender a balança para norte. Em entrevista ao Jornal de Notícias, depois de ser divulgado o relatório final, o presidente do grupo de trabalho, Henrique Luz Rodrigues, disse que “o Infarmed pode ganhar se for para o Porto” e que isso teria ganhos em eficiência e produtividade.

Henrique Luz Rodrigues liderou grupo independente de especialistas que defendia transferência para o Porto

ANTÓNIO COTRIM/LUSA

Além de Luz Rodrigues participavam no grupo outros 26 especialistas da área farmacêutica, grande parte dos quais ex-diretores do Infarmed. Da parte da Câmara Municipal do Porto receberam informações técnicas — sobre transportes, alojamento, serviços, etc. — mas também a nota clara de que à autarquia não interessava “uma placa e três ou quatro funcionários”. Receber o Infarmed significava, para Rui Moreira, transferir as principais funções daquele organismo para norte.

O contacto entre o Governo e a autarquia começou e acabou naqueles telefonemas do Governo para Moreira, no final de novembro, mas todos acreditavam que o processo estava em marcha, apesar de alguns sinais libertados por Adalberto Campos Fernandes.

Entretanto, silêncio. E muitos “mas” pelo caminho

Desde o telefonema em novembro de 2017, até esta sexta-feira, Rui Moreira não recebeu mais nenhum “sinal direito ou indireto” da parte do Governo. Segundo relatou ao Observador fonte próxima do processo, a câmara do Porto foi mesmo apanhada de surpresa pelo anúncio do ministro da Saúde na sexta-feira, onde apontava para a suspensão de todo o processo. “Em nenhum momento o Governo deu direta ou indiretamente qualquer sinal de que pretendia reverter a sua decisão, em momento algum essa dúvida foi colocada”, afirma a mesma fonte.

Mas se não houve qualquer diálogo,  Adalberto Campos Fernandes foi deixando sinais pelo caminho, que davam a entender que a transição não era tão liquida como inicialmente tinha feito parecer. A 18 de julho deste ano, numa audição na comissão de Saúde no Parlamento, o ministro dizia que a eventual mudança nunca aconteceria antes de janeiro de 2019 — sendo que mantinha a ideia de que ia haver mudança.

Mas havia muitos “mas”. “Alguns aspetos estão a ser aprofundados”, dizia o ministro, empurrando uma decisão (que se pensava já estar tomada) para depois: “Teremos condições para uma decisão a curto prazo”. Por esta altura já o Ministério da Saúde tinha em mãos as conclusões do famoso relatório do grupo de trabalho (de 27 sábios), entregue ao governo no final de junho, que concluía que a transferência do Infarmed para o Porto seria vantajosa: a eficiência e a produtividade podiam melhorar, e os custos seriam menores a longo prazo, concluíam. Mas mesmo com essas conclusões em mãos, o gabinete do ministro da Saúde chegou a dizer ao jornal Expresso que nada garantia nada, e que “não existia um prazo pré-definido” para a decisão. “Para já, o Ministério vai analisar as conclusões do relatório”, dizia o gabinete do ministro no final de junho.

O ministro da Saúde acabou por dizer que há "linhas vermelhas" que não quer ultrapassar neste processo. Ter 93% dos trabalhadores contra a transferência será uma delas

Duas semanas depois, quando questionado pelos deputados da comissão de Saúde ainda não havia novidades: Adalberto Campos Fernandes mantinha a ideia de que a decisão iria ter em conta o relatório do grupo de sábios, mas não só. Havia “linhas vermelhas” que o ministro não queria ultrapassar. Que linhas vermelhas eram essas? 1) A garantia de que a operação e a estabilidade da atividade do Infarmed não eram postas em causa; 2) A garantia de que a decisão não ia contra os direitos dos trabalhadores. Uma ideia que Adalberto Campos Fernandes foi repetindo ao longo do tempo. Esta última, contudo, era uma linha vermelha muito fácil de pisar. É que desde o primeiro dia que os trabalhadores, e a presidente do Infarmed, se têm mostrado veementemente contra a deslocalização para o Porto.

Um inquérito interno mostrou mesmo que 93% dos trabalhadores se mostraram, em qualquer circunstância, “não disponíveis” para a deslocalização da entidade para o Porto. No seguimento do relatório do grupo de trabalho, a comissão de trabalhadores também reagiu em comunicado a dizer que não ficavam ali demonstradas “as vantagens técnicas, científicas e objetivas desta deslocalização para a atividade do Infarmed e para a proteção da Saúde”. Numa audição no Parlamento, a presidente do Infarmed, Maria do Céu Machado, alertou os deputados de que uma mudança para o Porto podia vir a ser uma “ameaça à saúde pública não só em Portugal como na Europa”. Logo, sempre foi claro que qualquer avanço da parte do Governo seria sempre contra a vontade dos trabalhadores.

A 24 de julho, o presidente da câmara do Porto aproveitou uma audiência com Marcelo Rebelo de Sousa para se queixar do processo de descentralização de competências para as autarquias. E deu um exemplo: o que estava a acontecer precisamente com a decisão de transferir o Infarmed para o Porto, que era “o exemplo paradigmático” do que temia que viesse a suceder com o pacote da descentralização, negociado entre o Governo e a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP). Rui Moreira disse que, depois de ter sido confrontado com a decisão política, anunciada pelo primeiro-ministro, de levar o Infarmed de Lisboa para o Porto, “naturalmente”, a Câmara do Porto fez o que lhe competia: “dar todo o auxílio” para que a decisão se concretizasse. No entanto, disse o autarca, desde então, houve “um conjunto de constrangimentos de ordem administrativa” que foram protelando a decisão.

Governo passa a batata-quente: de um grupo de trabalho para uma comissão independente

O Governo foi adiando, adiando, até o ministro da Saúde chegar esta sexta-feira ao Parlamento e anunciar a suspensão do processo. Mas não foi tão claro quanto isso: passou a batata-quente para as mãos de uma comissão independente para a descentralização, a ser constituída no Parlamento, que ainda nem iniciou funções. Isto depois de, no ano passado, já ter sido criado um grupo de trabalho para o efeito que apresentou conclusões —  “um trabalho importante sobre o qual tomámos decisões”, disse o ministro.

O ex-ministro João Cravinho vai coordenar a comissão técnica independente para a descentralização

MARIO CRUZ/LUSA

Os argumentos de Adalberto Campos Fernandes: “O contexto político mudou porque abriu-se um diálogo nacional sobre a importância da descentralização dos serviços públicos”; “A Assembleia da República está em condições, neste momento, de criar uma comissão que vai acompanhar as decisões ou recomendações de descentralização. Considerámos que não fazia sentido extrair o Infarmed deste processo”; “Abre-se tempo alargado de discussão ao nível da Assembleia da República e também das outras entidades que intervêm neste processo”. Ou seja, um ano depois, e um grupo de trabalho depois, o Governo passou a bola para o Parlamento.

Mas que comissão é esta? Criada por iniciativa do PS, trata-se de uma comissão constituída por “seis personalidades e um coordenador de reconhecida competência e mérito científico”, designados pelo presidente da Assembleia da República depois de ouvidos os grupos parlamentares. Segundo se lê no projeto de lei socialista, que foi aprovado, “a sua missão consiste em proceder a uma profunda avaliação sobre a organização e funções do Estado, devendo igualmente avaliar e propor um programa de desconcentração da localização de entidades e serviços públicos, assegurando coerência na presença do Estado no território, avaliando os recursos e meios próprios a transferir”. A ideia, portanto, é estudar, ouvir, auscultar, de forma a culminar na apresentação de conclusões em julho de 2019 — fim da legislatura e vésperas das eleições. “O programa de auscultação deverá culminar com a apresentação, até julho de 2019, de anteprojetos de diplomas que serão referencial para iniciativas legislativas subsequentes que se revelem necessárias”.

O coordenador da comissão será João Cravinho. Ao Observador, contudo, o ex-ministro socialista mostra-se ciente de que a comissão está longe de dar frutos, uma vez que ainda nem sequer tomou posse. A primeira reunião, diz, será a 1 de outubro. “O grupo vai começar a trabalhar, suponho que vai precisar de tempo para estabelecer um programa e um método de trabalho. Vai-se instalar, começar a trabalhar e chegar a acordo sobre o que se deve estudar”, explicou João Cravinho ao Observador. Ou seja, o objeto da própria comissão ainda está por definir, podendo ou não incluir o processo relativo ao Infarmed. Logo, se havia pressa para acelerar o processo de transferência do Infarmed para o Porto, agora pressa não há de certeza.

“Cambalhota”, “anedota”, “decisão atirada para as calendas gregas”. Governo empurrou com a barriga e todos se queixaram

Do PS ao CDS, todos se indignaram com o recuo do Governo.

Antes de Rui Rio reagir a associação cívica Porto, o Nosso Movimento, sucessora do movimento de apoio à candidatura independente à Câmara do Porto, exigiu ao primeiro-ministro que esclarecesse se apoiou o ministro da Saúde naquela decisão. Num comunicado, o movimento questiona Costa sobre “se esta cambalhota do ministro da Saúde tem a sua cobertura e concordância e se o assunto foi ou não discutido em Conselho de Ministros, já que não se conhece a publicação de qualquer resolução desse órgão contrária à publicada em Diário da República”. O comunicado lembrava ainda que a decisão da transferência tinha sido uma decisão do Governo, “sem que alguma vez tal tivesse sido reclamado pelo presidente da Câmara do Porto e, tanto quanto se sabe, por ninguém”.

"A decisão foi, pois, da exclusiva responsabilidade do Governo que pediu à Câmara do Porto colaboração no sentido de encontrar local e identificar as oportunidades existentes na cidade, com base no trabalho que existia com vista à instalação da Agência Europeia do Medicamento", sublinhava o movimento de apoio a Rui Moreira.

A associação de apoio ao autarca do Porto que o relatório do grupo de trabalho foi conclusivo: o Infarmed ficaria melhor no Porto, ganharia eficiência e até era mais barato ao país”. “A 8 de dezembro de 2017, o Ministro da Saúde disse em Bruxelas que “a decisão política tomada pelo Governo será suportada pela avaliação técnica e científica rigorosa de um grupo de trabalho muito qualificado”, grupo esse que “veio a manifestar-se, claramente, a favor da transferência”. E o ministro prometeu uma decisão para setembro de 2018, recordam.

“O inopinado anúncio de sexta-feira do Ministro da Saúde, no Parlamento, empurrando para outra comissão uma decisão que ele próprio já tinha tomado, vem tornar anedótico todo o processo”, resumem.

Do lado do PS PortoManuel Pizarro, líder da distrital socialista, não poupou o ministro, classificando a atitude do ministro, em declarações ao jornal Público, como “leviana”. “Acho que a atitude do ministro da Saúde é de lamentável leviandade. O senhor ministro começou por anunciar que o Infarmed vinha para o Porto, depois anunciou que se ia criar um grupo de trabalho para estudar as questões técnicas associadas a esta deslocalização e, finalmente, desautoriza a sua própria decisão e as recomendações do grupo de trabalho”, criticou. E disse mais: “No mínimo, o sr. ministro devia assumir que cometeu um erro, em vez de empurrar para terceiros um problema que ele próprio criou, sozinho”. No Fórum TSF, Manuel Pizarro ainda diria que o ministro “deu o dito por não dito”.

Quem foi mais longe foi a distrital do PSD do Porto, que exigiu a demissão do ministro por “quebra de compromisso”. “Esta questão do Infarmed vem pôr em causa a frase tantas vezes usada pelo primeiro-ministro, de que ‘palavra dada é palavra honrada’”, disse o líder da distrital do PSD-Porto, Alberto Machado, em declarações ao jornal Público. “A forma atabalhoada e incoerente com que este Governo tem tratado o tão importante processo de descentralização coloca em causa a credibilidade e a seriedade dos responsáveis políticos e desacredita o Estado como um todo”, diz ainda o PSD Porto em comunicado.

Do lado do CDS, a reação foi igualmente dura, com a distrital do Porto a apelar a que toda a região do Porto se juntasse, independentemente da cor partidária, para tomar uma posição sobre o recuo do Governo. Em comunicado, a concelhia do CDS condena a “atuação desastrosa e danosa do interesse público nacional e dos interesses da região e do país adotada pelo Governo” e, mostrando que esta é uma “questão suprapartidária”, o CDS-Porto apela à “realização urgente de um debate nacional sobre a descentralização e a desconcentração dos serviços do Estado”. Isto porque “o Porto – o seu município e as suas gentes – foi desrespeitado por esta atitude no mínimo leviana, tomada por quem mostrou não ser conduzido pelo superior interesse do país”, lê-se no comunicado, onde a concelhia centrista ainda acusa o Governo de “desdizer o que havia anunciado em finais de 2017, sem qualquer pudor nem remorso”.

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