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Che Guevara: o homem que desprezava a humanidade

Há 50 anos morreu Che Guevara, o poster boy da revolução. Era uma máquina de matar ou um jovem sonhador? Das montanhas de Cuba aos Andes bolivianos, Rui Ramos conta a história de um fracasso.

Foi há 50 anos, a 10 de Outubro de 1967, que o mundo viu finalmente o seu cadáver, deitado numa maca, com os olhos entreabertos, vidrados. Depois de dois anos de mistério e rumor, ali estava, na lavandaria do hospital de Nossa Senhora de Malta da vila de Vallegrande, no sopé dos Andes bolivianos: era o médico argentino Ernesto Guevara, aliás “Che” Guevara, o “Che”, o ex-ministro do ditador cubano Fidel Castro, o homem que todos tinham esperado ver, a qualquer momento, irromper das selvas para fazer da América Latina um enorme Vietname, capaz de absorver a última gota do poder e prestígio dos EUA. Com ele, no sul da Bolívia, morria a grande ilusão castrista de revolucionar o continente a partir de uma ilha das Caraíbas protegida pela União Soviética.

A teoria guevarista do “foco guerrilheiro” ainda sobreviveu uns anos, entre os estudantes das universidades latino-americanas e europeias. Por fim, tudo acabou por se resumir à célebre fotografia de Alberto Korda estampada em posters e t-shirts desde os anos 60, e ao estilo masculino “manif”: a boina, a barba descuidada, a camisa fora das calças. Para além desta iconografia, o que representa Guevara, o que foi Guevara? Uma máquina de matar, friamente movida a fanatismo ideológico? Ou um jovem sonhador, exaltado por um ideal humanitário?

“Esta é a história de um fracasso”

“Esta é a história de um fracasso” – assim começou Guevara o seu relato da expedição militar cubana que dirigiu no Congo, em 1965. De facto, podia ter iniciado dessa maneira a história de quase tudo em que se meteu. Por exemplo, a sua administração da economia cubana, como presidente do Banco Nacional e ministro da Indústria, entre 1959 e 1965. Em Abril de 1959, Fidel Castro (antigo militante de um partido da direita nacionalista) ainda jurava em Nova Iorque que não era comunista e que contava com o investimento americano para desenvolver Cuba. Guevara, o seu jovem companheiro argentino e grande admirador de Estaline, ajudou-o a converter-se, prometendo que a estatização da economia faria a riqueza per capita de Cuba ultrapassar a dos EUA em 1980.

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Em 1959, Cuba, o segundo maior produtor mundial de açúcar, não era exactamente um país pobre. Tinha, por exemplo, mais televisões per capita do que a Itália, e mais estradas por quilómetro quadrado do que Portugal. O papel de Guevara, no seu novo país, foi o de Robert Mugabe no Zimbabué: fazer de Cuba uma ruína, que só os subsídios soviéticos aguentaram a partir da década de 1960. Além das estatizações em massa, Guevara decidiu abolir todos os incentivos económicos ao trabalho. Em 1965, quando abandonou o governo, o PNB per capita cubano afundara-se (em 1999, ainda não tinha regressado ao nível de 1959). Tudo faltava e havia filas para tudo. Guevara prometera uma sociedade rica e igualitária. Ajudou a fazer de Cuba uma sociedade pobre, onde o fosso entre o nível de vida da clique armada que constituía a nomenklatura do regime e o do resto da população se foi tornando abissal.

Com a revolução cubana, o comunismo renascia como uma epopeia ao ar livre, num país de praias exóticas, sob o comando de jovens literatos barbudos muito mais sexy do que os velhos filósofos alemães ou os funcionários russos da tradicional iconografia marxista.

Em 1975, no 1.º congresso do Partido Comunista de Cuba, Fidel Castro admitiu que, no tempo de Guevara, a liderança cubana desprezara a “ciência económica”. Mas o desprezo não se ficara por aí: chegara também à história. E se no primeiro caso pagaram os cubanos, no segundo foi Guevara quem pagou, quando, por volta de 1965, saiu de Cuba como caixeiro-viajante da revolução. A doutrina soviética da conquista do poder passava então por arranjar um partido, fazer propaganda, dirigir sindicatos, e infiltrar o Estado. Guevara veio vender ao mundo um método novo. Dispensava partidos e sindicatos. Era assim: no Estado a subverter, de preferência uma ex-colónia tropical, estabelecia-se um grupo de comunistas armados, numa parte remota do território, e mal provassem que o exército regular não era capaz de os eliminar, as massas camponesas viriam engrossar o “foco” guerrilheiro inicial, até este avassalar as cidades.

Teria sido assim, segundo Guevara, que ele e Fidel haviam conquistado Cuba entre 1956, quando desembarcaram clandestinamente na ilha com uns 80 homens armados, e 1959, quando entraram em Havana e tomaram conta dos ministérios. Acontece que não tinha sido assim. Em Cuba, Castro e Guevara haviam enfrentado um governo fraco e contestado por todos os partidos políticos, e a quem os Estados Unidos cortaram o apoio em 1958. Castro e Guevara, os jovens líderes da insurreição armada nas montanhas da ilha, não eram então publicamente comunistas. Pareciam apenas uns rapazes patriotas e fotogénicos, muito aplaudidos pela imprensa americana. As centenas de guerrilheiros que terão reunido nas montanhas desempenharam um papel secundário no derrube do governo de Fulgêncio Baptista: a maior parte dos mortos nesta fase da conquista do poder não resultou de combates entre os guerrilheiros e o exército nas serras, mas de confrontos entre manifestantes e a polícia nas cidades. Tudo foi finalmente decidido por intrigas de bastidores, que fizeram o ditador Batista fugir, convencido de que os EUA preferiam Castro para governar Cuba. Foi este vazio que Castro e Guevara vieram preencher.

De uma certa maneira, Castro e Guevara nunca perceberam ou não quiseram perceber como tinham ganho em 1959. E, por isso, não compreenderam que um bando de comunistas assumidos, plantado por Cuba noutro país, só podia reforçar os regimes ameaçados, unindo a opinião conservadora interna e suscitando o auxílio americano. Em 1967, na Bolívia, Guevara foi vítima de um mau livro de história (que ele próprio tinha escrito).

O novo poster boy da revolução

É fácil diminuir o mito. Muitos já o fizeram. Valerá mais a pena perceber como é que desta colecção de fracassos se chegou ao sucesso da t-shirt. Convém recordar a época. Depois de 1956, da denúncia de Estaline por Khrushchev no XX Congresso do PCUS e da invasão soviética da Hungria, ninguém que quisesse ser levado a sério entre os intelectuais ocidentais podia entusiasmar-se com a URSS, como ainda acontecera no tempo de Estaline. Falava-se então da “morte das ideologias”, precisamente para traduzir esse desprendimento em relação aos extremismos políticos. A revolução cubana começou a mudar tudo isto (mais tarde, a China de Mao teria efeito semelhante). Subitamente, o comunismo renascia como uma epopeia ao ar livre, num país de praias exóticas, sob o comando de jovens literatos barbudos, ao princípio sem partido nem burocracia, e muito mais sexy do que os velhos filósofos alemães ou os funcionários russos da tradicional iconografia marxista. Os escritores da moda em Paris, então ainda a capital intelectual da Europa, precipitaram-se a visitar Cuba, como fizeram os inevitáveis Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Mais: com Cuba ameaçada pelas invasões e embargos dos EUA, a simpatia pela revolução cubana ia além do comunismo, abarcando muitos nacionalistas ocidentais, ressentidos com a hegemonia dos EUA depois da II Guerra Mundial.

O novo comunismo latino e tropical assentava numa versão moderna do mito do “bom selvagem”: o do “bom guerrilheiro”, igualmente silvestre e puro. Rapidamente, o culto arranjou o necessário filósofo parisiense, na pessoa do jovem Régis Debray, que passou uns anos, em início de carreira, a elaborar a teoria do guevarismo e acabou depois por se juntar a Guevara na Bolívia. Interessou também Carl Schmitt, o velho filósofo do direito e companheiro de estrada do nazismo, que em 1962 descobriu na “guerra civil socialista” uma guerra sem limites, feita por combatentes “irregulares” e assente numa “hostilidade absoluta”, e por isso muito apropriada para pôr fim à civilização burguesa, com as suas guerras limitadas por regras humanitárias. O entusiasta de Hitler entrava com emoção no mundo de Guevara.

Ninguém imaginou que, no auge do seu fulgor mediático, Guevara se arrastava com 17 homens pelo sopé dos Andes, numa região de vales e colinas despovoadas, sofrendo de asma e diarreia e apertado pela tropa boliviana. Tudo correra mal.

Nos primeiros anos da década de 1960, Cuba não saía das primeiras páginas. Em 1962, quase provocou o fim do mundo, por causa dos mísseis soviéticos lá instalados. Os barbudos fascinavam a imprensa ocidental. Guevara, jovem (tinha 31 anos em 1959), bonito, vestido de maneira diferente, fumando enormes charutos, foi uma das primeiras encarnações do cool. Mais do que o comunismo, foi o novo consumismo da década de 1960, focado na juventude, na irreverência e no exotismo, que fez dele uma celebridade. Guevara entrou na selecção dos rebeldes fotogénicos, como John Lennon, Muhammed Ali, ou Jane Fonda. A sua primeira colecção de escritos em inglês foi publicada por uma das maiores editoras anglo-saxónicas, The Macmillan Company. A Macmillan não estava ao serviço da propaganda comunista: queria apenas fazer dinheiro. Guevara vendia. Quando morreu, o seu diário boliviano foi disputado por grandes editoras e jornais norte-americanos, que fizeram ofertas financeiras espantosas.

Ao novo sistema de consumo, interessava vender Guevara como um romântico desalinhado. Guevara, porém, nada tinha de romântico. Em 1966, partiu para a Bolívia acompanhado por quadros importantes da revolução cubana, e em comunicação com Castro. A aventura boliviana não era um capricho pessoal, mas parte da estratégia do governo de Havana para impor Cuba como a vanguarda revolucionária da América Latina. É verdade que Guevara deu a entender que apreciava mais a China maoísta, então já em conflito com Moscovo, do que a URSS (a quem nunca perdoou por ter cedido aos EUA em 1962, durante a crise dos mísseis). Mas a URSS, a única potência que verdadeiramente podia ajudar Cuba, percebeu a sua utilidade como ponte com uma esquerda então muito fragmentada, que os partidos comunistas clássicos tinham cada vez maiores dificuldades em enquadrar e dirigir. Os soviéticos toleraram assim as originalidades cubanas, apoiando-as um pouco, dificultando-as também um pouco, a ver no que davam.

A morte

Entre 1965 e 1967, não se soube de Guevara. A imprensa ocidental multiplicou as teorias e as notícias não confirmadas, criando a lenda. Guevara parecia estar em todo o lado, cercando os EUA, como Bin Laden quarenta anos mais tarde. Régis Debray, o filósofo parisiense do guevarismo, anunciava o iminente aparecimento do “Che” na cena mundial, “à frente de um movimento guerrilheiro como chefe político e militar indiscutível”. Ninguém imaginou que, no auge do seu fulgor mediático, Guevara se arrastava com 17 homens pelo sopé dos Andes, numa região de vales e colinas despovoadas, sofrendo de asma e diarreia e apertado pela tropa boliviana. Tudo correra mal. Estava isolado, sem comunicações com Cuba (por razões técnicas) e incompatibilizado com os comunistas locais (por razões políticas).

A versão oficial da história, durante muitos anos, ensinou que Guevara teria morrido a 8 de Outubro de 1967, em combate com o exército boliviano. De facto, foi ferido e capturado pelo 2.º Batalhão de Rangers, por volta do meio-dia do dia 8, numa ravina no vale do rio Churo, e executado à uma da tarde do dia seguinte, 9, na escola da aldeia de La Higuera. Os seus admiradores atribuíram a sua morte à CIA. Não era exacto. Os Rangers bolivianos tinham sido treinados e acompanhados por agentes da CIA. Mas a execução terá sido decidida pelo exército da Bolívia, sem conhecimento oficial dos EUA. Os generais bolivianos temiam que o governo americano, intimidado pela fama do “Che”, os obrigasse a poupar Guevara, como já fizera no caso de Debray, capturado algum tempo antes. Todos sabiam que tinham na mão uma celebridade. Em 2007, no quadragésimo aniversário da sua morte, um dos agentes da CIA que participou na sua captura tentou enriquecer com as relíquias que, a pensar na reforma, tinha tido o cuidado de guardar em 1967. Só as fotografias que tirou do cadáver foram então avaliadas em sete milhões de dólares. Tinha ainda uma mecha de cabelos para vender. Nem o comércio dos restos mortais de santos na Idade Média foi um negócio tão próspero.

O corpo de Che Guevara foi exibido pelos militares bolivianos

AFP/Getty Images

Um “ser superior”

Para milhões de cubanos, Guevara não é um mistério: é apenas um dos fundadores de uma das maiores prisões do mundo, que nos mapas vem identificada como a ilha de Cuba. Quem o quiser conhecer, pode ler o livro de Reinaldo Arenas, Antes que Anoiteça. Guevara nunca é aí mencionado. Mas essa “ditadura pudica, séria, e absolutamente entediante” que vitimou Arenas e muitas gerações de cubanos desde 1959 tem o seu ADN. Arenas nunca foi um admirador da democracia ou da economia de mercado. Mas percebeu uma diferença fundamental, como explicou ao fugir de Cuba para os EUA: “A diferença entre o sistema comunista e o capitalista é que, embora ambos nos dêem um pontapé no cu, no comunista dão-no-lo e temos de aplaudir, e no capitalista podemos gritar”. Na Cuba de Guevara, quem levava pontapés tinha de os aplaudir. E, para perceber porquê, vale a pena ler o próprio Guevara.

O “povo” foi a grande companhia imaginária de Guevara. “Sem o apoio da população” nada podia ser feito, repete vezes sem conta nos seus escritos. Mas essa população não era a das pessoas que realmente existiam. Era um povo teórico, que o próprio Guevara se propunha criar submetendo as pessoas à hierarquia e à disciplina rígidas do exército revolucionário. Fora da hierarquia e da disciplina revolucionária, o povo não lhe interessava: “A democracia revolucionária não se exerce na condução dos exércitos em nenhuma época e em nenhuma parte do mundo, e onde isso foi tentado, acabou em fracasso”. Guevara alude muito aos “camponeses pobres”. Mas diante desses “camponeses pobres”, no Congo e na Bolívia, percebeu que não podia comunicar com eles. No Congo, porque os revolucionários cubanos que o seguiam nunca levaram a sério os nativos: “Os nossos eram estrangeiros, seres superiores, e faziam-no sentir com demasiada frequência”. Ele, porém, não era melhor, quando escrevia que viera para “cubanizar os congolenses”, impor ao desleixo dos nativos a regra ascética do exército revolucionário cubano (ficando furioso quando julgou assistir à “congolização dos cubanos”, contaminados pela anarquia local).

Guevara controlava tudo, centralizava tudo, mandava em tudo e não confiava em ninguém. Todos se sentiam inibidos na sua presença. Em geral, só mostrava apreço pelos mortos, porque, aos seus olhos, só a morte provava nos outros a devoção revolucionária.

Na Bolívia, os camponeses que o viram e ao seu bando chamaram-lhes, como Guevara notou no diário, “os gringos”. Era o nome dado aos brancos dos EUA. Guevara, o inimigo dos gringos, era um gringo: o filho literato de uma família de aristocratas e milionários argentinos, definido acima de tudo pelo ancestral ressentimento das elites espanholas da América contra os EUA – um sentimento suficientemente forte para a família se lembrar que o jovem Guevara, em 1945, achara muito mal a entrada da Argentina na guerra contra a Alemanha nazi, porque considerava os EUA, e não o nazismo, o inimigo principal. Curiosamente, ao embaixador soviético em Cuba, Nicolai Leonov, Guevara não pareceu um latino. Era demasiado organizado, pontual, exacto: “como um alemão”.

O apelo de Guevara, como reconheceu Régis Debray em A Guerrilha do Che, esteve sempre confinado à “pequena burguesia democrática das cidades” — de facto, aos estudantes universitários, filhos das classes média e alta da América Latina. Mas nem estes escaparam ao imenso desprezo de Guevara. Ele vinha da mesma classe, mas sentia-se transfigurado. Era um revolucionário – sem família, sem desejos, sem aspirações que não fossem a revolução. Mas não via essa transformação em mais ninguém. O seu relato do Congo ou o diário da Bolívia são terríveis. São o testemunho cruel de um homem exasperado pela imperfeição de tudo e de todos, a começar pela fraqueza e pela irresponsabilidade que constantemente atribuiu aos seus próprios companheiros. Permitia-se apontamentos venenosos, como quando notou, no diário da Bolívia, que “o Francês (Debray) foi muito veemente ao mencionar que podia ser muito útil no exterior”, insinuando assim que o seu filósofo oficial apenas desejava trocar as agruras da luta na selva tropical pelos confortos dos debates intelectuais nas universidades europeias. Debray nota que Guevara não queria que nenhum dos que então estavam com ele na selva boliviana voltasse à cidade. Tratou essas propostas de regresso como impulsos de cobardia e deserção, mesmo quando isso poderia ter reatado contactos e comunicações cuja falta foi fatal. Guevara controlava tudo, centralizava tudo, mandava em tudo e não confiava em ninguém. Todos se sentiam inibidos na sua presença, incapazes de tomar iniciativas sem a sua aprovação. Em geral, só mostrava apreço pelos mortos, porque, aos seus olhos, só a morte provava nos outros a devoção revolucionária. No Congo, encheu-se de nojo pelos seus companheiros quando compreendeu que todos queriam “salvar-se”, e ninguém queria morrer pela revolução.

O anjo severo

Guevara desprezava profundamente os seus semelhantes, porque se convencera de que o mundo dependia apenas da vontade e do conhecimento. Por isso, os males do mundo não o levavam a compadecer-se pelos outros, mas a desprezá-los: se o mundo era mau, a culpa era de cada ser humano, por não se dotar do conhecimento correcto e não agir em conformidade. O desígnio de Guevara era fazer um “homem novo” a partir desse refugo humano. A magnitude da obra não lhe permitia sentimentalismos humanitários. No Livro Negro do Comunismo, a equipa de Stéphane Courtois dedicou duas páginas ao “reverso do mito” de Guevara, denunciando os fuzilamentos que ordenou em Cuba.

Guevara ter-se-ia divertido imenso com esta acusação. Uma das primeiras prioridades dos revolucionários em Cuba foi precisamente restaurar a pena de morte, abolida havia décadas. O próprio Guevara, o principal carrasco de Cuba em 1959-1961, descreve os fuzilamentos, inclusivamente as reacções das vítimas no momento final, com palavras de apreço por aqueles que mostraram “serenidade” perante as armas. Tudo para ele estava justificado desde que feito, sem outras intenções, em nome da criação de “um homem novo”. Em 1991, ao falar com antigos guerrilheiros argentinos, V.S. Naipaul percebeu a ética clerical de disciplina e serviço que os definia. Em França, em 1976, dois jovens maoístas, Guy Lardreau e Christian Jambet, no livro L´Ange, explicaram que o que definia o revolucionário era a ascese angélica, a recusa do desejo, porque o desejo prende aos outros, e ao “sistema”. Poder-se-ia, sem dúvida, tentar compreender Guevara como um monge guerreiro do ateísmo. Mas a analogia religiosa tem risco: fazer esquecer a ordem científica que, através do marxismo, sustentava a devoção de Guevara. Para Guevara, a revolução não era uma mística, era algo que fazia sentido racionalmente. Guevara viu-se sempre a si próprio como uma espécie de cientista ou técnico das revoluções.

Por fim, tudo acabou por se resumir à célebre fotografia de Alberto Korda estampada em t-shirts

AFP/Getty Images

Em coisas revolucionárias, o fracasso, para Guevara, só tinha uma explicação: a falta de zelo e de conhecimento da teoria correcta. Ao contar a história de um camarada morto numa guerrilha falhada na Guatemala, não lhe ocorreu outra razão senão esta: “Não foram atendidas as indicações tão simples que eram dadas”. Tudo tinha sido uma colecção de erros: “a zona foi mal escolhida, os combatentes não tinham preparo físico”, etc. Foi assim também que ele compreendeu o seu fracasso económico em Cuba. Os trabalhadores deveriam ter produzido bens e serviços por zelo ideológico, sem outro incentivo. Mas ainda não estavam suficientemente amestrados. Em O Homem e o Socialismo em Cuba, de 1965, ensinou por isso que a “ditadura do proletariado”, ao contrário do que ensinavam os clássicos marxistas, não se devia exercer apenas contra a burguesia, mas contra o próprio proletariado, ou melhor, sobre cada um dos membros do proletariado “individualmente”. Ou seja, a ditadura era para todos, porque todos, burgueses e trabalhadores, ricos e pobres, eram inimigos da revolução. Guevara queria transformar as pessoas. Nunca lhe interessou percebê-las.

E os outros também quase nunca o perceberam. Admiram-no como um sonhador temerário, quando ele disse e repetiu que o verdadeiro revolucionário é alguém que não tem “sonhos” nem esperanças, mas apenas a determinação de lutar. É costume comparar a fotografia do Guevara morto a uma representação clássica do Cristo morto. Nietzsche gostava de dizer que Cristo morrera de compaixão pelos homens. Mas este messias marxista nunca poderia ter morrido de compaixão. Se um sentimento o tivesse de matar, teria sido o desprezo – o desprezo pela humanidade. O desprezo que hoje sentiria por todos aqueles que, nos campos universitários ocidentais, não querem morrer e andam com uma t-shirt com o seu retrato.

Uma primeira versão deste texto foi publicada, em francês, na revista “Histoire et Liberté”

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