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Entrevista à chef Marlene Vieira, no seu mais recente restaurante, com nome próprio, no Terminal de Cruzeiros de Lisboa, em Santa Apolónia. 16 de Novembro de 2022 Restaurante Marlene, Santa Apolónia, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
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Nas vésperas da próxima gala das estrelas Michelin, que acontece a 22 de novembro, conversámos com Marlene Vieira sobre o passado, presente e futuro.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Nas vésperas da próxima gala das estrelas Michelin, que acontece a 22 de novembro, conversámos com Marlene Vieira sobre o passado, presente e futuro.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Chef Marlene Vieira: "Há grandes grupos gastronómicos que não deixam as mulheres saírem mais cedo para amamentar"

Aterrou em Manhattan 5 dias depois do 11 de setembro. Lá aprendeu que o tradicional português casa com fine dining. O sucesso fez-se com vários saltos de paraquedas. Sabe que é "one of the guys".

Na manhã seguinte, um olhar mais atento deixava observar pequenos vestígios de uma noite animada. Marlene Vieira tinha acabado de receber no seu mais recente projeto gastronómico no Terminal dos Cruzeiros de Lisboa (o “Marlene,” — assim mesmo, com uma vírgula a seguir) os chefs Rui Paula, Henrique Sá Pessoa e Óscar Geadas, dando o primeiro de quatro jantares que pretendem celebrar cada estação. Na noite de 14 de novembro — que também foi pretexto, através dos convidados, para antecipar a chuva de estrelas gastronómicas — comeu-se o outono.

Cresceu no norte, mas mais do que nortenha, é uma “mulher portuguesa”. Aos 12 anos (ainda sem altura para chegar à bancada, notou naquela época o pai) viveu, pela primeira vez, uma cozinha profissional. Ficou de imediato rendida pelo universo que veste a jaleca. Começou muito cedo, mas precisou de algum tempo para conquistar o seu lugar. Hoje comanda com o marido, o chef João Sá, o grupo Marlene, que integra o Marlene, o Sála de João Sá, o Zunzum Gastrobar e o Marlene Vieira na Ribeira.

Uma carta fora do baralho (desde muito nova, conta-nos), mas perfeitamente integrada, num mundo indiscutivelmente mais masculino do que feminino. Mas porque é que isto acontece? Porque é que ouvimos falar menos das mulheres chefs? O que é que já está a mudar? Nas vésperas de uma nova edição da gala das Estrelas Michelin na Península Ibérica (terça-feira, 22 de novembro), é inevitável lançarmos estas questões. Uma conversa longa, que toca o passado, presente e futuro.

Entrevista à chef Marlene Vieira, no seu mais recente restaurante, com nome próprio, no Terminal de Cruzeiros de Lisboa, em Santa Apolónia. 16 de Novembro de 2022 Restaurante Marlene, Santa Apolónia, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Marlene Vieira apaixonou-se pela cozinha profissional aos 12 anos, quando ajudava o pai a fazer entregas de carne em restaurantes.

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Descrevem-na muito como “uma mulher do norte”. O que é ser uma mulher do norte?
Dizem muito nisso, mas eu não digo que sou uma mulher do Norte. Eu identifico-me como uma mulher portuguesa.

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E a mulher portuguesa, como é?
A diversidade é uma palavra que cabe em todos os portugueses. Esta capacidade de criar muitas coisas. Por todo o país, vemos em terra por onde passamos coisas completamente diferentes da terra do lado. E isso vem deste nosso espírito do desenrasca, de sermos capazes de fazer qualquer coisa, em qualquer circunstância, mesmo nas mais difíceis. Não acho que o desenrasca seja uma coisa má.

Tem um lado positivo.
Tem um lado muito positivo. Obviamente que não podemos trabalhar só em função disto, que é o que nos caracteriza muito enquanto povo. Uma grande dificuldade que temos é a de programar para o futuro. Acho que as gerações novas têm aprendido com os erros do passado e fazem um esforço muito grande por não cometer tantas vezes esse erro da não programação. Mas tudo tem um lado bom e um lado mau. Os nórdicos são muito programados, têm tudo muito bem delineado, mas depois são verdadeiramente felizes quando vêm aqui e veem que vivemos um dia de cada vez.

Que tipo de miúda era?
Uma maria-rapaz. Era curiosa. As meninas, supostamente, nessa altura tinham determinadas funções e formas de estar. Era uma carta fora do baralho.

Que tipo de coisas gostava de fazer?
Tudo o que era suposto não fazer. Jogar futebol, correr, subir árvores, roubar fruta. Fazia o que a curiosidade mandasse, com rapazes ou raparigas. Fazia todas as brincadeiras. Cresci numa aldeia e pude ser livre — apesar de as nossas mães e avós nos tentarem levar pelo caminho de aprender a costurar, aprender a bordar. Também aprendi isso tudo. Não podia negar. Ninguém me perguntava se queria. Ou ia ou ia.

O seu pai trabalhou num talho. Essa altura trouxe-a até aqui.
Sim, durante dois ou três anos o meu pai teve um talho. Foi determinante, porque foi assim que entrei na cozinha profissional. Não tenho aquela história romântica de: “Ai, a minha avó ensinou-me a fazer as receitas de bolo”. A minha avó não nos deixava tocar em nada, nós só tínhamos de fazer aquilo que ela não gostava de fazer — descascar batatas, descascar cebolas, ninguém gosta. Entrei pela mão do meu pai nas cozinhas profissionais, porque ele ia entregar a carne. Durante um certo período, fui com ele para ajudá-lo. Um dos restaurantes a que fui era o do Miguel Castro Silva. Tinha dez anos. Lembro-me perfeitamente do espaço, do que comi lá. Lembro-me de outros, mas houve um em particular que foi amor à primeira vista. Um clique instantâneo.

Que restaurante era esse e o que é que a atraiu mais?
Era o Costa Brava, que já fechou. Era dirigido por uma mulher super jovem, com 22 ou 23 anos. A Isabel. Há 30 anos, uma cozinha era composta sempre por pessoas muito mais velhas, com uma bata aos quadradinhos. Nesta altura, foi a única em que vi uma mulher de jaleca, de barrete na cabeça, muito segura, com uma equipa, tudo muito bem organizado, não havia sujidade na cozinha. Era diferente daquilo a que estava habituada.

O horário é um problema quando surgem filhos, sobretudo para as mulheres, porque se criou a ideia de que são elas que têm de ficar em casa, a cuidar dos filhos quando eles ficam doentes, quando estão de férias, enfim.

Não só era jovem, como era mulher.
Mulheres havia muitas. Mas faziam cozinha tradicional, de conforto, de bata aos quadradinhos. A Isabel não fazia nada disso. Nem fazia cozinha portuguesa. Fazia uma cozinha baseada na francesa, com toques de cozinha portuguesa. Não era alta cozinha, mas já havia mais organização, mais método de trabalho, com menu, entrada, pratos, sobremesas, com princípio, meio e fim. Já era uma cozinha criativa. Não era um fine dining, mas era uma cozinha gastronómica. A forma como ela se movia, como comunicava… Sei que fiquei alguns minutos a observá-la, enquanto ela explicava ao meu pai as peças de carne que queria. Os meus olhos estavam a fazer um raio-X a tudo. Nesse dia, disse ao meu pai que queria estagiar lá nas férias do verão. O meu pai disse-me: “Mas tu nem chegas à bancada.”

Que idade tinha a Marlene?
Tinha 12 anos. Disse-lhe que me metia em cima de uma caixa, qualquer coisa. Eu fazia qualquer coisa. Ele falou com a Isabel e ela concordou, disse que cuidava de mim.

Foi a sua primeira experiência na cozinha. O que fez?
Fiz tudo naquele restaurante. Mas não saí da escola. Ia para lá nos tempos livres, férias, feriados. Fiquei mesmo obcecada por aquilo.

Soube logo que era isto que queria?
Não. Também jogava voleibol federado. Foi um dilema muito grande. Sempre fiz desporto até ir para a Escola de Hotelaria [de Santa Maria da Feira]. Aos 15 ou 16 anos tinha de decidir o caminho. A Isabel sentou-me e disse “vamos conversar”. Perguntou-me se era muito boa no desporto, e disse-lhe que era boa, mas não era a Rosa Mota. Ela perguntou-me como é que eu ia viver do desporto. “Sei lá… tirar um curso e ser professora de educação física.” Ela sugeriu que eu fizesse o curso de cozinha, porque acreditava que o meu futuro era aí. E foi o que fiz. Foi assim que começou a ser muito à séria.

Há cozinhas difíceis, com ambientes difíceis.
Sim, há cozinhas difíceis e há chefs difíceis também em todo o lado. O ambiente são as pessoas que os fazem.

Mas com o tema de assédio em cima da mesa sente que antes era mais duro e agora há um despertar de consciência para que se construa um bom ambiente?
Antes era mais duro, em todas as áreas. Tenho de insistir nisto. No caso das mulheres e de pessoas de classes sociais inferiores, eram muito submissos. Fomos educados a obedecer sempre a tudo, a fazer tudo o que nos pedem, tudo o que nos mandam, seja numa cozinha, seja num jornal. Acho que não podemos fechar isto na cozinha. Acho que o mundo evoluiu, com mais respeito pelos Direitos Humanos, com mais atenção à paridade e igualdade.

Mas há áreas mais sensíveis a isto, pelo tipo de pressão, pelo stress, pelos horários…
O horário é um problema quando surgem filhos, sobretudo para as mulheres, porque se criou a ideia de que são elas que têm de ficar em casa, a cuidar dos filhos quando eles ficam doentes, quando estão de férias, enfim. Hoje em dia ainda há muito isto. Eu própria tenho este embate quando uma cozinheira, uma pasteleira, uma empregada de mesa vem ter comigo, vezes e vezes, a dizer que têm de ir para casa porque a filha está doente. Então e o marido? Muitas vezes têm disponibilidade. “Ah, mas ele não vai saber cuidar do filha.” Como assim? Não é só levar ao médico? Dar o remédio? As mulheres também acham que a mãe é que tem de cuidar.

Não estará relacionado com uma questão de formatação? Durante muito tempo, era isso que se esperava da mulher, da mãe.
Sim, [a formatação] não nos deixa avançar nesse sentido. Há um sentimento de culpa muito grande. Sentimo-nos culpadas de não estarmos presentes nos momentos chave. Façam um estudo com as mulheres e tirem as conclusões. Está intrínseco. Vai demorar tempo até haver esta igualdade de obrigações.

Quando teve a sua filha, foi a primeira a regressar mais em força ao trabalho.
Fui, mas eu também tenho essa culpa de vez em quando. Também sinto estas coisas, também fico com o coração nas mãos quando tenho a minha filha doente em casa, com a minha mãe ou sogra a tomar conta dela.

Porque sente que, como mãe, era quem devia estar lá?
Sim. Depois tento ser mais racional. Está tudo bem, se houver algum problema, ligam-me.

Aos 21 anos saiu de Portugal e aterrou em Nova Iorque para abrir o Alfama, em Manhattan.
Nunca tinha saído de Portugal, só ia a Espanha tomar um banho no lago. Nunca tinha andando de avião.

Entrevista à chef Marlene Vieira, no seu mais recente restaurante, com nome próprio, no Terminal de Cruzeiros de Lisboa, em Santa Apolónia. 16 de Novembro de 2022 Restaurante Marlene, Santa Apolónia, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR Entrevista à chef Marlene Vieira, no seu mais recente restaurante, com nome próprio, no Terminal de Cruzeiros de Lisboa, em Santa Apolónia. 16 de Novembro de 2022 Restaurante Marlene, Santa Apolónia, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Em abril de 2022, Marlene Vieira apresentou mais um projeto à capital portuguesa, assinando-o com o seu nome: um fine dining onde a cozinha criativa se alia à comida tradicional portuguesa.

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Sentiu medo?
A novidade para mim é sempre algo bem-vindo, desde os tempos de criança. Eu causava essa insegurança toda a mim mesma. Sou eu que me chocalho. Lembro-me de chegar lá sozinha. Tinha um amigo, mas não quis que ele me fosse buscar [ao aeroporto]. Queria perder-me. E fui perder-me para Manhattan. Andei duas ou três horas. Senti muito frio nas minhas orelhas — tive de comprar um gorro, nunca tinha usado um gorro na vida. Eram os ventos do Canadá, explicaram-me. Cheguei cinco dias depois do 11 de setembro. Não estava nos meus planos essa parte.

Como foi viver isso?
Bastava ouvir-se um grito na rua, que começava toda a gente a gritar. Foi uma loucura. Eu não tinha vivido o 11 de setembro, mas aquelas pessoas tinham estado lá. Estavam em alerta constante, em pânico total. A minha terapeuta diz que eu apaguei isso do meu cérebro, porque foi um bocado traumatizante. Parece que não foi real. Parece que estive dentro de um filme, uma coisa muito longe da nossa realidade. Ainda hoje me pergunto se vivi aquilo.

Sentiu o choque cultural?
Claro. Via pessoas de pijama no supermercado — depois fiz o mesmo. Achei: “Olha, que fixe, acordar e ir logo ao supermercado”. Lá não é como cá, ninguém olha para nós. Ninguém julga. Não existe isso em Nova Iorque. A sensação de liberdade de se ser quem se quiser é muito grande. Uma pessoa pode fazer o pino na rua e ninguém quer saber. Aliás, as pessoas mais atrevidas são as que têm mais mérito. Cá o mindset era: “Mas aquela mulher acha que pode ser ambiciosa? Ela tem é de estar em casa a cuidar dos filhos.” Mas também senti que se misturava liberdade com loucura — e senti interferência na liberdade do outro. O meu amigo era gay e eu ia com ele a bares gays. Um desses bares ia-se transformando: à sexta-feira era para gay, ao sábado, para não gays e no dia seguinte era para africanos. Esta divisão chocou-me. Não entendia isso.

A primeira coisa que tentou cozinhar sozinha foi um pastel de nata, que correu muito mal, quando era criança. Foi curiosamente o pastel de nata do Alfama que a fez ganhar três estrelas do NY Times.
Pois foi [risos]. Sou mesmo teimosa.

O que é que trouxe de Nova Iorque para Portugal?
A minha cozinha sempre de base francesa, muito clássica. O convite para Nova Iorque chegou-me por um amigo que queria fazer cozinha tradicional portuguesa, num fine dining. Isto era um bocadinho esquisito na altura, porque se associava a cozinha portuguesa às tais mulheres a cozinharem com as batas às riscas. Aquilo não fazia sentido nenhum, mas quis experimentar. E pronto, começámos aos poucos. Tive de estudar e foi ai que comecei a ler os livros da Maria de Lourdes Modesto e fui percebendo que o nosso receituário era enorme. O restaurante era o Alfama — e, portanto, Alfama, Lisboa, Lisboa, pastéis de nata. Tínhamos de ter os pastéis de nata. Na escola já tinha aprendido a receita — decoro muito bem receitas, porque sempre tentei compreende-las — com a minha professora de pastelaria. Era muito boa [a receita]. Só mudei uma coisa: na altura a moda era usar margarina vegetal — mas os pastéis de Belém e o no livro da Maria de Lourdes Modesto usava-se banha na massa. Foi o que fiz. Construí o meu pastel de nata com estes toques.

É curiosamente fora de Portugal que começa a trajetória em torno da cozinha tradicional portuguesa.
Sim. Fomos fazendo e experimentando receitas, tentando fazer sempre o mais original possível — até porque não conhecíamos e tínhamos de partir dai. De certa forma, especializei-me naquilo: cozinha portuguesa em ambiente de fine dining.

Depois houve vários hotéis, Manifesto, Avenue, Time Out Market, projeto de catering, Panorâma, dois livros, deu aulas, Zunzum Gastrobar e Marlene.
Sim. Estamos aqui.

Entrevista à chef Marlene Vieira, no seu mais recente restaurante, com nome próprio, no Terminal de Cruzeiros de Lisboa, em Santa Apolónia. 16 de Novembro de 2022 Restaurante Marlene, Santa Apolónia, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Marlene Vieira acredita que a única forma de uma mulher vingar neste universo passa por ter os meios necessários para investir num espaço seu. Os grandes grupos preferem os homens, os mais populares.

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Um caminho que se fez sempre a subir?
Não, não.

Onde é que desceu?
Quando tive a minha filha. Pelo menos, na consideração de quem avalia.

Porquê?
Porque não tinha um restaurante de rua, por não ter uma montra muito bonita. Tinha uma montra no Time Out Market, que não era um restaurante, mas que tinha uma cozinha que fazia mais refeições do que muitos restaurantes. Com estratégia e comida de qualidade. A minha filha nasceu quando fechou o Avenue. No início, decidi que ia ficar com ela, fazendo a gestão [do Time Out] à distância — sendo que ali os primeiros dois ou três meses foi muito complicado, porque eu não sabia nada sobre ser mãe, não sabia nada sobre bebés. Não sabia nada.

Caiu de paraquedas na maternidade?
Voltei a chocalhar o meu mundo. Vou sempre à descoberta, sem nenhum tipo de segurança, um bocadinho em queda livre. Sou portuguesa. O que é que posso fazer? Isto acontece porque eu acho sempre que consigo arranjar soluções. Um dia pode acontecer não conseguir.

Até agora conseguiu sempre.
Sim. Como diz a minha terapeuta: alguma coisa bem hei de estar a fazer.

Sente síndrome de impostor?
Já ouvi falar nisso.

É sentir que, apesar de várias conquistas, não se é merecedor daquilo que se alcançou.
Sim, às vezes sinto. Como ando sempre em queda livre, parece que nada foi muito organizadinho. Parece que foi tudo muito planeado, mas não planei absolutamente nada. Planeei pequenos passos, depois vou resolvendo questão a questão. De repente, percebo que atravessei o rio. É basicamente assim.

Não acha que com os outros também é assim?
Mais ou menos. Os chefs com quem eu trabalho às vezes dão-me ideia de que estava destinado a ser assim, porque fizeram escolhas muito assertivas. Eu acho que vou andando.

Acha que ser uma mulher num mundo dominado por homens pode ter contribuído para esses sentimentos? Sente-se deslocada?
Não. Quando estou no meio deles, em momentos como no jantar de ontem, sinto que aquele é mesmo o meu espaço, que tenho de estar ali, que tenho capacidade para estar ali. Não me sinto menos. A sociedade faz-me sentir menos, os meus pares não. Os meus pares são quem me diz que sou capaz, que sou muito boa naquilo que faço.

Sente que já a tentaram fazer sentir menos neste trabalho?
Talvez, mas mais pelos clientes. Quando estava como chef no Avenue fazia questão de ir à mesa dos clientes e de me mostrar. E eles perguntavam: “Uma mulher chef?”. Perguntava se havia algum problema e eles diziam “não, não”. Não há popularidade nas mulheres chefs. Há nos homens.

Há mais mulheres chefs do que aquelas que se conhecem? Fora das luzes dos holofotes?
Ui. É o que mais há.

Não se investe em mulheres. Nós temos de ser as investidoras de nós próprias. Ou fazemos por nós ou nada acontece.  E nem todas as mulheres têm condições para poderem investir.

Porque é que isto acontece?
Tem que ver com esta cultura de estar quietinha, sossegada, ganhar um dinheirinho, cuidar dos filhos e está tudo bem. A mim faz-me muita confusão quando os chefs me dizem: “Eu tenho muitas mulheres cozinheiras e muitas delas são chefs.” E eu digo: “Então e onde é que ela está? Da próxima trazes e apresentas: esta é a mulher que toma conta da minha cozinha”. É o tipo de repressão portuguesa, que se faz com as mulheres, com as classes mais baixas, com outras culturas.

É um problema de Portugal?
Em Portugal estamos muito fechados nesse sentido. Temos muito medo de perder o nosso palco. Eu também sinto esse medo às vezes, não vou mentir. Fico insegura. Agora conhecem a Joaquina e a Antonieta, será que vou perder o meu lugar? Depois digo que não, não vou. Porque já o conquistei.

É bom virem mais?
É muito bom. Juntas vamos ter mais força, sentimo-nos menos sozinhas.

Na sua cozinha, como é composta a equipa?
Três mulheres e três homens. Eu e o João [Sá] temos 50 funcionários, pouco mais de 50% são mulheres e o resto são homens. Mas isto não acontece porque selecionamos, de propósito, mais mulheres. Acontece porque as mulheres procuram-nos mais. Por alguma razão, é assim. Durante os primeiros meses da maternidade, a mulher que amamenta tem o horário reduzido e nós respeitamos essa lei. Há muitas empresas que não respeitam isso, esqueçam. Há grandes grupos gastronómicos que não deixam as mulheres saírem mais cedo para amamentarem. Isto acontece. E acontece porque não há fiscalização. Como é que as mulheres não hão-de abandonar? É um direito, está na lei. Também acontece o inverso: há pouco tempo um chef conhecido foi pai, e eu comentei com ele que ia poder finalmente descansar. Ele respondeu-me que dois ou três dias depois [de o filho nascer] ia voltar ao trabalho. Ele tem que ficar ao lado da mulher.

Sente que tem de estar constantemente a explicar este tipo de coisas?
Constantemente. Ainda há muito trabalho pela frente, seja para homens ou mulheres. Este chef de que falei não se sente livre para ficar ao lado da mulher. Tem medo do chef principal. São exemplos de empresas muito grandes, onde é uma hipocrisia total, porque supostamente têm de dar o exemplo e depois não cumprem as regras. Depois é um restaurante pequeno que vai cumprir? Em Portugal não há fiscalização.

Entrevista à chef Marlene Vieira, no seu mais recente restaurante, com nome próprio, no Terminal de Cruzeiros de Lisboa, em Santa Apolónia. 16 de Novembro de 2022 Restaurante Marlene, Santa Apolónia, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Com o marido, o chef João Sá, comanda o grupo "Marlene,", que integra o Marlene, o Zunzum Gastrobar, o Sála de João Sá e o Marlene Vieira no Mercado.

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Acha que por ser mulher teve de trabalhar mais para chegar onde chegou?
Não sei. Acho que quando temos certos objetivos, quando queremos queremos aprender muito, mais do que aquilo que é suposto, temos de trabalhar sempre mais, independentemente de se ser mulher ou homem. O ser só cozinheira, olhar para o livro e copiar receitas, nunca me chegou porque sempre tive esta ânsia de fazer coisas diferentes, coisas novas. E isso nunca me vai dar descanso. Nunca vou estar em casa às sete da tarde, a dormir, a descansar ou a brincar. Tem muito que ver com a personalidade. Quem conquista estas coisas tem na sua personalidade o espírito de trabalho. Mas acho que se fosse homem ia ter dificuldades, talvez outras.

As oportunidades para homens e mulheres são iguais?
Acho que não há tantas oportunidades para mulheres como há para os homens, por uma questão da popularidade. Um produto popular  é mais fácil de vender. As mulheres chefs não são populares, e por isso não integram tão facilmente as cadeias internacionais e os grupos gastronómicos.

Aproxima-se a próxima gala das estrelas Michelin.
Não tenho esperança de ganhar este ano. Até porque abrimos o restaurante já muito fora das visitas dos inspetores. Há várias ao longo do ano, se houve uma ou duas cá, não foi suficiente. É uma questão de timing, mas gostaria que este restaurante fosse um dia premiado. Acho que merecia ganhar a estrela Michelin. Acho que a minha equipa e este restaurante mereciam.

Quem é que acha que não tem e merecia ter?
Quem não tem e merecia ter… o Sála merece e não é pelo João ser meu marido. Ele faz uma cozinha incrível, muito própria e que representa o que são os portugueses no passado, presente e futuro. O João tem origens angolanas e é filho da história deste país, das pessoas que estiveram fora e voltaram. No norte, o Euskalduna [do chef Vasco Coelho Santos] também merece uma estrela.

Não há nenhuma mulher portuguesa com estrelas Michelin em Portugal. Se a Marlene ganhasse, seria a primeira.
Não há nenhuma. Mas isso não seria o mais importante para mim.

Esta gala é um bocadinho o reflexo desta falta de igualdade de que temos estado a falar?
Mais uma vez, tem que ver com a questão da popularidade, que está ligada às oportunidades. Estes restaurantes gastronómicos o que têm mais à frente são homens. Pensem bem: quantos investidores chefs, ou seja, proprietários de restaurantes em Portugal existem? Há muito mais chefs mulheres proprietárias dos seus restaurantes. É preciso muito investimento para se ter um restaurante gastronómico.

Gostaria que este restaurante fosse um dia premiado. Acho que merecia ganhar a estrela Michelin. Acho que a minha equipa e este restaurante mereciam.

As mulheres têm de ser proprietárias para conseguir furar neste mundo?
Não têm outra forma. Não há outra forma. Não há portas abertas para as mulheres fazerem a sua cozinha em restaurantes fine dining. Não há propostas de trabalho, não há um convite. E também não sei se elas se propõem. Não se investe em mulheres. Nós temos de ser as investidoras de nós próprias. Ou fazemos por nós ou nada acontece.  E nem todas as mulheres têm condições para poderem investir.

Como é que conseguiu?
Porque fui para o Time Out Market e montei um negócio super sustentável que me permitiu alimentar outros sonhos.

Foi um passo estratégico.
Foi. Entrei para a Time Out Market porque, na altura, o João Cepeda, quando estava a montar o projeto, foi buscar os chefs que tiveram a melhor avaliação pela crítica da Time Out naquele ano. Nem queria acreditar, não percebia porque é que me estava a convidar, havia tantos chefs mais conhecidos. Lá está… era a síndrome do impostor a falar. Lembro-me de chorar nos primeiros dias porque não tinha clientes. Fui ingénua porque comecei por fazer uma cozinha de fine dining adaptada ao mercado. Mas vi que não estava resultar e num mês e meio mudei o menu todo. Pensei no Mercado de São Miguel, em Madrid, onde já tinha estado, e perguntei-me: “Quem é que vai ao Mercado de São Miguel? Não são os espanhóis, são os estrangeiros”. Depois pensei: “E o que é que o estrangeiro procura em Portugal? O very typical“. Apostei em cozinha portuguesa genuína com o bom produto. E o universo quis que o Avenue fechasse e que ficasse ali [Time Out Market], 100% focada. E o meu objetivo ali era fazer mais fila do que o Henrique Sá Pessoa. [risos]

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E conseguiu?
Consegui. Mas isto era só um desafio. Eu queria mais. Queria chegar ao sonho, mas ainda não tinha condições porque precisava de mais dinheiro. Como é que eu conseguia mais dinheiro no Time Out Market? Esta era a minha questão.  O [José] Avillez disse-me uma coisa que me ficou para sempre na memória e tenho de lhe agradecer por isso. Foi no Peixe em Lisboa. Eu e o João estávamos lá com uma banca. O Avillez também, mas com uma fila enorme — e nós com ninguém. Ele perguntou-nos: “Qual é o vosso melhor prato?”. Nós ficámos desconfiados, porque é que ele queria saber? Já não me lembro o que é que respondemos, mas ele disse-nos: “Eu vou vender a vossa loja também, mas vocês têm de ser muito rápidos… quanto mais rápidos, mais vendem”. Aquilo nunca mais saiu da minha cabeça. Quando cheguei ao mercado da Time Out, precisava de mais dinheiro do que aquele que estava a fazer — aquele servia só para pagar as contas. Por isso decidi montar uma cozinha de produção, limitar o tempo, comecei a vir cá para fora ver o que é que corria melhor e pior e comecei a criar uma estratégia. E hoje sou uma das lojas que mais vende. Depois, abrimos o Sála, abrimos o Zunzum e abrimos o Marlene.

Este ano, em Portugal, venceu a Ana Magalhães o concurso chef cozinheiro do ano — não ganhava uma mulher há 23 anos. E nesta edição do Congresso dos Cozinheiros houve tantas mulheres como homens.
Afinal há mulheres na cozinha!

Ontem teve aqui o primeiro de quatro jantares de estação, com Henrique Sá Pessoa, Rui Paula e Óscar Geadas.
Pois foi, e foi um sucesso.

Três chefs homens. 
[risos] Pois foram! Primeiro quisemos festejar esta altura do ano, com as estrelas Michelin a chegar, e relembrar que os portugueses são muito bons cozinha criativa também, que ainda não é assim tão popular em Portugal. Não são esses os restaurantes que estão sempre a abarrotar. Cada vez mais têm gente, mas mais para o público internacional.

Quando está rodeada de chefs homens sente que é tratada como one of the guys?
Sinto que sim.

Sente que a deixam entrar no boys club ao invés de ser reconhecida como mulher?
É isso.

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Como é que sente isso?
Não me atrapalha em nada.

Mas há cosias que tem de ignorar?
Claro. “Olha aquela rapariga tão jeitosa”. Não me diz nada, mas não me fere.

O que é que a fere?
Quando são ordinários, quando são ofensivos, quando não são cuidadosos. É a grande diferença entre as conversas das mulheres e homens. É ai que tenho de sair para não discutir. Mas já aconteceu discutir.

A geração mais nova de cozinheiros é diferente?
Completamente diferente. Com muito mais respeito. Eu sinto estes problemas na geração dos 40 para cima. Abaixo não há. Há uma aceitação muito grande pela pessoa, como ela é.

Qual é que foi o último restaurante a que foi e pensou: “É isto”.
Gostei muito do VDB Bistronomie da Alana Mostachio.

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