Em três dias, três horas e trinta e cinco minutos a tripulação do Ocean Viking resgatou 356 migrantes de quatro embarcações em risco no Mar Mediterrâneo. O navio de resgate francês chegaria a alojar refugiados de 12 nacionalidades. Dos 103 menores de idade a bordo (incluindo três crianças com menos de 5 anos), só 11 estavam acompanhados por um pai ou um adulto responsável.
Só ao fim de 14 dias de espera foi autorizado a atracar em Malta. Até 35 destes refugiados virão para Portugal. Os restantes serão distribuídos por França, Alemanha, Roménia, Luxemburgo e Irlanda. Mas antes de começar este processo houve duas semanas de mar, que o Observador seguiu dia após dia.
BREAKING: After 14 days of unnecessary suffering all 356 people onboard #OceanViking will finally disembark to #Malta
While some #EU States finally stepped up with a humane response to this humanitarian disaster in the Med, a predictable disembarkation mechanism is needed now! pic.twitter.com/t2rTfKL4Wi
— MSF Sea (@MSF_Sea) August 23, 2019
O Ocean Viking saiu de Marselha, sob a coordenação dos Médicos Sem Fronteiras (MSF) e da SOS Mediterranée, no dia 4 de Agosto. A 9 realizou o primeiro resgate, ao largo da Líbia. Durante as duas semanas que se seguiram, só o porto de Tripoli se dispôs a recolher os migrantes a bordo: o Centro Líbio de Coordenação Conjunta de Resgate sugeriu por duas vezes que o Ocean Viking atracasse no país. Mas a coordenadora de comunicações do MSF a bordo, Hannah Wallace Bowman, rejeitou logo a proposta, argumentando que violava a lei internacional: “Nós não vamos enviar sobreviventes de volta para a Líbia em nenhuma circunstância“.
Sem um porto seguro, o Ocean Viking seguiu para norte. Ficaria à espera de uma solução em águas internacionais, no limite do território de Malta e de Itália: ambos os países recusaram o desembarque dos sobreviventes a bordo do navio humanitário.
A 23 de agosto, quando foi autorizado o desembarque, restava no Ocean Viking comida para três dias, se não houvesse restrições ao consumo. A água era racionada há quatro dias. Durante as duas semanas anteriores, nos testemunhos enviados diariamente ao Observador, havia uma nota comum: o desespero face à falta de respostas, visível também em vários registos na crónica de viagem no site da SOS Mediterrannée.
O sentimento era agridoce, nas palavras do coordenador do projeto, Jay Berger, ao Observador: “Será que era mesmo necessário impor duas semanas de espera excruciante para que as pessoas resgatadas fossem desembarcadas? É muito triste que tenhamos de repetir a mesma mensagem vezes sem conta e e que não vejamos qualquer mudança. Os líderes europeus já não podem argumentar que são ignorantes em relação a este tema, sobre este desastre que está acontecer à porta da Europa, no Mediterrâneo”.
A maioria das pessoas resgatadas pelo Ocean Viking diz ter estado sujeita a prisão arbitrária, extorsão, escravatura, ou tortura durante a viagem. Um jovem de 16 anos esteve no bombardeamento de Tajoura. Aos 22, outro aproveita o testemunho para deixar uma mensagem à mãe: “Espero ver-te, se for possível, um dia”.
Criaram-se abrigos no convés com caixas de cartão. Desenhos infantis passaram a cobrir as paredes, retratando cenas de tortura e violência e aldeias abandonadas há meses e anos. Um refugiado assumiu o papel de barbeiro para as crianças.
A espera no barco: frio e doenças, abrigos improvisados, jogos de cartas e xadrez
Enquanto o Ocean Viking agurdava por um porto seguro, chegava uma solução para outro navio humanitário: o Open Arms, onde esperavam 83 migrantes ao Largo de Lampedusa. Depois de 19 dias no mar, o procurador da cidade de Agrigento, na Sicília, daria ordem para o arresto temporário do Open Arms, e o desembarque dos refugiados em Lampedusa. Luigi Patronaggio visitava o barco para investigar um possível crime de sequestro do ministro do Interior de Itália, Matteo Salvini, que proibira o OpenArms de atracar.
Wallace Bowman admite que a espera no Ocean Viking era previsível: “Apesar de ser muito desapontante não é particularmente inesperado no clima atual, em que o esforço de salvar vidas no mar é sistematicamente criminalizado, em que os que trabalham para ocupar o vazio deixado pela União Europeia são marginalizados“.
A tripulação tratava os refugiados, que partilhavam sintomas comuns: desidratação, cansaço, fraqueza física, hiper e hipotermia, queimaduras e enjoo. Outros sofreram feridas durante a viagem. “Há pessoas a bordo com condições médicas que se podem tornar críticas a qualquer momento”, explicava Lucca Pigozzi, um dos médicos a bordo.
Às fragilidades causadas pela viagem, juntavam-se as marcas dos abusos sofridos na Líbia e nos países de origem: “Tratei vítimas de violência sexual, de espancamento brutais, de tortura, incluindo por eletrocussão derretendo plástico, e também pessoas com ferimentos de guerra”.
“Com cada dia, vejo uma rápida e preocupante deterioração do estado mental das pessoas”, avisava o médico, sublinhando que os refugiados estavam “petrificados com a hipóteses de serem levados de volta para a Líbia, onde sofreram abusos e detenções arbitrárias”. “Como um médico, não posso aceitar este sofrimento prolongado, afirma Pigozzi, perguntando: “Por que é que tenho de ter a minha ética e humanidade sequestradas por políticos que voluntariamente roubam os refugiados dos seus direitos e da sua dignidade?”
Em Itália, tirar este migrante do Mediterrâneo dá multa de 1 milhão de euros. E agora?
Ao quarto dia de mar, Jay Berger, coordenador do projeto dos MSF no Ocean Viking, garantia que a tripulação tentava manter os 356 refugiados confortáveis: “Por agora toda a gente está calma e percebe que é preciso ter paciência, que estamos a trabalhar em conjunto. Dissemos-lhes que estaremos com eles até desembarcarem num lugar seguro”.
Mas o coordenador lembrava que o Ocean Viking não foi o início da viagem destes refugiados: “Alguns dos sobreviventes estão no mar há mais de uma semana, presos em barcos de borracha, a viver na incerteza de serem salvos ou de se afogarem“.
A cada dia, a embarcação foi-se alterando para melhor acomodar os residentes temporários. Foram instaladas proteções no convéns para afastar o Sol e criar espaços de repouso. “Estamos a distribuir jogos — cartas e xadrez — para os manter entretidos. Alguns constroem os próprios tabuleiros e fazem peças com caricas”.
Sem respostas, ao anoitecer ia-se criando uma rotina: os 356 refugiados a bordo do Ocean Viking encontravam forma de dormir em “abrigos improvisados” ou em pleno convés. Para proteger centenas de pessoas do frio a tripulação tinha apenas caixas de cartão e cobertores de emergência.
“Hoje ultrapassei a frustração por me repetir, uma e outra vez, responder a perguntas sobre quando é que chegamos, para onde é que vamos, e por que é que não chegamos”, disse esta segunda, dia 19, Hanna Wallace Bowman, num tom de resignação, explicando: “Pus-me na posição deles. Se fosse eu e a minha família e os meus amigos não soubessem se estava viva ou morta — É como se não existisse“.
A reflexão surgiu 10 dias depois do primeiro resgate, porque os refugiados a bordo estavam “a começar a sentir-se desesperados”, a cada dia ficando mais “difícil explicar por que é que não podem desembarcar”. Mas também porque a coordenadora de comunicações ficou mais consciente da dualidade de sentimentos que envolve o trabalho do Ocean Viking: “Quando resgatas alguém achas que eles agora estão seguros. Ficas feliz. É algo muito positivo. Mas com toda esta espera, eles continuam a não estar livres, a não ter o direito a viver”.
A responsável dos Médicos Sem Fronteiras enumerou as restrições a essa liberdade: “Estamos a racionar água. Eles dormem no convés, debaixo de cobertores minúsculos. Não têm o que querem. Nem autonomia, nem liberdade, nem educação“. “Eles precisam de muito mais do que nós podemos dar a bordo”.
Sem conseguirem dizer aos migrantes a bordo onde iriam desembarcar, também era cada vez mais difícil explicar-lhes por que é que estavam parados e não viam terra: “Estamos só à espera enquanto a Europa decide o destino dos sobreviventes”.
“Eles perguntam se os pais vão saber deles, se as famílias vão saber deles. Estão preocupados com a hipótese de as pessoas que os amam acharem que morreram a tentar a travessia”, afirmava Hanna Wallace Bowman, explicando que tentavam “mostrar artigos de jornal e dar tanto contexto quanto possível” para os tranquilizar os refugiados. O objetivo era mostrar que os familiares podiam ter lido alguns desses artigos, e podiam ter esperança de que os filhos, irmãos ou pais tivessem sido alguns dos resgatados pelo Ocean Viking, em vez de terem perdido a vida no Mediterrâneo, a rota migratória mais mortífera do mundo.
Os traumas: “Fugiu depois de um grupo armado matar o pai à frente dos seus olhos”
Yuka Crickmar, a responsável pelos Assuntos Humanitários no navio, entrevistou todos os sobreviventes a bordo do Ocean Viking. “É absolutamente chocante ouvir as histórias deles”, admitiu ao Observador. “O nível de sofrimento dos sobreviventes é de partir o coração”.
Uma história em particular marcou Yuka Crickmar: “Um dos rapazes com que falei tem só 16 anos. Fugiu do seu país depois de um grupo armado atacar a vila dele e matar o pai à frente dos seus olhos. A mãe e os irmãos dele estão num campo de refugiados”.
O menor, sozinho, foi ter à Líbia. Aí “foi raptado, esteve detido, foi obrigado a trabalhar como um escravo, esteve privado de comida e de água, foi espancado brutalmente e viu pessoas a morrer”, antes de tentar o mesmo que todos a bordo do Ocean Viking — atravessar o Mar Mediterrâneo para chegar à Europa.
A primeira tentativa fracassou. O jovem foi detido pela Guarda Costeira da Líbia e levado para o Centro de Migrantes de Tajoura. Era lá que estava a 2 de julho, quando o Exercito Nacional Líbio bombardeou o centro, que acolhia 600 refugiados. Morreram 53 pessoas. Outras 130 ficaram feridas.
“Ele viu corpos por todo o lado. Disse-me que os guardas começaram a disparar enquanto ele corria para se salvar “, relatou Yuka Crickmar, comprovando as informações avançadas pelas Nações Unidas. “Mostrou-me as cicatrizes que tem na cara, do fogo que consumiu o edifício, de correr para salvar a própria vida”.
Também Hannah Wallace Bowman partilhou com o Observador o drama de um jovem sudanês: “Um dos rapazes falou-me dos conflitos tribais no Sudão. Há assassinatos por sangue, que são olho por olho, são homicídios infindáveis por vingança. Ele foi para a Líbia e assim que passou a fronteira soube que tinha sido vendido. Depois foi uma sequência infindável de passar de um grupo para outro, de ser obrigado a trabalhar em quintas e em obras. Recebia pouca água e uma fatia de pão por dia. E ele descreve o quão fracos ficavam, o quão magros ficavam”.
O jovem foi resgatado pelo Ocean Viking na segunda tentativa de atravessar o mar mediterrâneo. Na primeira, foi apanhado pela Guarda Costeira Líbia e devolvido ao país africano, onde foi vítima de abusos continuados, garantiu Wallace Bowman: “Fala de estar sentado numa sala com cadáveres que eram lá abandonados. Era obrigado a suportar os gritos dos homens e mulheres violados à frente dele. E depois as eletrocussões: atiram-te água e fazem-te sentar num objeto de metal, ou batem-te com um ferro enquanto te eletrocutam. Conseguimos ver as queimaduras. Se pedes mais comida vais para a solitária. Vais para uma sala com um metro quadrado, coberta com os dejetos de outras pessoas, e em que és obrigado a ficar em pé”.
A violência continua, sempre movida por fins monetários: “Ele mostrou-me as cicatrizes nos braços de quando o esfaqueavam. Diziam-lhe para ligar para a família, para pedir dinheiro. Mas as famílias deles são pobres. Eles não têm dinheiro para enviar. E se as famílias não têm dinheiro tens de suportar meses e meses de tortura e espancamento até perceberem que não tens dinheiro. Aí metem-te a trabalhar, escravizam-te, até conseguires escapar e tentar atravessar outra vez”.
“São só crianças e já sofreram tanto”, sublinha, notando que os traumas sofridos na Líbia os acompanharam a bordo do Ocean Viking: “Muitos dizem-me que à noite sonham que ainda estão na Líbia, e acordam a chorar. Eles ainda têm medo de ser devolvidos à Líbia. Perderam tanto tempo lá, e agora estão sedentos por conhecimento. Pedem-nos todos os dias aulas de inglês, de francês, de qualquer coisa. Têm tanta fome de aprender. Estão tão ansiosos para trabalhar e fazer algo com as suas vidas“.
Um refugiado costa-marfinense, de 22 anos, enviou ao Observador uma mensagem que era na realidade dirigida à sua mãe: “Chegámos à Europa e rezo a Deus para que tenha um emprego para te ajudar, mãe. Eu amo-te. Eu amo-te, mãe. Tu tens saudades minhas. Espero ver-te, se for possível, um dia”.
Antes de chegar ao Mar Mediterrâneo, onde foi resgatado pelo Ocean Viking, este refugiado passou pela Líbia, onde viveu os piores momentos da sua viagem: “A Líbia, na realidade, não tem nada de bom. A Líbia não é boa. O teu bem estar, a tua segurança, estão em perigo. (…) Eles estão a lutar e tu não sabes exatamente com quem estão a lutar. Mas podes ficar lá e ouvir as bombas a explodir perto de ti. Supõe que essa bomba explode na tua casa, podes morrer. A qualquer hora podes ouvir as bombas a explodir”.
O jovem costa-marfinense, que pediu para o nome não ser identificado, referia-se à guerra civil da Líbia, que desde 2014 coloca frente a frente forças do governo Tobruk, do governo interino apoiado pela ONU, e do do auto-proclamado Estado Islâmico: “Todos os jovens têm armas. Se tens um problema com um rapaz eles podem matar-te. Não há polícia nem justiça para te defender”.
A jornalista: “Faço o contrário do que faria numa guerra”
A bordo do Ocean Viking seguia uma pessoa que nem fora resgatada nem integrava a tripulação. Era Anne Chaon, correspondente da Agence France-Presse, que falou também ao Observador para retratar os desafios do trabalho jornalístico a bordo: “É um pouco difícil, como em qualquer reportagem, eu não ser agarrada pelas histórias terríveis que oiço. Acho que é preciso trabalhar, concentrar-me nos detalhes, na precisão dos factos, para colocar as emoções à distância. Só ao voltar para casa é que posso retomar as minhas emoções, que tenho de manter um pouco reprimidas”.
Ainda assim, ficou impressionada pela capacidade da tripulação de manter o ambiente controlado a bordo do Ocean Viking: “O nervosismo da equipa nem se nota. São pessoas habituadas a condições muito difíceis, com experiência em zonas de conflito no Médio Oriente e em África, do Burundi ao Darfur. Conseguem controlar a fadiga e continuar a tranquilizar as pessoas. Nunca recusam ajudar, mesmo quando os pedidos são repetitivos, quando as questões vêm uma e outra vez.”
Foi Anne Chaon a fotografar o interior do navio, em todas as imagens que surgem neste artigo. Um esforço em que tem sempre de caminhar no limite entre a denúncia e o abuso das fragilidades: “Pergunto-me sempre sobre a privacidade destas pessoas, sabendo que as suas histórias podem determinar o seu futuro na Europa. Faço o contrário do que faria numa guerra. Aqui menciono só primeiros nomes, dou-lhes um nome falso ou noto só o país de origem. Muitos pedem para esconder as caras. Mas os Médicos Sem Fronteiras sempre me pediram que não escondesse o que são as condições reais a bordo.”
A jornalista garantia que se sentia uma grande segurança e estabilidade a bordo, até mesmo para os migrantes: “Apesar do desconforto, os sobreviventes sentem-se seguros. Isto é provavelmente o melhor que podiam ter para começar uma nova vida“.
Pendant qu'il patiente entre Malte et Lampedusa #Ocean Viking préfère les ❤️aux ronds dans l'eau en soutien aux 356 rescapés qui attendent un port @SOSMedIntl @MSF_Sea pic.twitter.com/fnJtf9e1CZ
— anne chaon (@achaon) August 21, 2019