João Nunes Monteiro está em “Quero Viver”, novela da TVI. Foi protagonista do filme “Mosquito” (2020), de João Nuno Pinto e entrou em “Diários de Otsoga” (2021) de Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro. Já entrou numa série de peças de teatro dirigidas, interpretadas ou produzidas por nomes como Victor Hugo Pontes ou Miguel Fragata. Está quase a fazer 30 anos. Tudo isto sem nunca fazer grandes planos. Agora, no próximo dia 11 de fevereiro, entra no programa “Shooting Stars”, em Berlim, um dos palcos maiores para jovens nomes da representação internacional. Ainda assim, a única certeza que tem a breve prazo é esta: tirar a carta.
Foi por volta dos 15 anos, quando entrou para a Academia Contemporânea do Espectáculo do Porto, que percebeu que interpretar personagens que piscam o olho ao abismo seria o seu motor de vida. Filho dos anos 90, com a televisão portuguesa e brasileira no horizonte, foi fazendo o seu caminho sem nunca pensar muito nisso. Não vale a pena. O importante é fazer bem o trabalho. “Tento chegar a horas, saber o texto, estudar a cena. Se for em teatro, é o mesmo. Dar o meu contributo consoante o grupo com que estou a trabalhar. Não vou com nada planeado. Sou péssimo com planos. Não faz parte da minha natureza”, confessa numa longa conversa com o Observador.
Do Porto para Lisboa, depois Londres e novamente Lisboa. Foi assistente de sala, associou-se a vários grupos com pessoas do seu ano de curso para apresentar criações suas. Pouco dinheiro, algum apoio de quem ia aparecendo, muita vontade. Agora já consegue pagar a renda e alimentar os dois gatos. O resto fica na cabeça do ator de 29 anos. É lá que está toda a imaginação. O medo, a ansiedade, a preocupação, o gozo enorme desta profissão. E é lá que reside aquilo que há de querer fazer daqui para a frente. A estrada é longa. A vertigem também. Desde que seja a comunicar, um pouco à vista, um pouco escondido. Sabendo que, no fundo, em palco ou atrás da câmara, tudo não passa de um jogo de interpretações. “Tenho de saber que o que estou a fazer é ficção. Que é maior do que eu, não é sobre mim. É sobre outra coisa qualquer. Ajuda-me a não querer esconder”, finaliza.
Nas poucas entrevistas que deu demonstra alguma ansiedade com o próximo passo. Como se andasse ali num limbo. Estar escondido e aparecer. Porquê?
Começo a perceber para onde quero ir, onde me sinto confortável a trabalhar. Os ambientes de trabalho quando são bons já é meio caminho andado. Faz trabalho por si só. Mas há imensa coisa que sinto que tenho de descobrir. Às vezes penso que não sei nada sobre isto, que não sei fazer isto.
Quando foi a última fez que se sentiu assim?
Tem a ver com tudo. Em cinema, cada realizador e cada equipa têm uma forma de trabalhar. Depois os dispositivos também podem ser totalmente diferentes.
Estando em novelas, tendo feito cinema e teatro, já percebeu qual é o dispositivo em que se sente mais confortável?
A câmara e o palco são diferentes. Quando estou num, tenho saudades do outro. O palco é tridimensional, tem uma adrenalina enorme, tem uma relação com o público, sentimos logo a vibração na sala. Faz-se um objeto em conjunto com o público. A câmara faz-se com a equipa mas, ao mesmo tempo, permite um trabalho mais detalhado.
Falemos do “Mosquito”, que abriu o festival de Roterdão em 2020, foi fazendo o seu percurso internacional e até fez parte da shortlistportuguesa para a pré-nomeação aos Óscares de Melhor Filme Estrangeiro. Sentiu esse impacto? Da indústria a olhar para si?
Talvez. É sempre surpreendente quando começo a ver filmes portugueses ou profissionais portugueses nos festivais. É quando eu percebo: “OK, aquilo que fazemos tem qualidade e é reconhecido”.
Sente-se pequeno ou maior?
Acho que… maior, com mais reconhecimento, sim… mas com vontade de ser pequenino, invisível. Faz parte de mim.
[o trailer de “Mosquito”:]
No “Shooting Stars” não existe uma rede, é uma espécie de speed dating entre atores, produtores e guionistas. Não há grande preparação?
Acho que não. É um programa de promoção de jovens atores e atrizes. Vamos ser apresentados à imprensa internacional e a uma série de realizadores, produtores, e diretores de casting. São encontros. Como é que me posso preparar para isto? Não é como se me dessem uma cena e, de repente, houvesse ali um casting. Tenho de estar disponível para a experiência.
Falou com outros colegas?
Preferi não falar. Isto da expectativa comigo nem sempre funciona. Não estou habituado. Até porque o próprio setor tem isso instalado. Vou e vou vendo.
No início dos estudos, ninguém o preparou para esta situação? Víamos poucos atores nos EUA ou no Reino Unido…
Sim. Parecia algo muito longínquo. Há cada vez mais portugueses lá fora. É o espelho das narrativas do mundo que existe.
No caso português, pode fazer com que os próximos atores mimetizem os seus antecessores? Mimetizem o João Nunes Monteiro? E será que vamos ter uma forma nossa de fazer e dizer cinema?
Acho que não. Cada realizador terá a sua linguagem e são muito diferentes. O Miguel Gomes é diferente do João Nuno Pinto. Não existe uma forma de fazer cinema “em português”. Na representação é igual, penso eu. Pode fazer parte do imaginário coletivo por ter sido tão repetido, mas sendo concreto, não. A pandemia veio atrasar um pouco a estreia de muitos filmes, mas o cinema português é muito diversificado nas suas linguagens.
Já trabalhou com nomes desde Vítor Hugo Pontes a Miguel Gomes, no teatro e no cinema. E nem 30 anos tem. O que é que tenta dar de diferente?
Nada… Tento chegar a horas, saber o texto, estudar a cena. Se for em teatro o mesmo. Dar o meu contributo consoante o grupo com que estou a trabalhar. Não vou com nada planeado. Sou péssimo. Não faz parte da minha natureza.
Mesmo que a carreira vá avançando?
Não. É quase diário. Primeiro temos as coisas do dia a dia para resolver e que já preenchem bastante da minha cabeça. Depois, se estou num programa, vou com o máximo que conseguir para lá, quero tentar perceber a indústria internacional. Mas sem metas ou planos.
O que é que o preocupa no dia a dia?
Pagar a renda. Alimentar os dois gatos. Agora que estou a fazer televisão, tento que o trabalho esteja o mais preparado possível porque o ritmo é maior. O futuro preocupa sempre um pouco.
Nesse turbilhão de preocupações, também tem tempo só para si? Para estar com amigos, família, etc.
Tem de se arranjar. Primeiro porque é material de trabalho e depois porque faz bem à saúde.
Consegue desligar-se completamente?
Às vezes sim, outras vezes não. Num filme com o Al Pacino, do qual não me recordo agora, temos uma voz off em que está a ver uma pessoa amiga a chorar, e ele diz: “Ah, é assim que ele chora”. São poucos os momentos tão macabros como este mas…
Tem uma espécie de voz off na sua vida.
De vez em quando, sim. Principalmente quando estou entusiasmado, felizmente têm sido várias vezes. Ando muito a pé e de metro. Tento absorver tudo.
Sempre foi assim? Quase uma esponja constante.
Desde criança. Mas para fora e para dentro. Passar muito tempo na minha cabeça, brincar ao faz de conta, imaginar histórias. Passava muito tempo a observar, sim.
Em que é que isso se traduz? Depois põe no papel, faz uns desenhos?
Muitas vezes é só na cabeça. Claro que também foge para a escrita ou para outra forma de expressão. O ser ator tem esta coisa em que se une tudo: as palavras, ajuda bastante que não sejam as nossas, e o corpo, a imaginação, o conhecimento. Tem uma série de áreas que agrego e que vou tentando consolidar.
Essas ideias mais bizarras, partilha-as com alguém? Ou ficam para si?
Entre pares costumamos fazer isso. Vamos partilhando, o que é ótimo, porque vamos desmistificando os cérebros de cada um para perceber que está tudo bem.
Já afirmou que em casa não cresceu entre grandes hábitos culturais. Sendo assim, como é que foi parar à representação?
Vem do contacto com a televisão e o cinema. Primeiro veio a animação, claro, deve ter sido para toda a geração dos anos 90. Olhar para aquilo e fascinar-me com as personagens, como é que podiam ser tão más pessoas. Via televisão portuguesa e brasileira. Também ia ao cinema, muito raramente, com os meus pais. Lembro-me de ver o “Jaime” do António Pedro Vasconcelos e de como me marcou. Depois das experiências na escola de fazer teatro e daquela adrenalina, que era péssima porque ficava cheio de medo, mas também gostava muito daquilo. Era meio masoquista.
Uma vertigem.
Sim, uma queda para o abismo. É mais um dos motivos para não haver planos. Agora já estou aqui, já aterrei. Voltando para a minha infância, não ia ao teatro, saía à rua e não via atores. De repente, dizem-me que existem três escolas de teatro no Porto. Estava no 9.º ano, queria ser tudo, historiador, investigador científico, qualquer coisa. Lembrava-me bem da sensação: aquilo era novo e atirei-me para descobrir.
Foi para a Academia Contemporânea de Espetáculo. Saiu do ensino tradicional e foi para o curso profissional. Os seus pais perceberam logo que estava a trabalhar o futuro?
Sim. No início houve um episódio com o meu pai, que foi também um gesto de carinho, de me levar ao teatro, porque não me calava. Tentou que fosse para humanidades, mas não. Lá fomos ao teatro para ver se gostava. Acima de tudo, havia preocupação com a precariedade, era muito presente nos meus pais. Mas deixaram-me ir.
Não havendo hábitos culturais, havia liberdade.
Sim, acho que sim.
Como é que era o João de 15 anos? Também só pensava com os seus botões?
Um pouco introvertido. Quando chego à escola existe uma série de coisas que nunca tinha feito tão espontaneamente. Nem tinha referências. Ia para História de Arte e pensava: meu Deus, tanta coisa que não sei. Dançar? Era algo que o meu corpo não fazia. Estava a transformar-me em alguém que tinha medo de estar ali, mas com um gozo enorme em lá estar, tudo ao mesmo tempo. No primeiro ano tive algumas más notas, e no ensino tradicional era bom aluno, mas isso não me importava. Até era obcecado em ter boas notas. Mas gostava tanto das aulas que tentava aprender. O curso durou três anos.
A cabeça estava orientada para onde?
Londres. Queria mesmo ir ver o mundo. 18 anos a viver no Porto, queria sair. Queria conhecer outra realidade. Mas aí sim, o meu pai foi perentório: não, não vais. OK, então vou para Lisboa fazer a licenciatura. Deixou-me. Vim com mais três colegas em 2011. Adorei a cidade, a luz.
É sempre a luz.
Sim. Este jardim onde estamos, morava aqui perto. Muitas vezes vinha para aqui ler a Odisseia. Ou Teorias da Arte Teatral I. Já estou a divagar… Ainda assim, pensei que já tinha visto a cidade, mas queria ver outras realidades.
[o trailer de “Diários de Otsoga”:]
Nessa altura de grande turbulência socioeconómica, entendeu que o que queria mesmo era sair de Portugal.
Sim, mas era algo mais pessoal. A Escola Teatral Britânica tinha um charme imenso em mim. Têm uma série de técnicas de interpretação, muitos livros publicados, algo que em Portugal não existe. Queria estar perto daqueles atores britânicos.
E já estava a estudar essa realidade.
Ia buscar à literatura e até às séries. Fazia muita pesquisa. Era-me muito apelativo.
Com que séries?
“Skins” foi aquela série que me chamou muito. “Peaky Blinders” veio depois também. Ia muitas vezes ao IMDB para seguir a carreira dos atores e das atrizes. Passava horas a ver vídeos no Youtube. Tentava perceber a forma como olhavam para as coisas.
Nessa altura em que tudo é êxtase e hormonas, o João empurrava tudo para aí?
Sim, para o bem e para o mal.
O que é o mal?
Se havia algum projeto em que não estava totalmente satisfeito, ficava deprimido. Vivia tudo ao máximo. Ia ser o fim da minha vida. Significava que não tinha qualidades…
Como lidava com isso?
Deixava passar o tempo. Depois havia uma renovação qualquer com um novo projeto dentro da escola. Pensava que ia correr bem daquela vez. E isso podia surpreender-me.
Fale-me de Londres.
Fui assistente de sala num teatro, onde havia um bar por cada piso. Ia fazendo workshops curtos aos fins de semana, passava muito tempo no teatro nacional de Londres. Encontrava alguém para falar, ia a muitas conversas.
Não foi estudar?
Não, não. Só para trabalhar. Ia com a ideia de passar lá um ou dois anos a trabalhar no meu inglês. Talvez hoje em dia até possa ser diferente, mas naquela altura sentia mais a pressão de ter um sotaque britânico. Fiquei obcecado com isso.
Esteve lá quanto tempo?
11, 12 meses. Estive sempre como assistente. Mas faltava-me algo consistente. Na altura candidatei-me a uma escola, muitas delas já não estavam a aceitar. Fui às audiências e fui aceite. Mas acabei por voltar para Portugal, supostamente só para férias de verão, só que acabei por ficar.
E nessa altura recebe também um convite cá?
Uma espécie de promessa de um espetáculo de teatro daqui a uns meses. Tinham pensado em mim para participar. Como a escola não era das minhas primeiras escolhas, não sabendo também que a falta de aulas de forma consistente ia dar para aguentar, achei que Londres ia ficar no sítio, que não ia mudar, qualquer coisa posso preparar-me em Portugal, por isso voltei. Novamente o abismo. O espetáculo não aconteceu.
Mas ficou?
Sim.
O que pesou mais para ficar?
Cheguei à mesma conclusão: aquilo fica lá. Posso sempre voltar. E se não era a escola que queria, podia tentar as outras que queria. Ao mesmo tempo, voltei à minha matricula na Escola Superior de Teatro e Cinema. Fiquei um pouco sem nada, mas tinha uma série de colegas com vontade de fazer coisas. Juntei-me a várias grupos e íamos fazendo as nossas próprias criações.
Essa parte criativa ficou então resolvida. E o dinheiro ao fim do mês?
Ou dos pequenos trabalhos que tive nesses anos, ou o privilégio de ter um pai que me ajudava. Foi algo que fez toda a diferença. Nenhum desses projetos, de que me orgulho no sentido da resiliência, com grupo de oito pessoas a montar um objeto, tudo sozinhos, deu retorno financeiro. Era zero.
Dava para pagar o café.
Fazíamos uns 50 euros, 60 euros, talvez…
Tinham espaço para criar?
Tínhamos de arranjar. Ou falávamos com a escola, para ficar nos estúdios que não estavam a ser usados durante determinados horários. Tentávamos encontrar teatros de acolhimento. Ou em casa uns dos outros. Íamos adiando mas, a certa altura, havia um espaço de ensaio. Na Comuna Teatro de Pesquisa.
Tudo gente que estava a começar?
Por norma, sim, éramos quase todos do mesmo ano. Alguns vinham do Porto. Havia essa ligação da mesma escola profissional. Há um projeto que guardo com muito carinho, a “Peça Romântica” para o Teatro Fechado, com texto do Tiago Rodrigues. Foi super acessível na cedência. E que nós, a muito custo, com turnos de noite, porque alguns tinham de continuar a trabalhar para depois ensaiar, apresentámos no Teatro do Bairro com casa cheia.
Foi especial.
Sim, não estávamos nada à espera. Tivemos de atrasar o espetáculo porque estava esgotado. Achámos que no máximo iam estar 20 pessoas na plateia. nunca tinha treinado com pessoas sentadas nas escadas, por exemplo. Mas continuamos a estar juntos.
Essa travessia que fez, apesar da ajuda familiar, nunca pôs em causa o que queria fazer?
Não. Acho que não. De uma forma séria, não. O pensamento está sempre lá. Talvez juntar mais uma licenciatura qualquer. Não é uma hipótese que tiro. Claro que tenho outros pensamentos sem receio, podia trabalhar em qualquer coisa, desde que estivesse bem. Era sempre o sério e não a sério.
Qual é o momento de viragem, para o João que vemos agora?
Não há. Também aconteceu uma pandemia pelo meio que veio desestabilizar. Foi em 2017 que comecei a poder pagar a renda a partir dos meus trabalhos.
Parece um passado distante.
Não assim tanto. Agora consolida-se um pouco com o trabalho em televisão onde o plano é mais prolongado.
Sobre esta novela, “Quero É Viver”: parece que se está a quebrar cada vez mais os tabu de vermos atores com uma carreira mais centrada no cinema e no teatro, com oportunidades fora de Portugal, que depois participam também em produções da televisão portuguesa. Para si, tinha que ser?
Mais uma vez, é o que vai acontecendo. Tinha um espetáculo programado que ia começar a fazer e que me ia dar uns quantos meses de trabalho, foi adiado. Tinha pequenas apresentações, uma incerteza muito grande, e, de repente, houve este convite. Tive de fazer uma escolha. Lá fui para um sítio onde nunca tinha ido.
Essa participação em novela não o pode prejudicar? Por causa de um certo preconceito…
Espero que não. Tenho outros trabalhos. Se as pessoas forem preconceituosas, podem ver-me a funcionar noutro registo. Se esse for o caso, claro. Acho que não prejudica. Se falar com atores, existe uma ginástica que se ganha neste ritmo televisivo.
Falando da mudança do Porto para Lisboa. Sentiu que o Porto era muito pequeno?
Bom, já me mudei, quase me sinto cada vez mais de Lisboa do que do Porto. Tenho pena de olhar para os espaços no Porto e ver ainda menos do que em Lisboa. Mesmo a produção, aumenta mas é menor. E se continuarmos por Portugal fora…
Para um ator com quase 30 anos…
…não há como fugir..
Exato. Um ator deve participar politicamente? O trabalho é sempre político?
É individual. À partida, todos os objetos artísticos que se fazem são políticos, mesmo não sendo. São sociais. Requerem um pensamento sobre. À partida. Pode não ser muito aprofundado, pode não ser discutido, mas vem de algum sítio. Se o nosso olhar for macro, percebemos que está ligado para um mundo. Percebo que seja inerente, é muito expectável que se vejam atores a ter uma voz ativa. Também porque é um setor que sofre um pouco com isso. Por isso, essa discussão existe. Durante almoços de ensaio estamos a discutir as condições de trabalho, de como gostaríamos que fosse. É normal. Cabe a cada um tomar as suas próprias posições e o sítio onde as quer revelar. O importante é que a transformação seja individual. Acredito que sim.
Nessa leitura que faz, o que é que o preocupa nos próximos anos?
A precariedade do setor. Muito. Estou a chegar aos 30 anos, mas desde os 15 que a reivindicação é a mesma: orçamento maior. Parece uma cassete. Um disco riscado. E é, mas porque não acontece. Ainda que ache que o fenómeno não seja português, assustam-me os resultados destas eleições, ter um partido de extrema direita com esta expressão. Ou com a que for.
Preocupa-o mais do que, por exemplo, um partido com uma maioria absoluta que pode não ir ao encontro das preocupações do setor?
Ambas. Posso escolher as duas. Se o Orçamento do Estado para a Cultura estava mais próximo do zero do que do 1, leva-me a crer que a nova proposta venha a ser diferente. A esperança é a última a morrer, mas acho difícil. Agora um discurso de ódio, de racismo e xenofobia que se entranha na população…
E aí, que lugar tem a cultura?
Portugal não se resume a Lisboa e ao Porto. O contacto não chega a toda a gente. O acesso à cultura, que é um direito, não é para toda a gente, fica difícil. Se filmes como o “Mosquito”, que ajudam a pensar o nosso legado colonial e a pensar no outro, não chegam às pessoas, o diálogo fica mais difícil. E, claro, se não há educação de base. Falo por mim, claro. Era raro ir ao teatro, só quando fui para a escola.
Nunca ponderou de facto ir para fora? Já sei que não vai responder…
Ora bem, já percebeu. Não direi que não. Há vontade, sim, um sítio com mais sol ainda. Não sei… Ainda quero tirar a carta de condução.
É um dos objetivos a curto prazo.
É, para o trabalho é necessário. Já estou em atraso.
Algo mais que tenha ficado para trás?
Há várias coisas. Uma série de livros que gostava de ter lido. Línguas que gostava de aprender ou de dominar.
Algum projeto fora da representação?
Dentro, mas feito por mim. Algo que está a ser delineado. Tentar perceber uma criação individual com um coletivo.
Já está no papel?
Está mais cá dentro do que no papel.
É sobre o quê?
Não sei. Será certamente sobre o abismo… De alguma forma isso vai lá estar.
Essa ideia de abismo vai estar sempre presente na sua vida.
Sim. Acho que sim.
Porquê?
Não tenho resposta. Mas também é isso que me interessa nas personagens, qual será o conflito interior/exterior delas. A Marie Ruefle tem um ensaio sobre o medo, acho que diz que os poetas, e aqui incluo os artistas, vivem no desejo de comunicar e de se esconderem. Isso parece-me o abismo. É um sítio onde me sinto muitas vezes.
Entre o desejo de comunicar e de esconder.
Sim.
Que jogo mental tem de fazer para não ficar só de um lado?
Saber que o que estou a fazer é ficção. Que é maior do que eu, não é sobre mim. É sobre outra coisa qualquer. Ajuda-me a não querer esconder. O desejo de comunicar está cá. O de esconder é que aparece muitas vezes.