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Texto e fotografias dos enviados especiais do Observador à Ucrânia, Cátia Bruno e João Porfírio
Até este domingo, Aleksandra Markievich vivia em Kharkiv. Os múltiplos ataques que se fizeram sentir na segunda maior cidade da Ucrânia, a apenas 60 quilómetros da fronteira com a Rússia, é que a fizeram sair. “Deixámos tudo para trás. Entrei em pânico. Peguei no meu filho Pasha e fugimos, debaixo das bombas. Só queria correr para fugir dali”, conta agora ao Observador, dois dias depois de ter chegado a Lviv.
“Foi muito assustador chegar até à estação de comboios, com as bombas a cair. E quando cheguei lá, era uma confusão. As pessoas atropelavam-se, agrediam-se, para tentar entrar no comboio primeiro”, recorda esta ucraniana de 29 anos. “Muitos ficaram para trás. Se acham que os que vêem nas estações são muitos, os que ficam ainda são mais.”
Ouça aqui o episódio de “A História do Dia”.
Apesar de o regime de Vladimir Putin afirmar que a “operação especial” na Ucrânia tem como objetivo poupar os falantes de russo de um “genocídio”, que diz estar a ser cometido pelas autoridades ucranianas, ordenou o bombardeamento sem piedade de Kharkiv, cidade onde a maioria apenas fala russo. Desde que Aleksandra (ou Sasha, o diminutivo que prefere) partiu, a situação agravou-se. Esta terça-feira, a praça principal da cidade — a maior do país — foi atacada brutalmente por um rocket, num bombardeamento que matou pelo menos 35 pessoas.
O aniversário a bordo de um comboio em fuga de Kharkiv
A viagem de Kharkiv até Lviv, na ponta oposta do país, foi um pesadelo para Shasha e para o seu filho Pasha, que fazia 11 anos precisamente nesse dia. “Já é um homem. Manteve-se calmo e protetor o tempo todo, tomou conta de mim”, afirma a ucraniana sorrindo, enquanto o filho se mantém a seu lado, roendo uma maçã. Isto apesar das condições precárias em que viajavam, alternando dormidas no chão com períodos sentados nos assentos, trocando com outros passageiros a cada duas horas.
Para trás ficaram momentos de pesadelo que Sasha não imaginava que pudessem ser ultrapassados por uma guerra ainda pior. Em janeiro, a sua avó ficou infetada com Covid. A ucraniana vendeu o pequeno hotel que geria para “salvar a vida dela”, num país onde o sistema de saúde ainda é vítima de pouco financiamento e da corrupção que exige o pagamento de subornos. Mas a decisão radical não foi suficiente: “Não consegui salvá-la. E agora tive de partir”.
Quando chegaram a Lviv, Sasha e Pasha foram encaminhados para o teatro Les Kurbas, centro cultural vibrante da cidade, onde vão à cena peças de teatro experimental. Agora, em vez de ensaios e cenários, encontram-se refugiados. No lugar onde antes estavam as cadeiras da plateia, estão agora 20 camas improvisadas com adereços da companhia, aquecedores espalhados pelo chão, uma mesa cheia de comida e uma televisão onde os mais novos vêem desenhos animados. Sasha não queria acreditar: “Chorei quando vi que tinha uma cama onde dormir e qualquer coisa para comer. Em Kharkiv já não tínhamos nada.”
O recital de piano em Donetsk que Maksiim vai perder
As camas improvisadas estão ali graças à ação de Natalia Rybka-Parkhomenko. Até à madrugada de quinta-feira, tinha uma vida normal como atriz e cantora. No Les Kurbas já estava montado o programa para o mês de março e a companhia preparava-se para estrear nova peça neste dia 1. Naquele dia 24, porém, Natalia recebeu logo dezenas de chamadas e mensagens que diziam “Começou”. “Foi um grande choque. Pela primeira vez na minha vida, senti que me tornei a filha e que a minha filha de oito anos se tornou a minha mãe, a consolar-me”, partilha com o Observador.
Quando se recompôs, começou a fazer chamadas. Rapidamente, graças à ação da mulher do presidente da Câmara de Lviv, conseguiu transformar o seu teatro num centro de acolhimento. Os pedidos de comida e cobertores no Facebook tiveram resultado e, em menos de nada, tudo estava pronto para receber cerca de 20 refugiados, que vão e vêm ao ritmo dos comboios que partem para a Polónia.
Vêm de todos os pontos do país que estão a ser atacados: Kiev, Odessa, Kherson. E sim, também de Kharkiv, terra natal desta atriz que se mudou para Lviv há 17 anos. Lá ainda está parte da sua família — o pai, o irmão e a cunhada, que está grávida. “Eles tentaram sair, mas tendo em conta que levavam uma mulher grávida e tinham pouco combustível, desistiram”, conta. “Agora não sabem o que fazer. Se partirem, tudo pode acontecer no caminho. Mas se ficarem podem ficar numa zona onde tudo será destruído.”
Foi precisamente por temer que o pouco que sobra ficasse destruído que Darina Kostina tomou uma decisão difícil no dia a seguir ao início da invasão: sair de Avdiivka, a cidade que faz parte da região de Donetsk, zona da autoproclamada república independente no leste que já sofre com ataques militares há sete anos. “Já há muito que vivíamos uma situação complicada em Donetsk, mas agora está impossível”, revela esta ucraniana de 29 anos ao Observador. Ainda no passado sábado, um ataque russo matou 19 civis na cidade.
Para trás ficou o marido, que se juntou às milícias civis. Consigo vieram os dois filhos, Maksiim, de nove anos, e Artym, de oito. O mais velho tenta distrair a mãe com os seus dotes de pianista, já que aprendeu a tocar no início de setembro e passa agora todo o seu tempo livre a praticar. Maksiim dobra cuidadosamente as mangas e estica os dedos como se estivesse a aquecer antes de começar a tocar Carol of the Bells, uma das músicas que John Williams compôs para o filme Sozinho em Casa. Maksiim não está sozinho, mas também não está em casa — Darina quer acreditar que ainda vão poder voltar, mas é uma esperança ténue. O recital de piano de Maksiim, que estava marcado para março, não vai certamente acontecer.
Maksiim tem nove anos e começou a tocar piano em setembro. Fugiu de Donetsk com a mãe e o irmão.
Ensaiou durante muito tempo para um concerto que iria dar em março.
Está agora a dormir num teatro no centro de #Lviv. pic.twitter.com/NwGrToIT5o— João Porfírio (@porfiriojoao1) March 2, 2022
Sasha espera que o sonho de partir para França se realize, como o da sereia que tatuou no braço
A poucos metros de distância, Pasha pergunta à mãe se pode tirar um bolo da mesa que ocupa toda a nave central da plateia do teatro Les Kurbas. Recebe autorização para tirar apenas um. Afinal, no que toca a comida, a mãe ainda é quem manda. “Spassibo”, diz o filho, usando o seu russo nativo.
Sasha e Pasha não falam outra língua e vêm de Kharkiv, cidade onde os laços com a Rússia são extraordinariamente mais firmes do que neste lado da Ucrânia. Foi ali que o Presidente Viktor Yanukovich, deposto após a revolução da Maidan em 2014, se refugiou antes de partir para a Rússia. Foi também ali que nesse mesmo ano houve uma tentativa de rebelião para instalar uma república independente semelhante às de Donetsk e Lugansk, mas que fracassou em poucos dias. Apesar de todas essas ligações, Sasha garante que não se sente mais próxima da Rússia do que da Ucrânia: “Sinto-me ucraniana em qualquer canto do meu país. Posso falar russo, mas este é o meu país e tenho fortes sentimentos por ele”, assegura.
Para onde vai, contudo, o russo de pouco lhe serve. Sasha pretende sair, “talvez para a Polónia, talvez para França”. Não sabe quantas noites mais vai dormir neste teatro, quando parte, nem para onde ao certo. Mas apesar de todas as dúvidas, quer muito acreditar que o futuro será risonho. Cada vez que duvida disso, olha para o seu lado esquerdo, onde uma grande tatuagem lhe cobre todo o antebraço. Um bonito padrão abstrato serve de pano de fundo a uma rapariga, que Sasha diz ser “uma sereia”, a quem acrescentou mais tarde pernas. “Dei-lhe o sonho dela, que era o de poder ter pernas para andar. Cada vez que duvido que os meus sonhos se possam realizar, olho para ela. E acredito.”