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Há semanas, ainda fazia frio e chovia. Nos últimos dias, já faz calor e em Severodonetsk não cai um pingo de chuva. Mas as bombas, essas, não param de cair do céu. Tem sido assim desde 28 de fevereiro, quando começaram os ataques a esta cidade de Lugansk, no Donbass, leste da Ucrânia. Os habitantes foram migrando para as caves e abrigos subterrâneos, passando a viver debaixo de terra. Com a Rússia a concentrar todos os seus esforços na região ao longo das últimas semanas, a maioria foi abandonando a cidade, à medida que a chuva de artilharia se foi intensificando. Em tempos eram cerca de 100 mil; agora não serão mais de 10 mil as pessoas que ainda aqui vivem. E as bombas continuam a cair, a todas as horas.
Já praticamente não há jornalistas internacionais em Severodonetsk e os relatos sobre a situação dos que ainda ali sobrevivem são na maioria das vezes dados por Sergiy Haidai, o governador regional de Lugansk, que todas as noites muda de abrigo. Foi o próprio que o confessou, numa entrevista dada à jornalista do El País que estava na cidade próxima de Bakhmut, ainda na segunda metade de maio. À altura, Haidai contou que chegou a ser abordado pelos russos para trocar de lado e colaborar com a “nova administração” da cidade quando esta fosse finalmente tomada. Recusou, garante.
Em vez disso, continuou a fazer atualizações diárias da situação no terreno via Facebook. “Há bombardeamentos a toda a hora. Infelizmente, o exército russo optou pela tática da terra queimada contra a cidade de Severodonetsk. Estão simplesmente a destruir a cidade de forma sistemática”, disse há cerca de duas semanas.
Os bombardeamentos intensificam-se à noite. Quando arriscam avançar, os soldados russos defrontam-se corpo a corpo com os militares ucranianos, nas ruas. Por vezes, estes conseguem avançar e recuperar algum território. Outras vezes, recuam de vez. Tem sido assim ao longo das últimas semanas, com “o nevoeiro da guerra” a não deixar perceber quem “detém o controlo do terreno”, analisava o jornalista militar ucraniano Ilia Ponomarenko na semana passada, no Kyiv Independent.
Nos últimos dias, porém, a situação agravou-se para o lado ucraniano. Durante o fim-de-semana, as forças russas conseguiram destruir a ponte Proletarskyi — a última ligação rodoviária que ainda permitia entrar e sair de Severodonetsk. Ao mesmo tempo, os russos continuam a tentar tomar o último reduto controlado pelas tropas ucranianas, na zona industrial da cidade: a fábrica de químicos Azot, onde centenas de civis estão refugiados.
Esta quarta-feira, as Nações Unidas deixaram um aviso: “Há falta de água e de saneamento. Isto preocupa-nos muito, porque as pessoas não podem sobreviver muito tempo sem água”, alertou o porta-voz Saviano Abreu, em declarações à BBC. As negociações para criar um corredor humanitário, porém, não avançam. Há militares ucranianos dentro da Azot — Kiev quer que possam sair com os civis, Moscovo recusa e exige rendição. A situação é cada vez mais parecida à da fábrica Azovstal, onde mais de dois mil militares ucranianos acabaram por se render às forças russas. E os habitantes de Severodonetsk há muito que o dizem: “Isto não vai acabar bem. Agora já temos a nossa própria Mariupol.”
A ponte Proletarskyi, última ligação por estrada, foi destruída. Há alternativa para sair da cidade?
A ponte Proletarskyi é a terceira e a última a ser destruída, tornando impossível retirar de carro quaisquer civis da cidade para Lysychansk, a localidade mais próxima controlada pelos ucranianos. O que deixa três alternativas para retirar os civis que ainda estão em Severodonetsk: saírem para o lado da república independente de Lugansk (controlada pelos russos), a pé ou por uma alternativa que pode estar a ser criada com barcos ou pontes flutuantes, como especula o The New York Times.
A evacuação prossegue, por isso, a conta-gotas e pela calada. “Há formas de fazer a ligação à cidade. São difíceis, mas existem”, disse esta semana Oleksandr Striuk, da administração militar da cidade, numa entrevista à televisão ucraniana. “O facto de as pontes terem sido destruídas torna tudo mais complicado, mas ainda há caminhos, mesmo que perigosos. Não podemos dizer que a cidade está totalmente isolada.” Ideia reforçada por Sergeiy Haidar, que diz que por enquanto o exército ucraniano ainda consegue enviar os seus feridos para hospitais. “É difícil entregar armamento ou reservas. Difícil, mas não impossível”, avisou, numa entrevista à Radio Free Europe.
Striuk tem alternado com Haidai a partilha de informação sobre o que se passa na cidade. Na manhã desta quarta-feira, fez a última atualização: a invasão russa prossegue vinda “de várias direções”, a cidade ainda não está totalmente cercada e a zona industrial da cidade ainda é controlada pelo exército ucraniano, garantiu o autarca. Mas a situação humanitária “é crítica”, reconheceu.
Os civis que ficaram para trás já vivem há semanas sem água nas torneiras, nem gás, eletricidade ou comunicações. Dependem da ajuda humanitária que vai sendo distribuída pelas ONG e autoridades ucranianas no terreno, que também ajudam a retirar os que desejam sair. Mas o intensificar dos ataques tem feito até os voluntários interromper os esforços por vezes: “Uma voluntária foi atingida quando ia bater de porta em porta. Perdeu a metade inferior da perna e muito sangue, antes de conseguirmos socorrê-la. Tentámos reanimá-la, mas não fomos bem sucedidos”, relatava há alguns dias à BBC um médico norte-americano, Anthony Casey, que está a trabalhar no terreno.
Aquela voluntária é uma dos cerca de 1.500 civis que já terão morrido na cidade vítimas da artilharia russa, segundo as estimativas de Oleksandr Striuk. “Mas não sabemos o número exato. Ainda há muitos cadáveres debaixo dos escombros dos edifícios. Temo que quando isto acabar tenhamos surpresas terríveis”, desabafou o responsável ao El Mundo.
Uma situação agravada pelo facto de a maioria dos que ficaram para trás serem sobretudo pessoas mais velhas. “São pessoas que não têm possibilidade de ir a lado nenhum, ou porque não têm dinheiro ou porque não se conseguem mexer, devido à idade. É também gente que nasceu e cresceu na cidade e não quer ir embora de maneira nenhuma”, resumiu Striuk.
“Têm vivido um verdadeiro inferno”, acrescentou Haidai numa das comunicações desta semana. “Mas enquanto for possível salvar pelo menos uma vida, iremos fazê-lo.” A conta-gotas e de forma dissimulada, a retirada de civis em Severodonetsk continua.
Centenas de civis presos na Azot, onde o nitrato de amónio é um risco
A maior tragédia anunciada, porém, é a que diz respeito aos pelo menos 500 civis que ainda estão na fábrica de químicos Azot — cuja retirada é muito mais difícil, já que o complexo industrial controlado pelos ucranianos continua a ser atacado pelas forças russas, por estarem também ali militares de Kiev.
Esta quarta-feira, o ministério da Defesa britânico partilhou a sua avaliação diária sobre a situação em Severodonetsk e destacou a resistência na Azot: “Elementos das Forças Armadas Ucranianas, bem como centenas de civis, estão abrigados nos bunkers subterrâneos da Fábrica de Químicos Azot, na zona industrial da cidade. As forças russas vão provavelmente concentrar-se à volta da Azot enquanto os militares ucranianos conseguirem sobreviver na zona subterrânea”.
Latest Defence Intelligence update on the situation in Ukraine – 15 June 2022
Find out more about the UK government's response: https://t.co/WxbRo1tEgH
???????? #StandWithUkraine ???????? pic.twitter.com/RX2bHMeIEc
— Ministry of Defence ???????? (@DefenceHQ) June 15, 2022
Situação em muito semelhante à que aconteceu na Azovstal, mas com duas grandes diferenças: primeiro, o facto de a estrutura desta fábrica não estar tão preparada para resistir militarmente aos embates dos bombardeamentos como a siderurgia de Mariupol; em segundo lugar, o risco que representa, já que esta fábrica, fundada nos tempos de Estaline, é uma das maiores produtoras de amoníaco da Europa e tem matérias perigosas.
Uma equipa do diário francês Le Monde testemunhou o risco quando visitou a fábrica em abril, altura em que já servia de abrigo a vários civis que se escondiam das bombas: além dos quartos improvisados nos corredores subterrâneos da fábrica, há também um tanque com nitrato de amónio, a mesma substância que esteve na origem da explosão no porto de Beirute, em 2020.
Os ataques das forças russas já levaram a alguns sustos. Isso mesmo confirmou ao The Telegraph Vladimir, um homem de 54 anos que esteve abrigado com a família na fábrica até ao início de junho, e que fazia parte da equipa de emergência que reparava os tanques com químicos quando estes eram atingidos. “Os ataques russos estavam a danificar os contentores que têm o amónio, um químico muito mau. Era por isso que eu não podia sair”, contou ao jornal britânico o ucraniano.
Enquanto ali esteve com a mãe e a sogra, de 82 e 70 anos, Vladimir ainda conseguia cozinhar e sair para fumar quando os bombardeamentos acalmavam. Diz que o grupo tinha acesso a um gerador que funcionava seis horas por dia. Mas a situação agravou-se entretanto e o diretor da Azot deu-lhe ordem para sair.
Outros, porém, ficaram para trás. Não apenas civis — 500, 800 ou até 1.200, segundo as diferentes estimativas das autoridades ucranianas, da empresa e das forças pró-russas, incluindo algumas crianças —, mas também militares ucranianos. Kiev não se tem pronunciado sobre essa acusação, que Moscovo invoca para continuar a bombardear a fábrica, mas Vladimir confirma: “Tornou-se tudo muito assustador quando os soldados ucranianos ocuparam posições dentro dos terrenos da fábrica e os ataques aproximaram-se muito de nós.”
A situação arrisca tornar-se igual à de Mariupol, “com uma bolsa de defensores ucranianos isolados do resto das tropas”, reconheceu um dos porta-vozes da Legião Internacional de Defesa da Ucrânia, que tem tropas no terreno.
Esta terça-feira, o exército russo deixou o aviso: “Os combatentes devem parar com esta resistência inútil e depor as armas”, disse o coronel-general Mikhail Mizintsev. Ao mesmo tempo, a Rússia anunciou que iria abrir um corredor humanitário para os civis presos na fábrica no dia seguinte. As Nações Unidas, porém, mostraram pouca fé. E eis que, horas depois, os responsáveis da república de Lugansk anunciavam que o corredor tinha sido suspenso por alegadamente ter sido alvo de disparos por parte do exército ucraniano.
Em causa está, à semelhança do que aconteceu na Azovstal, o futuro dos combatentes ucranianos que estão dentro da fábrica. A Rússia exige a sua rendição, enquanto a Ucrânia promete continuar a lutar. Entretanto, a comida dentro da Azot vai desaparecendo e os civis que ali permanecem estão cada vez mais em risco. “Se houver um corredor humanitário, acho que as pessoas estão prontas para abandonar a Azot”, garantiu à CNN Roman Vlasenko, da administração militar de Severodonetsk.
A “batalha mais violenta” que pode levar Severedonetsk a cair
À beira de um possível desastre humanitário na Azot, os bombardeamentos sobre Severodonetsk continuam. Do lado de Kiev, agudiza-se a retórica: “As forças russas continuam a usar táticas do tempo da II Guerra”, diz o ministério da Defesa. “A batalha em Donbass irá certamente ficar na história militar como uma das batalhas mais violentas da Europa”, avisou o Presidente Volodymyr Zelensky esta semana, que arriscou anunciar que em média estão a morrer mais de 100 soldados ucranianos por dia.
A continuar a este ritmo, a batalha por Severodonetsk pode resultar numa situação semelhante à que passou a cidade vizinha de Rubizhne, cuja destruição foi descrita por um correspondente da BBC como “uma reconstituição da devastação da II Guerra Mundial: filas de casas bombardeadas, ruas vazias, com apenas cadáveres e animais mortos nos caminhos”.
À Ucrânia dão jeito as comparações com a II Guerra, para tentar chamar a atenção do Ocidente para o desastre que se vive no Donbass, na tentativa de obter mais armamento. Mychailo Podolyak, assessor do Presidente, pediu diretamente “1.000 armas, 500 tanques, 1.000 drones”. Os Estados Unidos responderam esta quarta-feira com novas promessas de ajuda militar.
Mas há um forte risco de essa ajuda não ser suficiente para os ucranianos ou não chegar a tempo e o mais certo é a Ucrânia deixar de conseguir aguentar Severodonetsk. Um responsável da administração norte-americana previu mesmo ao Washington Post que toda a região de Lugansk vai acabar por cair nas mãos dos russos “dentro de algumas semanas”. Para isso, será necessário conquistar de vez Severodonetsk e, depois, a cidade-irmã de Lysychansk.
O especialista militar ucraniano Mykhailo Samus aponta que Severodonetsk pode cair em breve por não ser taticamente tão relevante para os ucranianos quanto é para os russos: “Conseguir o controlo total do Donbass tornou-se a principal prioridade militar de Vladimir Putin depois de as suas forças não terem conseguido tomar a capital ucraniana, Kiev, ou a segunda maior cidade, Kharkiv”, resumiu ao site Meduza. “Para o exército ucraniano, defender Severodonetsk não é muito vantajoso, mas recuar para Lysychansk sim, onde têm condições táticas mais favoráveis.”
Aí, na cidade que fica apenas a 10 quilómetros de Severodonetsk, pode iniciar-se um outro capítulo da batalha pelo Donbass, que ainda está para durar. E, quem sabe, depois de Severodonetsk, Lysychansk pode ser a próxima “nova Mariupol”.