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Ciência. Reitores travam entradas de investigadores nos quadros

O Governo criou um programa para regularizar vínculos precários na ciência. Os investigadores e docentes aproveitaram a oportunidade. Mas as universidades não estão dispostas a contratá-los.

Em poucos meses, fará 20 anos que Margarida Cunha voltou para Portugal depois de um doutoramento em Inglaterra. Na altura, a palavra de ordem era aumentar o número de doutorados em Portugal, porque estávamos muito desfasados em relação à Europa. Planos para integrar, depois, esses elementos especializados no sistema de investigação nacional é que não havia. E, na verdade, continua a não haver, pelo menos num horizonte temporal que vá além dos cinco ou seis anos.

Margarida Cunha poderia sentir-se feliz porque, em todos estes anos, esteve sempre ligada à mesma instituição — o Centro de Astrofísica da Universidade do Porto — e, que se lembre, só esteve 10 dias sem receber — embora tenham sido 10 dias com um impacto tremendo na sua carreira, como vamos ver. O problema é que a investigadora sempre teve vínculos que considera precários, ora bolsas de pós-doutoramento e outras bolsas de investigação, ora contratos a termo financiados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), e a universidade não parece estar interessada em melhorar a situação.

O caso da astrofísica é mau, mas não é o único — e também não é o pior. A Universidade do Porto parece ter virado as costas e fechado a porta com estrondo a mais de 400 investigadores com vínculos precários (bolsas, prestação de serviços ou contratos a termo), incluindo o presidente do Centro de Astrofísica, Jarle Brinchmann, como denuncia a Associação dos Bolseiros de Investigação Científica (ABIC). Trás-os-Montes, Aveiro, Coimbra, Lisboa e Algarve são outras das universidades sobre as quais existem denúncias de não estarem a cumprir a ideia geral do programa de regularização criado pelo Governo: diminuir a precariedade na função pública.

“Somos ‘Universidade’ para tudo, menos para termos um vínculo laboral sólido com a Universidade do Porto que garanta o futuro a toda uma geração de docentes e investigadores precários, de quem a universidade se serve para sua afirmação e agora considera descartáveis.”
Renata Freitas, membro da Associação dos Bolseiros de Investigação Científica

O Observador contactou investigadores, sindicatos, universidades e ministérios para tentar perceber que irregularidades existem naquele que devia ser o programa para acabar com elas — o PREVPAP. Os argumentos das universidades parecem não estar de acordo com os objetivos do programa, mas, questionados sobre isso, os ministérios preferiram não responder. “Os Ministérios do Trabalho e Finanças não fazem balanços intercalares sobre o andamento dos trabalhos nas CAB [Comissão de Avaliação Bipartida, o grupo de trabalho que avalia os requerimentos]”, conforme resposta enviada ao Observador. Remetem, assim, qualquer resposta para o ministério da tutela, Ciência, Tecnologia e Ensino Superior — que não respondeu a nenhuma das perguntas colocadas.

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Universidades colhem os frutos, mas não querem regar as árvores

Com tantos anos seguidos dedicados à mesma instituição, Margarida Cunha tinha esperança que a universidade a reconhecesse como uma necessidade permanente e a integrasse nos quadros, no âmbito do programa de regularização extraordinária dos vínculos precários na Administração Pública (PREVPAP). Enquanto coordenadora de grupos de trabalho internacionais, a cientista que estuda a atividade sísmica de estrelas gostava de poder contar com um vínculo mais estável à universidade que representa. Mas a informação que tem circulado (informalmente) é que não vai ser considerada no âmbito deste programa.

A Universidade do Porto entende que todas as instituições científicas privadas e sem fins lucrativos, onde é realizada grande parte da investigação da universidade, não pertencem à instituição, logo não são abrangidas pelo PREVPAP. É por isso que não conta dar parecer positivo a nenhum dos 425 requerimentos apresentados pelos investigadores de quase uma dezena de centros de investigação, diz a ABIC ao Observador. E isto apesar de os investigadores colocarem a Universidade do Porto como instituição de acolhimento em todos os artigos científicos — uma referência que permite que o trabalho conte para a ordenação dos rankings das instituições.

Por estarem contra a posição da universidade, os investigadores manifestaram-se no dia 14 de janeiro junto à universidade. “É do conhecimento geral que estes institutos estão em terrenos da universidade, são geridos por quadros da universidade [na maior parte dos casos], funcionam com fundos públicos, os seus trabalhadores dão aulas de licenciatura, mestrado, doutoramento e asseguram os programas doutorais da universidade, orientam as dissertações dos alunos, e toda a produção científica dos institutos conta para os rankings da universidade”, diz Renata Freitas, representante do núcleo do Porto da ABIC. “Somos ‘Universidade’ para tudo menos para termos um vínculo laboral sólido com a Universidade do Porto que garanta o futuro a toda uma geração de docentes e investigadores precários, de quem a universidade se serve para sua afirmação e agora considera descartáveis”, conclui.

Entidades que constituem o perímetro de consolidação da Universidade do Porto, aqui apresentado como Grupo U.Porto — Relatório de Gestão e Contas Consolidadas 2016

O relatório de atividades de 2016 da Universidade do Porto, a que o Observador teve acesso, inclui todas as atividades de investigação “realizadas no seio das faculdades e/ou no quadro dos institutos de interface integrados no perímetro da Universidade do Porto” — os mesmos que agora não são reconhecidos, embora sigam “os temas estratégicos definidos pela universidade”. Mais, no mesmo relatório, assinado pelo anterior reitor, Sebastião Feyo de Azevedo, é referido que “nestas entidades [ver caixa], o controlo sobre o património edificado, sobre equipamentos e outros ativos ou sobre recursos humanos afetos, permitiu verificar a existência de condições de controlo ou presunção de controlo por parte da Universidade do Porto”.

Institutos ligados à Universidade do Porto

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CIIMAR – Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental
IBMC – Instituto de Biologia Molecular e Celular
ICETA – Instituto de Ciências, Tecnologias e Agroambiente da Universidade do Porto
INEB – Instituto Nacional de Engenharia Biomédica
IPATIMUP – Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto
CAUP – Centro de Astrofísica da Universidade do Porto
ISPUP – Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto
LEMC – Laboratório de Ensaio de Materiais de Construção

Relatório de Gestão e Contas Consolidadas 2016, Universidade do Porto

O Observador questionou o atual reitor da Universidade do Porto, António Sousa Pereira, sobre o facto de a universidade não considerar os investigadores destas instituições como elegíveis no programa de regularização de carreiras, mas, até à publicação deste artigo, não teve qualquer resposta.

O mesmo tipo de acusação recebe a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. “Há uma tendência muito significativa para dar um parecer negativo aos investigadores, como casos que não necessitam de regularização”, acusa José Neves, representante, na CAB, do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa (que faz parte da Fenprof, Federação Nacional dos Professores). Porquê? Porque a faculdade diz que a relação dos investigadores é com FCT — que dá o financiamento — e, por isso, não os reconhece como seus, apesar de trabalharem nas instalações que lhes disponibiliza, apesar de contar com o número de investigadores nos seus relatórios e apesar de estes investigadores darem aulas aos seus alunos, acrescenta o professor que também faz parte do Conselho de Faculdade.

“As universidades querem investigação, mas não querem investigadores”, diz José Neves. Uma frase que o Observador ouviu várias vezes da boca dos investigadores e sindicalistas entrevistados. Se a investigação se mantiver precária, vai estender-se também à docência, alerta o professor de História. Exemplos disso são os inúmeros investigadores que dão aulas sem receberem nada por esse trabalho — e que, naturalmente, também não é pago pelos projetos de investigação ou bolsas.

Reitores consideram que ligações prolongadas não significam necessidades permanentes

Se a Universidade do Porto eliminou à partida os requerimentos dos funcionários de algumas unidades de investigação, a Universidade de Aveiro foi mais longe e eliminou todos os requerimentos numa primeira instância. “Na primeira reunião, nem sequer reconheciam o PREVPAP, tal como tinha sido veiculado pelo CRUP [Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas]”, conta ao Observador António Fernandes de Matos, representante da Fenprof (Federação Nacional dos Professores) na CAB nas reuniões da região centro. Num comunicado de março de 2018, o CRUP já tinha mostrado o seu descontentamento com o programa, por entender que “constitui um procedimento que não garante o princípio do mérito como critério de entrada na Administração Pública”.

Os representantes da Universidade de Aveiro na CAB começaram com um “não sistemático”, para depois começarem a admitir algumas possibilidades, mas os pareceres sobre os requerimentos continuavam a ser maioritariamente negativos, afirma António Fernandes de Matos, membro do Sindicato dos Professores da Região Centro (que faz parte da Fenprof). As reuniões na Universidade de Coimbra também não terão corrido melhor. “Têm o mesmo posicionamento”, afirma o docente da Universidade da Beira Interior. Estes serão, porventura, os piores casos na região centro, mas as taxas de aprovação nesta região — 7% de aprovação para docentes, 12% para investigadores — não diferem muito do que está a acontecer a nível nacional.

A posição da Universidade de Lisboa também não parece ser diferente das demais, acusa Gonçalo Velho, presidente do Sindicato Nacional do Ensino Superior (Snesup), um sindicato que não tem representação nas CAB. “A indicação da reitoria da Universidade de Lisboa é não passar nada no PREVPAP em relação aos docentes e investigadores. Só o pessoal não docente.” Estarão em causa casos semelhantes aos dos pedreiros e eletricistas que tinham sido contratados com bolsas de técnico de investigação, no que será um claro abuso deste tipo de vínculo que se destina “a proporcionar formação complementar especializada (…) de técnicos para apoio ao funcionamento e à manutenção de equipamentos e infra-estruturas de carácter científico e a outras atividades relevantes para o sistema científico e tecnológico nacional”, conforme noticiado pelo Público em 2014.

Dentro da Universidade de Lisboa, os presidentes dos dez departamentos do Instituto Superior Técnico (IST) também assumiram que se opunham à integração de investigadores e bolseiros nos quadros através do PREVPAP. “A precariedade é um problema complexo que não pode ser resolvido por via de um modelo único aplicável igualmente a todo o setor público”, referia um comunicado conjunto, citado pelo Diário de Notícias. O Núcleo de Investigadores do IST acusam a instituição de estar a discriminar alguns investigadores, os que têm vínculo com a IST-ID, uma associação de direito privado ligada ao IST e dirigida pelo seu presidente. “Os investigadores com vínculo à IST-ID trabalham em benefício do IST, em unidades de investigação do IST, lado-a-lado com colegas vinculados ao IST, tendo a maioria destes investigadores assinado de boa-fé os contratos com a IST-ID com a premissa de que permaneceriam em igualdade de circunstâncias com os restantes colegas”, escrevem em comunicado enviado às redações.

Os representantes da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH), da Universidade Nova de Lisboa, também pareciam determinados a rejeitar todos os requerentes numa primeira abordagem, mas a postura mudou, nota José Neves. “Como modificaram alguns pareceres, está longe de ser o pior dos casos.” Ainda assim, o sindicalista não percebe porque é que a generalidade dos prestadores de serviços e bolseiros de gestão de ciência e tecnologia nos serviços centrais da faculdade tiveram parecer positivo, mas nos serviços das unidades de investigação não. O diretor da FCSH, Francisco Caramelo, justifica que as contratações não são duradouras porque se baseiam num sistema de captação de financiamento. “Nos casos de evidente continuidade e larga duração na ligação à unidade, a FCSH reconheceu esses como necessidade permanente”, diz ao Observador, mas sem especificar quanto tempo constitui uma “larga duração”.

Na análise dos requerimentos dos trabalhadores com vínculos precários, as CAB focam-se em dois aspetos: se o trabalhador constitui uma necessidade permanente e se o vínculo que tem com a instituição é adequado. O CRUP, no comunicado já referido, entende que permanências prolongadas, próprias da formação especializada dos investigadores, não devem ser confundidas com necessidades permanentes. Segundo os sindicatos, as universidades não têm negado, na maioria dos casos, que se tratam de necessidades permanentes, o que negam é que o vínculo não seja adequado.

“O Ministério da Ciência alinha, normalmente, com a universidade. E os outros ministérios [das Finanças e do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social] alinham com a Ciência.”
António Fernandes de Matos, membro do Sindicato dos Professores da Região Centro

Os sindicatos acusam as universidades de quererem rejeitar a maior parte dos requerentes (sobretudo professores e cientistas), mas criticam também os elementos da CAB: “O Ministério da Ciência alinha, normalmente, com a universidade e os outros ministérios [das Finanças e do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social] alinham com a Ciência”, diz António Fernandes de Matos. Se forem quatro votos contra o candidato, só sobram os três votos dos representantes dos sindicatos.

Escolher investigadores com regras que não estão escritas

As universidades têm usado todo o tipo de justificações para não darem pareceres positivos aos investigadores: trabalham em unidades de investigação que não pertencem à universidade; a universidade não os conhece porque só reportam aos orientadores; têm contratos com a FCT (a agência financiadora), logo não trabalham para a universidade (ainda que esta seja a instituição de acolhimento); ou os projetos são limitados no tempo, logo os investigadores não representam necessidades permanentes. António Fernandes de Matos classifica estes argumentos de “intelectualmente pouco sérios”.

Tiago Dias, membro do secretariado nacional da Fenprof, diz que a postura das universidades têm sido tão pouco séria que, nas primeiras reuniões, nem sequer apresentavam todas as informações necessárias para a avaliação dos candidatos, como o tipo de duração dos contratos. “Agora já não há existe problema. Os requerentes, tendo percebido o que estava a acontecer, começaram a enviar aos sindicatos e à CAB informação adicional”, conta ao Observador.

O Ministério da Ciência tende a alinhar com as universidades, mas há uma situação em que parece manter-se firme no voto positivo ao candidato: investigadores que tenham tido um contrato Ciência e um contrato Investigador FCT, ambos financiados pela FCT, ambos por cinco anos, dizem os sindicatos. Às vezes até mesmo investigadores que tenham tido só um destes contratos, mas que com as bolsas de investigação pós-doutoramento somem 10 anos na mesma instituição com a mesma linha de investigação. As regras não estão escritas, mas o comportamentos vão sendo repetidos e registados pelos representantes sindicais. O Snesup, mesmo sem ter representação nas CAB, tentou que fossem exigidos apenas três anos de contrato Investigador FCT, mas sem sucesso.

Os contratos Ciência e Investigador FCT, quando foram criados, tinham como objetivo selecionar os melhores investigadores do país, num concurso altamente competitivo, avaliado por um painel internacional de investigadores, e, terminados os cinco anos de contrato, avaliá-los e integrá-los nos quadros das universidades, se isso o justificasse. A verdade é que estes investigadores nunca foram contratados pelas instituições, nem sequer foram sujeitos à prometida avaliação. E muitos foram eliminados no novo concursos de Estímulo ao Emprego Científico 2007.

Concurso FCT. Avaliações contraditórias, projetos trocados e grupos de investigação que podem ter de acabar

Margarida Cunha teve um contrato Ciência, em 2007, um contrato Investigador FCT, em 2013, e prepara-se para outro vínculo do mesmo tipo (a prazo) ao abrigo deste programa de estímulo ao emprego científico — embora ainda ninguém saiba quando serão assinados os contratos (como o Observador já revelou aqui). A qualidade da candidatura e o currículo que apresentou no último concurso levou mesmo a que os avaliadores se questionassem porque é que ainda não tinha sido contratada pela instituição. “De forma geral, esta candidata é excecional, com um projeto de investigação excelente e um registo impressionante de conquistas”, escrevem no relatório de avaliação. “É difícil perceber porque é que ela não tem já uma posição permanente.”

O Centro de Astrofísica da Universidade do Porto tem orçamentos limitados, daí que as únicas pessoas com contratos sem termo estejam vinculadas diretamente à Universidade do Porto, embora façam investigação no centro. Quando Jarle Brinchmann foi eleito para a direção, em junho de 2018, tinha um contrato Investigador FCT e não achou que fosse necessário outro tipo de contrato. Mas, quando este contrato acabar, vai ter de arranjar uma nova fonte de financiamento para pagar o seu salário (à semelhança de Maria Manuel Mota, como contámos aqui), porque a universidade não parece estar interessada em reconhecê-lo como um dos seus investigadores. E isto apesar de, desde 2003, indicar sempre a Universidade do Porto nos artigos científicos que publica e de ter dado aulas aos alunos de mestrado e doutoramento na instituição. “Temos uma situação em que a Universidade do Porto está interessada em obter crédito pela nossa produção científica, mas quando chega ao PREVPAP não querem ter responsabilidade, o que é lamentável, mas duvido que vá mudar”, diz o investigador ao Observador.

“Temos uma situação em que a Universidade do Porto está interessada em obter crédito pela nossa produção científica, mas, quando chega ao PREVPAP, não quer ter responsabilidade, o que é lamentável, mas duvido que vá mudar.”
Jarle Brinchmann, presidente Centro de Astrofísica da Universidade do Porto

A FCSH, da Universidade Nova de Lisboa, também não deu parecer positivo aos Investigadores FCT — ou, pelo menos, não a todos. Dos cerca de 20 Investigadores FCT que apresentaram requerimento, apenas três conseguiram passar, conta José Neves. São os três que já tinham tido também um contrato Ciência, logo são investigadores a trabalhar na faculdade há 10 anos com contratos pagos pela FCT. Ao Observador, o diretor da FCSH, Francisco Caramelo, diz que “há várias tipologias de investigadores” e que deu um parecer “em conformidade” com as “necessidades permanentes, em função da sua estratégia como instituição”. “Contratámos vários”, responde, sem dizer, no entanto, quantos.

Ainda sem resposta, Ana Ferreira não conta estar nestes “vários”. Embora seja investigadora na FCSH há seis anos e meio, teve sempre bolsas e nenhum contrato. E ainda esbarrou numa outra regra criada pela faculdade: como está abrangida pela norma transitória do Decreto Lei 57/2016, já terá a situação resolvida, conta ao Observador. Esta norma transitória prevê que quem fosse bolseiro há três anos pudesse beneficiar de um contrato de, no máximo seis anos, pagos pela FCT. É um contrato, com direitos que uma bolsa não confere, mas continua a ser um contrato a termo, enquanto os contratos ao abrigo do PREVPAP assinados com as instituições públicas são contratos sem termo, lembra a investigadora.

Pôr os docentes convidados a trabalhar mais horas que os do quadro

Dos 243 requerimentos já analisados pela Universidade do Porto, que incluem 173 de docentes e investigadores, houve apenas cinco pareceres positivos para a carreira de docentes — e nenhum para a carreira de investigador. Os requerimentos dos docentes dizem, normalmente, respeito a professores convidados, mas só os que estão a tempo inteiro na instituição (ou quase, 80 ou 90%, às vezes) têm conseguido um parecer positivo.

O professor convidado deveria ser uma personalidade externa de mérito reconhecido, às vezes até do tecido empresarial, que pudesse trazer um conhecimento diferente para o meio académico. Esse tipo de contratos podem ser a tempo inteiro (100%) ou parcial, mas sem exclusividade, o que, só por si, faz com que a instituição poupe logo um terço do valor que teria de pagar. “Existem professores convidados genuínos, que têm atividade principal noutro lado e vão à instituição só dar umas aulas”, diz ao Observador Tiago Dias. O problema é que também existem muitos casos de abusos desta figura. “Há docentes convidados com contratos a tempo parcial ad eternum.”

Um docente convidado só pode ter contrato a tempo inteiro com a instituição durante quatro anos. Depois disso, ou é dispensado ou entra para os quadros. Algumas instituições optam por fazer contratos a 100% durante três anos e, no quarto ano, passam para 90% ou menos, denuncia António Fernandes de Matos. “Quando a tutela [Ministério da Ciência] consegue detetar este subterfúgio [nas candidaturas dos requerentes], em geral, vota a favor do candidato”, diz.

Comparação de vencimentos

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Um professor auxiliar no quadro recebe cerca de 3.200 euros brutos, diz Pedro Oliveira. Se for um docente convidado a tempo inteiro, como não está em regime de exclusividade, recebe cerca de 2.500 euros brutos. Se estiver a fazer só 50% do horário, que ainda assim podem ser nove horas, recebe pouco mais do que 1.200 euros — menos dois mil euros que um professor do quadro para o mesmo número de horas.

E porque é que as instituições se aproveitam desta figura de professor convidado? Por um lado porque, mesmo a 100%, não precisam de pagar o regime de exclusividade que é cerca de um terço do ordenado final. Por outro, denunciam os sindicatos, porque criaram regulamentos internos que obrigam os docentes convidados a trabalhar muito mais horas que um docente do quadro — 16, 18 ou 20 horas por semana correspondem a tempo inteiro, quando que os docentes do quadro trabalham, no máximo, nove horas. Assim, um docente convidado a 50% (com oito ou nove horas de aulas por semana) chega a receber um terço do que um docente do quadro a fazer o mesmo número de horas. Está situação já teve um parecer negativo do Provedor de Justiça, mas as universidades não se inibiram de a replicar.

“Se as entidades não têm professores suficientes, causa-nos estranheza que não estejam a aproveitar o PREVPAP”, diz Tiago Dias. Mas parte da justificação é apresentada pouco depois pelo próprio: “As universidades falam de um ataque à autonomia”. Na visão do sindicalista, as instituições querem escolher quem contratam, mas a verdade é que os (falsos) docentes convidados que estão a pedir a regularização do seu vínculo foram escolhidos pelas próprias universidades — e muitos voltam a ser escolhidos, todos os anos, há mais de 10 anos. As universidades também se queixam que querem contratar os investigadores por mérito, não por imposição. Ora, muitos dos investigadores que estão a receber pareceres negativos das universidades já foram repetidamente avaliados (e elogiados) por painéis internacionais de especialistas.

“Se as entidades não têm professores suficientes, causa-nos estranheza que não estejam a aproveitar o PREVPAP.”
Tiago Dias, membro do secretariado nacional da Fenprof

Dizer que sim e depois arrepender-se

Entre as instituições que parecem querer rejeitar o maior número de candidatos possível e as que os querem regularizar, sobretudo os institutos politécnicos, existe ainda um terceiro caso: as universidades que dizem que sim e que depois se arrependem, como a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) e a Universidade do Algarve.

A UTAD recebeu 103 requerimentos de docentes, investigadores e bolseiros, aos quais a CAB deu parecer positivo em 24 casos. Em dezembro do ano passado, o reitor António Fontainhas Fernandes escreveu ao presidente da CAB da área da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior a pedir a reapreciação de, pelo menos, nove casos (um investigador, sete bolseiros e um técnico superior), que enumera na carta a que o Observador teve acesso. Note-se que a maior parte deles até tinha recebido um voto positivo por parte da universidade. Para justificar este pedido alegava que a “Lei do Orçamento de Estado para 2019 não contempla quaisquer verbas que permitam suportar as despesas com pessoal correspondente aos 24 novos postos de trabalho”, que as necessidades permanentes naquelas tarefas já foram supridas por outro programa do Governo — na verdade, um para o qual ainda não foram assinados contratos e que, portanto, também ainda não tem verba — e que alguns dos bolseiros tinham rescindido os contratos de bolsa.

“O que respondemos é que não compete ao reitor solicitar a revisão”, conta Pedro Oliveira, membro da CAB que recebeu o pedido. O processo poderia ser reaberto, mas só mediante a apresentação de novos elementos. E a CAB considerou que os elementos não justificavam uma nova análise do processo, porque, à data do requerimento, os candidatos reuniam as condições que levaram aos pareceres positivos. O facto de a pessoa ter terminado um contrato com a instituição e ter procurado outro emprego enquanto espera pelo resultado da avaliação do requerimento não significa que já não queira ficar com o lugar. “Se o requerente não quiser ser abrangido pelo programa, tem de o dizer por escrito.” Ou, simplesmente, não se candidatar à vaga que for aberta para ele, obrigando à extinção do lugar.

O Observador enviou perguntas ao reitor António Fernandes sobre esta situação, mas, até à publicação deste artigo, não teve qualquer resposta.

Na Universidade do Algarve, o reitor também enviou uma carta, mas não para a CAB — endereçou-a ao ministro da Ciência, Manuel Heitor. Depois de votar favoravelmente pela contratação de alguns candidatos e desses pareceres terem sido aprovados por unanimidade, o reitor escreveu ao ministro a pedir que não os homologasse, conta António Fernandes de Matos. A justificação: dificuldades financeiras. Não tinha verba para pagar as contratações. O Observador tentou falar com o reitor Paulo Águas sobre esta questão, mas, até à publicação deste artigo, não teve qualquer resposta.

Os pareceres que saem das CAB têm de ser homologados pelos três ministérios envolvidos — Ciência, Trabalho e Finanças — e só depois pode ser aberto um concurso para esse lugar. Manuel Heitor confirmou que tinha recebido o pedido da Universidade do Algarve, mas não adiantou o que iria fazer em relação a ele, nem tão pouco conseguiu garantir às instituições que vão ter dinheiro para pagar a estes trabalhadores. “O ministro deve esclarecer como é que o Orçamento de Estado vai dar resposta a estas situações”, diz Tiago Dias. As instituições, já com orçamentos deficitários, não se querem comprometer com contratos que depois não vão poder pagar, mas o sindicalista defende que os reitores deviam regularizar os contratos e exigir que o Governo pagasse.

Costa diz a reitores que é fundamental combater a precariedade no ensino superior

“Não há um cêntimo nas dotações orçamentais propostas para a regularização dos vínculos no âmbito do PREVPAP”, disse, citado pela TSF, António Cruz Serra, reitor da Universidade de Lisboa, na despedida de Marcelo Rebelo de Sousa enquanto professor naquela universidade. “O não-financiamento destes contratos constitui uma violação do acordo assinado entre o Governo e as universidades públicas”, acrescentou o reitor. Tiago Dias explica ao Observador que o ministro da Ciência assinou um acordo com o CRUP em que o “Governo se comprometia a não baixar o financiamento às instituições de ensino superior e a reforçar o financiamento sempre que houvesse alterações legislativas”, como é o caso das alterações decorrentes do PREVPAP. “O Governo têm-se furtado a assumir que vai reforçar o financiamento”, acusa o sindicalista.

O Observador colocou várias questões ao Ministério da Ciência sobre o caso da Universidade do Algarve, as alegadas irregularidades reportadas pelos sindicatos nas várias universidades, a baixa taxa de aprovação entre docentes e investigadores e as garantias e financiamento às instituições, mas, até à data da publicação deste artigo, não teve qualquer resposta.

Quem mais sofre com a precariedade: a ciência ou os cientistas?

Margarida Cunha terminou o contrato Investigador FCT em junho de 2018. Os resultados do Concurso Estímulo ao Emprego Científico Individual 2017 (CEEC Individual), que só abriu em janeiro do ano passado, foram conhecidos em setembro e ainda não existe nenhum contrato assinado no âmbito desse programa. Entre o fim de um contrato e a assinatura do próximo — que não sabe quando vai acontecer —, a astrofísica teve de arranjar uma solução: uma bolsa de investigação num projeto do qual era investigadora principal. Ou seja, em vez de contratar uma pessoa para ajudar no projeto e continuar a trabalhar nele como coordenadora, teve de se pagar a si própria e ter menos um par de mãos e olhos a trabalhar. O mesmo fez Ana Ferreira, que acabou a bolsa de pós-doc que tinha e teve de se contratar no próprio projeto, enquanto espera pelo contrato da norma transitória. Primeira perda para a ciência: menos pessoas contratadas.

Há 20 anos a trabalhar no mesmo centro, Margarida Cunha quer manter-se na instituição. Jarle Brinchmann também — além disso, a mulher é professora em Portugal, o que é um bom motivo para continuar por cá. São muitos investigadores que não querem pensar em sair da instituição, da cidade ou do país onde trabalham, para não perturbarem (ainda mais) a vida pessoal e familiar. Mas há quem não tenha outra solução. “Se deixarem a carreira e forem para outros sítios, é um erro estratégico para a universidade”, diz Pedro Oliveira, referindo-se à Universidade do Porto, mas podia estar a falar de qualquer universidade do país.

Os investigadores vão-se embora porque não aguentam ficar mais tempo sem receber, porque não podem esperar mais tempo pela assinatura de um contrato, porque não conseguiram financiamento apesar de terem tentado todos os recursos disponíveis. Uns esperam uns dias, outros vários meses, mas, independentemente de quanto tempo passe, a ansiedade do fim de um contrato que se aproxima e a falta de resposta para dar continuidade ao trabalho de investigação cria uma enorme ansiedade nos profissionais e nas equipas que coordenam. Tornam-se claros os dois grandes prejuízos para os cientistas: a nível psicológico e a nível financeiro.

“Foi uma questão de princípio: se não me pagam, não trabalho.”
Margarida Cunha, investigadora no Centro de Astrofísica da Universidade do Porto

Neste contexto, os 10 dias  que Margarida Cunha esteve sem receber até parecem pouco tempo, mas revelam uma realidade amarga para a investigação científica em Portugal e para a forma como é vista pelos parceiros internacionais. É que estes 10 dias apanharam, precisamente, uma importante reunião internacional na qual a investigadora deveria preparar uma sessão. Cabia-lhe esta responsabilidade por ser coordenadora de um grupo de trabalho de um consórcio internacional que trabalha com os dados do satélite TESS, da NASA (agência espacial norte-americana), mas, à última hora, cancelou.

“Foi uma questão de princípio: se não me pagam, não trabalho”, diz referindo-se à instituição de acolhimento em Portugal que, sem a investigadora ter um contrato, não lhe podia sequer as ajudas de custo para assistir à conferência. “Abateu-me psicologicamente. Foi a primeira vez que não cumpri com um parceiro internacional.” Para a investigadora, esta instabilidade de contratos e financiamentos prejudica a imagem internacional dos investigadores que trabalham em Portugal. “Os parceiros internacionais perdem a confiança no país, porque os projetos são pensados a 15 ou 20 anos”, diz. “Não lhes podemos falhar num momento crítico [como o de uma missão espacial].”

A solução, defende a astrofísica, não é injetar mais dinheiro ou criar contratos avulso, nos quais se enche o sistema académico todo de uma vez e nos próximos anos não entra mais ninguém. “A solução tem de ser pensada a 20 anos, não numa legislatura”, diz. “É importante que haja posições de carreira. É preciso pensar um modelo de investimento numa carreira de investigação, que não o PREVPAP.” E isso passa por escolher as áreas de investigação em que Portugal deve apostar, selecionar os melhores investigadores para trabalhar nelas e ter regularidade no financiamento da ciência e na contratação dos investigadores.

A regularidade da contratação e a definição de calendários para os vários concursos são medidas defendidas pelos investigadores. A título de exemplo, o ideal era que, a cada dois anos, abrisse um concurso de financiamento de projetos de investigação (com planos de atividades para três anos). Nesta legislatura, houve apenas um, que abriu em fevereiro 2017 e teve os resultados anunciados quase um ano e meio depois, em junho de 2018. Sobre os Concursos de Estímulo ao Emprego Científico, estavam previstos três nesta legislatura, mas o de 2017 abriu já em janeiro de 2018 e ainda não tem resultados finais. Quem não consegue financiamento num dos concursos, às vezes tem de esperar anos por um novo financiamento a nível nacional.

Quando as oportunidades são escassas e não se sabe quando é que voltam a abrir outros concursos, os investigadores são quase que obrigados a aproveitar todas as oportunidades anunciadas. “Candidatamo-nos a tudo o que aparece, porque não sabemos quando vai ser o próximo concurso”, diz Ana Ferreira. O problema é que, diz a investigadora, “um concurso destes demora um mês a preparar”. “É um mês que não estou a trabalhar no meu projeto, com consequências diretas no meu trabalho”, conclui.

Atualizado com o comunicado do Núcleo de Investigadores do Instituto Superior Técnico.
Correção: a Universidade do Porto estava disposta a pagar a viagem a Margarida Cunha, mas não a contratá-la por 10 dias e, como tal, não lhe pagava ajudas de custo (nem ordenado).

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