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CAROLINA BRANCO/OBSERVADOR

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Cláudia desapareceu há 25 anos e já ninguém a procura. Justiça destruiu o processo em 2017

Foi nos 500 metros entre a casa e a escola que Cláudia desapareceu. Tinha 7 anos, hoje teria 32. A mãe, que já tinha chorado a morte de um filho, perdeu outra. "Nem sei se está morta, se está viva."

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Parte da janela da frente está forrada com fotografias de Cláudia. O sol levou-lhes quase toda a cor: já ali estão há mais de duas décadas. Foi a avó de 94 anos que as colou, na esperança de que um dia a neta regresse a casa e se reveja naquelas caras espalhadas pelo vidro. Olívia Alves “não queria morrer sem a ver”, mas sabe: “Ela bem pode passar aqui. De que vale? Disseram-lhe que foi vendida pela mãe. Tiraram-lhe as ideias, tiraram-lhe o nome. É assim a vida. A vida continua”.

Tudo envelheceu. A mãe de Cláudia, Maria de Jesus Silva, tem agora 57 anos. Os cabelos louros — aqueles que a filha “desaparecida” herdou — já começam a dar lugar a fios brancos. Engordou, finalmente, após anos a alimentar-se pouco e a beber demais. O marido e pai de Cláudia, José Sousa, morreu há 10 anos. “Cancro”, diz num suspiro, enquanto desabafa: “Agora é moda”. Os três filhos já são adultos — uma foi viver para Espanha — e deram-lhe cinco netos. Apenas o mais novo, nos 30, ainda ali vive. No lugar de Lamela, freguesia de Oleiros e concelho de Vila Verde, já ninguém quer repetir a mesma lengalenga, mas ninguém esquece aquela tarde, passem os anos que passarem.

"Ela bem pode passar aqui. De que vale? Disseram-lhe que foi vendida pela mãe. Tiraram-lhe as ideias, tiraram-lhe o nome"
Olívia Alves, avó de Cláudia

Só Cláudia não envelheceu. Na cabeça da mãe, continua a ser a menina de sete anos que viu pela última vez na tarde de 13 de maio de 1994. “Só de me lembrar o que ela me disse quando foi, até me arrepio”, diz. Vai esfregando os braços com as mãos, como se tentasse abraçar-se a si própria. “Só disse: ‘Ó mãe, até logo’. E nunca mais a vi”, conta em conversa com o Observador, poucos dias antes de passarem 25 anos do desaparecimento de Cláudia Alexandra Silva e Sousa — ou “carricinha”, como era apelidada.

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Maria de Jesus acredita que aquele “até logo” foi mesmo um “até logo” e que a filha vai voltar a procurá-la, mais dia menos dia. “Ela era pequena, deram-lhe coisas e foi esquecendo a família”, diz. Quer voltar a vê-la, mas admite: “Antes queria que me dissessem: ‘Olha, está aqui morta’. Assim, sabia ali. Agora, nem sei se está morta, se está viva, se está bem, se está mal. Até me arrepio de pensar”.

Já pensou muitas vezes na possibilidade de a filha ter sido assassinada, mas “essa ideia” sai-lhe “logo da cabeça”. Maria de Jesus está praticamente certa de que a filha foi raptada e vendida para uma família — e tem suspeitas de uma familiar que a possa ter levado. “Há tanta criança para adotar, foram logo levar uma que tinha mãe e pai?”, questiona-se, revoltada.

Revoltada está também, e ainda hoje, com as autoridades que “não fizeram nada”. “Se eu lhes desse dinheiro, eles procuravam, como a Madeleine [McCann]. Mas sou pobre”, desabafa, não tardando a admitir: “A verdade é que andam a gastar tanto dinheiro com a Maddie e não a encontram”.

Maria de Jesus tinha 32 anos quando a filha desapareceu — a mesma idade que Cláudia teria hoje (Foto: CAROLINA BRANCO/OBSERVADOR)

CAROLINA BRANCO/OBSERVADOR

Não procuram mais a filha, sequer. As palavras são duras e vêm da boca da presidente da Associação Portuguesa da Criança Desaparecida, Patrícia Cipriano: “Mais ninguém procura a Cláudia“. Aliás, o processo do desaparecimento já não existe. As provas recolhidas e as que ficaram por recolher, os depoimentos prestados por testemunhas (que, entretanto, já morreram), o relatório final da investigação, o que a polícia fez e não fez e quando fez — tudo foi destruído há dois anos, pelo Tribunal de Vila Verde.

Resta agora a esperança da família, a memória dos habitantes de Oleiros e dos jornais — muitos deles guardados em gavetas espalhadas pela casa de Maria de Jesus —, os sonhos e alucinações. Maria de Jesus tem sonhado com a filha, mas nunca lhe vê a cara. No dia a dia, aí, parece vê-la em todo o lado, achando que a ouve a gritar por si. Às vezes, olha para o vazio e pergunta: “Onde é que tu estás?” Nunca teve resposta, embora várias pessoas — incluindo o padre da aldeia —, ao longo dos anos, lhe tivessem dito que sabiam a resposta e onde estava Cláudia. Nunca revelaram. E, para Maria de Jesus, continua a ser um mistério. “Parece que se foi pelo chão abaixo”. Afinal, o que é que a polícia fez e o que aconteceu ao certo naquela tarde, nos dias antes e nos anos seguintes?

A sexta-feira quente e a “chuvada” que caiu depois. “Foi e nunca mais veio, até hoje”

Cláudia estava no segundo ano da escola primária. Só tinha aulas de manhã, mas acabava por passar as tardes na escola, a brincar com a filha da funcionária, Maria Goreti. A tarde daquela sexta-feira, 13 de maio de 1994, não foi exceção. “Andava sempre por ali. Ia a casa e vinha para brincar no intervalo com os outros miúdos. E depois ficava no fim da escola. Elas as duas ficavam por ali a brincar e eu andava a fazer o meu trabalho“, conta Goreti, como é conhecida em Oleiros, ao Observador — a funcionária ficava na escola até às 18h00.

"Ia a casa e vinha para brincar no intervalo com os outros miúdos. E depois ficava no fim da escola. Ficavam por ali a brincar e eu andava a fazer o meu trabalho"
Maria Goreti, funcionária da escola

Tal era o hábito que Goreti já trazia lanche “a contar com a Cláudia”. Naquele dia, porém, não tinha trazido e, em alternativa, deu dinheiro a Cláudia para ir ao minimercado de Oleiros — que, hoje em dia, já não existe — para comprar umas sandes. Entrou, “despachada”. O dono do estabelecimento, Américo Gomes, ficou de tal forma impressionado com Cláudia que, até hoje, já nos seus 75 anos, tem esse momento gravado na memória. “Ela era muito bonita, uma catraia de sete anos, com os olhos tão bonitos. Até perguntei: de quem é esta menina?”, conta. Explicaram-lhe que era a filha de Maria de Jesus. Horas mais tarde, Cláudia deixava de ser a filha da vizinha para passar a ser a menina desaparecida.

Depois da passagem pelo mini-mercado, a criança regressou à escola e comeu o lanche com a filha da funcionária. Goreti “andava a varrer o terreiro”. “Enchi um saco de lixo de folhas de uma árvore que lá havia”, explica ao Observador. Recorda a conversa que se seguiu, retrocedendo dos seus 59 anos para os 34:

— Olha, acabaram-se os sacos, mas eu também não apanho mais — desabafou.

— Mas eu vou a casa mudar de roupa e trago os sacos — disse Cláudia.

Estava “um tempo quente”, nas palavras de Goreti, mas, de repente, veio “uma chuvada”. Cláudia, que andava por ali a brincar, calçada com uns chinelos de enfiar o dedo, molhou-se numa poça de água e quis ir mudar de roupa. Assim, aproveitava e trazia os sacos. A mãe da criança, doméstica, tecia. Quando os tecidos acabavam, mandava os sacos — grandes e de plástico — onde os guardava. Ainda hoje faz umas passadeiras de farrapo para ganhar uns trocos — aprendeu aos 14 anos, com uma vizinha.

Cláudia chegou acompanhada por um amigo. Entrou casa adentro, pela divisão onde, ainda hoje, a mãe tem a (nova) máquina de tecer: aquela que tinha naquele ano ainda durou, mas a madeira acabou por apodrecer e, “há dois ou três anos”, comprou outra. Hoje, 25 anos depois, aquela divisão está cheia de sacos, cheios e vazios. Naquela tarde de 1994, porém, tinham esgotado. Maria de Jesus mandou a filha voltar para trás e dizer a Goreti que não tinha sacos. Antes, Cláudia mudou mesmo de roupa. O amigo com quem vinha ficou no quintal a brincar e Cláudia seguiu para a escola. “Ó mãe, até logo”, disse. Eram eram cerca das 7h da tarde.

Maria de Jesus só lamenta que a filha mais velha, também Maria, mas dos Anjos, 11 anos na altura, não tivesse aparecido mais cedo. Tinha acabado de chegar da escola pouco depois de a irmã sair de casa. “Ó mãe, a Cláudia já foi?”, perguntou a Maria de Jesus, que lhe respondeu que sim. “Se não, eu ia com ela”, disse Maria dos Anjos. Mas não foi. E da irmã, ninguém saberia mais.

Cláudia desapareceu no regresso à escola, um trajeto de apenas 500 metros, no centro da aldeia e rodeada de casas, a Rua de Baltar. Maria de Jesus nem sabe que roupa a filha vestiu — o que a impossibilitou de a descrever às autoridades. “Sei que me faltaram umas calças cor de rosa, com um remendo no joelho, e uma camisola também cor de rosa. De resto, não sei nem o que levou calçado”, disse ao Observador.

Cláudia tinha sete anos e andava no segundo ano da escola primária quando desapareceu (Foto: CAROLINA BRANCO/OBSERVADOR)

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A mãe nunca se responsabilizou ou responsabilizou Goreti, pelo desaparecimento: “Ninguém teve culpa. Se ela teve culpa, também eu tive, por a mandar sozinha. Eu sabia lá. Se soubesse, não a deixava ir”. Tal pensamento nunca passou também pela cabeça da funcionária da escola. “Naquele tempo, as crianças iam todas para a escola a pé, andavam por aí. Há 25 anos, tínhamos lá medo que acontecesse alguma coisa?“, explica. Só sabe que Cláudia “foi e nunca mais veio, até hoje”. Goreti julgava que a criança tinha ficado na casa da mãe: fechou a escola e foi para casa. Maria de Jesus julgava que a filha estava na escola: ficou à espera que regressasse para jantar. E assim ficaram convencidas durante horas. Mas a mãe não foi a última pessoa a ver Cláudia, naquela tarde.

Escuteiros passaram terrenos a pente fino à procura de pistas. Só havia uma: o carro preto

A hora do jantar começava a aproximar-se e Cláudia não aparecia em casa. Já de mesa posta e com a família à espera para comer, os pais começaram a ficar inquietos. O pesadelo de Maria de Jesus — e a ameaça que tinha recebido semanas antes — pareciam estar a tornar-se realidade. Foram “saber dela”. “O meu marido foi para uma banda, eu fui para outra, a minha filha mais velha foi para outra”, recorda. Não havia sinais de Cláudia e a reação da mãe foi imediata: “Foi levada”.

O lugar de Lamela começava a ficar em alvoroço. Os vizinhos saiam para a rua à procura da criança e a mensagem ia-se espalhando. Os escuteiros de Oleiros entraram em ação, assim que começaram a “ouvir falar disso”. Rosalina Queirós tem 62 anos e ainda hoje faz parte dos escuteiros. Foi uma das pessoas que os fundaram há 37 anos — 37 anos em que nada mais chocante aconteceu do que o desaparecimento de Cláudia. “Andámos toda a noite à procura. Íamos chamando o nome dela e vendo se havia rastos ou pegadas de pessoas”, conta ao Observador. Não havia.

“Não dormi”, diz Maria de Jesus. “Ninguém dormiu”, reformula. A madrugada aproximava-se e a mãe de Cláudia começava sentir que o delírio também se aproximava dela. “Eu só a ouvia, na minha cabeça, ela a chamar por mim: mãe, mãe, mãe“, conta, virando-se para os lados, como se estivesse novamente a ouvi-la a gritar. Quando o sol nasceu, houve um reforço nas buscas. Os escuteiros reuniam-se todos os sábados de manhã. Naquele dia, a reunião foi substituída por trabalho no terreno. Mas ninguém encarou aquilo como uma brincadeira. “Todas os escuteiros levaram tudo a sério”, garante Rosalina.

"Não dormi. Ninguém dormiu. O meu marido foi para uma banda, eu fui para outra, a minha filha mais velha foi para outra. Eu só ouvia, na minha cabeça, ela a chamar por mim: 'Mãe, mãe, mãe'"
Maria de Jesus, mãe de Cláudia

Carla Leitão foi uma das que foram chamadas para reforçar a equipa. Tinha 15 anos e, agora, é a presidente da Junta de Freguesia de Oleiros. “Foi uma bomba. Achávamos que isto só na televisão é que acontecia”, diz. Cada escuteiro andava com uma vara a desbastar mato. À noite, eram equipados com lanternas. “Onde achássemos que Cláudia podia estar, procurávamos”, conta Carla. Toda a freguesia — matas, silvas, poços e tanques — foi passada a pente fino: primeiro, pelos montes perto da casa; depois, alargaram a área. O então presidente da Junta, Augusto Silvestre, também ajudou nas buscas, “mas não valia a pena: ela não estava em lado nenhum”.

Maria de Jesus não estava crente de que Cláudia tivesse caído a um poço ou sequer que se tivesse aproximado de um: “Ela tinha medo de água que se pelava. Para tomar banho, gritava sempre”. “Ó Cláudia, vamos tomar banho?”, simula, baixando-se e levantando a mão como se a filha ali estivesse. “Ui, o berreiro que ela fazia. Mas tomava banho. Depois de estar na água, já gostava”, continua.

Antes de partir para o próximo passo —  participar o desaparecimento à GNR — faltava procurar num último sítio: a escola. Maria de Jesus foi, então, bater à porta da casa de Goreti para lhe foi pedir para abrir a escola e verificar se a filha não teria adormecido por lá. Ali ainda não tinham chegado as notícias. Recebeu-as em choque, mas na esperança que de Cláudia se tivesse deitado numa manta na sala do Jardim de Infância e tivesse adormecido. Goreti também estava pouco crente: “Ela não se metia lá dentro sem eu estar. Eu andava a limpar, tinha tudo aberto, é verdade. Mas as janelas eram baixinhas, ela abria e saía”. Ainda assim, foram à escola. Nada de Cláudia.

Os escuteiros de Oleiros fizeram buscas em toda a freguesia durante quase 48 horas (Foto: CAROLINA BRANCO/OBSERVADOR)

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Já havia pouco a fazer. E uma pista que, entretanto, começava a circular tornava evidente a necessidade de pedir ajuda às autoridades. Rosa Peneda, uma vizinha, passou por Cláudia quando esta regressava a escola: cada uma seguiu em direções opostas. Pouco depois, Rosa ouviu umas portas de um carro a bater. Olhou para trás. Viu um carro preto, mas Cláudia já lá não estava. Como na altura desvalorizou a situação, Rosa lembrava-se de pouco: não sabe quem estava dentro do carro, nem conseguia garantir que a criança tivesse entrado na viatura.

Maria de Jesus conta que também ela chegou a ver esse carro a andar por ali. “Tinha um homem atrás e outro à frente. Mas nem pensei em nada”, diz. Outro vizinho, segundos depois, ter-se-á deparado com o mesmo carro num cruzamento. Contou, na altura, que o carro tinha prioridade, mas deixou-o passar. A mãe tem uma teoria: “Foi para ele não ver que levava a menina”. O que Rosa Peneda sabia ou não sabia só resta nas memórias da mãe e dos vizinhos. A vizinha já morreu e o seu depoimento — se alguma vez chegou a ser prestado — estaria arquivado no processo judicial que o desaparecimento fez abrir — mas que já foi destruído.

“Ela foi namorar”. Agentes da GNR só foram ao terreno três dias após o desaparecimento

A suspeita de rapto começava a solidificar-se e os pais de Cláudia foram ao posto da GNR de Vila de Prado, a freguesia vizinha, para participar o desaparecimento da filha. A resposta do agente da GNR nunca mais saiu da cabeça da mãe da criança, que tenta reproduzir a conversa que teve naquele posto:

— Ela foi namorar — respondeu-lhe o agente.

— O quê? Namorar? Você acha que eu tenho cara de ter uma rapariga com idade para namorar? — respondeu a mãe, lembrando que, na altura, tinha 32 anos.

— Quantos anos tem a menina?

— Tem sete.

— Percebi 17 anos. Mas, sem fazer 24 horas, não se pode fazer nada — rematou o agente.

O pedido de ajuda de Maria de Jesus e a esperança de que a GNR pudesse ajudar a família foram arrumados com um mito: o mito de que só se começa a investigar um desaparecimento passadas 24 horas. Patrícia Cipriano, presidente da Associação Portuguesa da Criança Desaparecida (APCD), acredita que em, “alguns pontos do país, isso ainda aconteça”, quando devia acontecer exatamente o contrário: “É preciso agir imediatamente”, diz. Patrícia Cipriano, advogada, explica que, naquela altura, os agentes da GNR “não estavam formatados” para tratar desaparecimentos porque pertenciam a “outras brigadas”. “Isto era tratado de forma intuitiva e não de uma forma estudada. Não havia um método — ainda hoje não há”, denuncia.

"As crianças, normalmente, duram 72 horas. Ao fim de 72 horas, estão mortas. Serviram o determinado propósito e acabou".
Patrícia Cipriano, presidente da Associação Portuguesa da Criança Desaparecida

Maria de Jesus voltou para casa — a casa onde nasceu e cresceu e onde ficou a viver quando casou com José Sousa: ele com 18 e ela com 20. A casa que já tinha sido assolada por outra desgraça: a morte de um filho. O terceiro filho do casal — um rapaz grande, mas muito “doentinho”, nascido antes de Cláudia — morreu quando tinha 18 meses, com hepatite. “Passava mais tempo do hospital do que em casa”, recorda a avó, Olívia Alves. Agora, um novo pesadelo avizinhava-se e era mais difícil: “Do meu filho, eu fiz o luto. Desta não“.

Os escuteiros já não tinham mais por onde procurar. Viraram toda a freguesia do avesso, mas não tinham capacidade para alargar as buscas a outras freguesias. Rosalina Queirós ainda se lembra do momento em que agarrou no walkie talkie e disse: “Vamos embora“. As buscas terminaram para dar lugar a uma investigação demorada e a 25 anos sem se saber de Cláudia.

Os agentes da GNR só apareceram na segunda-feira — três dias depois —, denuncia a mãe de Cláudia. “Vinham aqui perguntar-me se nós sabíamos sabíamos onde ela estava. Se nós soubéssemos, não estávamos a pedir ajuda. Fiquei com uma raiva da Guarda que, quando os via, tremia toda. Ainda hoje”, conta Maria de Jesus, questionando, desanimada: “Onde é que ela, na segunda-feira, já não estava?“.

Patrícia Cipriano, presidente da APCD, lamenta que assim seja, mas tem uma previsão: “Globamente, a estatística é muito clara: as crianças, normalmente, duram 72 horas. Ao fim de 72 horas, estão mortas. Serviram o determinado propósito e acabou”. Se a GNR só lá foi na segunda ou se a memória de Maria de Jesus já falha, difícil será saber: o processo foi destruído. E no posto de Vila do Prado já não está ninguém daquele tempo. Os vizinhos sabem que a GNR esteve lá, mas já não conseguem dizer quando. Facto é que, naquela tarde de segunda-feira, as tais 72 horas críticas já teriam passado.

Entre as fotografias que estão na janela está a que consta na lista da PJ e o retrato robot feito anos depois (Foto: CAROLINA BRANCO/OBSERVADOR)

Nessa segunda-feira, Maria Goreti voltou ao trabalho na escola. Os pais dos alunos estavam em pânico. “Quase todas as pessoas passaram a ir buscar os filhos à escola. Ficaram com medo”, conta. Também ela estava assustada e não parava de pensar da Cláudia. “Parecia que a via em todo o lado. Olhava para a turma daqueles meninos todos e faltava lá aquela“. Ainda hoje falta. Goreti ainda trabalha no mesmo sítio, nas mesmas funções, e ainda está à espera que Cláudia lhe venha dizer que a mãe não tinha os sacos.

PJ interroga pais um mês depois. Prima ameaçou levar uma das filhas: “Se não for a grande, vai a pequena”

A investigação demorava em avançar e Maria de Jesus foi, ela própria, traçando as teorias possíveis para o que teria acontecido à sua filha. “Não desconfiei logo”, começa por dizer, mas a verdade é que uma conversa que tivera semanas antes do desaparecimento, não lhe saía da cabeça. Maria Júlia, sua prima, veio bater-lhe à porta, a pedir a filha mais velha:

— Para que é que queres? — perguntou Maria de Jesus.

— É para um casal.

— Mas para quê? Para servir? Eu não a vou tirar da escola. Eu sou pobre, mas ainda consigo mantê-la — disse a mãe.

— Se não for a bem, vai a mal. Se não for a grande, vai a pequena — terá respondido Maria Júlia, referindo-se a Cláudia.

Ainda hoje, Maria de Jesus acredita que foi a prima Maria Júlia que levou a filha: “Naquela altura, havia falha de crianças. Vendeu-a“. E elabora a sua teoria: “Nesse mesmo dia que a Cláudia desapareceu, ela foi pedir dormida à minha mãe — a minha mãe é que não deixou. Nunca apareceu em casa na sexta, sábado, domingo, e segunda só apareceu ao meio dia. Onde é que ela andou? A Guarda tinha de saber por onde é que ela andou. E, no sábado, houve um casal que foi a Vila Verde comprar roupa de sete anos, para menina”. “Porque ela ia com a roupinha da semana. Não ia limpa”, acrescenta a avó.

Maria Júlia acabaria por ser interrogada pela Polícia Judiciária (PJ) da Braga — a quem a investigação foi entregue, por se suspeitar de rapto. Mas, primeiro, foram os pais. No dia 17 de junho — mais de um mês depois do desaparecimento —, dois inspetores foram falar com o casal e com a funcionária da escola, que lhes contaram o que se passou naquela tarde. Os pais de Cláudia foram descritos, num relatório da PJ a que o jornal i teve acesso, ainda antes de o processo ser destruído, como “pobres e bastante alcoólicos“.

Maria de Jesus não considera que seja assim. Só ela teve um problema com álcool, após o desaparecimento. “Em vez de comer, bebia para esquecer. A família sentava-se à mesa, eu olhava para o sítio dela e só bebia. Mas, quanto mais bebia, mais me lembrava. Dei em maluca. Via-a em todos os sítios”, recorda, sem vergonha, acrescentando: “Depois, pensei: tinha um menino pequeno, ainda fico sem ele. A minha mais velha tornou-se uma mulher e era quem fazia tudo lá em casa. O meu falecido só dizia: ‘Se a minha filha não aparece, fico sem mulher e sem filha’. Eu era pele e osso“. Só se tratou quatro anos depois. Ficou internada 15 dias e, finalmente, engordou.

"Em vez de comer, bebia para esquecer. A família sentava-se à mesa, eu olhava para o sítio dela e só bebia. Dei em maluca. Via-a em todos os sítios"
Maria de Jesus, mãe de Cláudia

Ainda em junho desse ano, os pais voltaram a falar com os inspetores da PJ de Braga para contar as suspeitas que tinham sobre a prima Maria Júlia. Os agentes foram, então, interrogá-la. A prima, de 17 anos, negou toda a conversa e explicou que, na semana do desaparecimento, esteve a trabalhar na fábrica todos os dias — o que a PJ confirmou junto do patrão.

Mas nada convencia Maria de Jesus. “Na maré do desaparecimento”, começa por contar, o rapaz “de cabelos grandes” com que a prima Maria Júlia namorava “andou a dizer que a Cláudia ia aparecer na Lage”, uma freguesia vizinha. “Ia aparecer ela e mais dois”, contou a mãe. “Toda a gente foi para lá”, mas não apareceu nem a Cláudia, nem nenhum dos outros dois. O rapaz que espalhou o rumor, segundo Maria de Jesus, era filho do cabo da GNR de Vila de Prado e, acredita, “também estava metido no rapto”.

Odivelas, Espanha, França, cartas, telefonemas, uma certidão de nascimento e vários padres

O caso foi sendo divulgado nos meios de comunicação. A partir daí, não faltaram pistas (ainda que pudessem ser falsas) à PJ — e que constavam no processo até ser destruído. Ainda naquele mês, um anónimo ligou para a RTP a dizer que Cláudia estava em casa de um casal, em Odivelas, onde estava a ser maltratada. A PJ chegou a suspeitar de um vizinho dos pais, que vivia em Lisboa, mas optou por não seguir esta pista. O mesmo não aconteceu quando um tio de Cláudia informou a PJ de que a criança poderia estar com uns tios que viviam em Alicante, em Espanha — a mais de mil quilómetros de Oleiros. A polícia espanhola chegou a abordá-los e a ir a casa desses tios, mas nada.

A avó de Cláudia, Olívia Alves, tem 94 anos e espera ainda ver a neta antes de morrer (Foto: CAROLINA BRANCO/OBSERVADOR)

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Por essa altura, uma mulher de Barcelos — de onde a avó de Cláudia, Olívia Alves, era natural — telefonou à PJ a dizer que, menos de uma meia hora antes, tinha recebido uma chamada de uma menina que julgava ser a Cláudia. Estava muito nervosa e contou-lhe que tinha sido levada por dois homens para França — tê-la-iam soltado “por um bocadinho” e conseguiu chegar a um telefone. A chamada caiu e não disse mais nada.

A PJ não pôde fazer nada a não ser relacionar esta chamada com uma nova pista, que chegou a 1 de julho, recorda o jornal i, citando o processo. A PJ da Guarda recebeu uma carta anónima escrita à mão e no masculino, carimbada pelos correios de Vilar Formoso. O autor explicava que estava sentado “em frente ao Turismo” e viu sair de um carro branco, “com a matrícula francesa 3743 73 ou 78″, um homem “e a menina desaparecida de Vila Verde”. Os dois saíram do carro e dirigiram-se a um banco, tendo voltado para trás, porque já tinha fechado. “No carro iam a olhar muito para mim, talvez com medo que eu fosse à polícia”, lia-se na carta, onde o homem acrescentava ainda: “Notei na miúda que estava com medo e ele atrapalhado“.

Imediatamente, a PJ da Guarda enviou a carta à PJ de Braga, que dirigia a investigação. Os inspetores pediram ainda a colaboração das autoridades francesas. Pouco depois, chegou a conclusão de que não estavam à espera: o carro da matrícula francesa era um Honda Civic vermelho, que estava no nome de um francês desempregado e “que disse nunca ter viajado para Portugal“. Mais uma pista que não passou de apenas isso — uma pista.

Ao mesmo tempo que os pais tentavam lidar com o desaparecimento e gerir as expectativas quando uma nova pista surgia, eram bombardeados com chamadas telefónicas e acusações. “Começaram a dizer que eu que a vendi, que eu a dei, que eu isto e aquilo”, relata, ficando de tal forma irritada que começa a disparar palavrões para o ar. “Houve uma vez que, por telefone, uma mulher discutiu comigo a dizer que eu sabia bem onde ela estava”, contou ainda. Estas acusações levaram a mãe a dirigir-se à PJ para contar aos inspetores que estes rumores andavam a circular.

"Começaram a dizer que eu que a vendi, que eu a dei, que eu isto e aquilo. Houve uma vez, por telefone, uma mulher discutiu comigo a dizer que eu sabia bem onde ela estava"
Maria de Jesus, mãe de Cláudia

Maria de Jesus acabou, porém, por ficar surpreendida com uma informação que a PJ tinha descoberto: no dia 7 de setembro, Maria Ana, uma tia de Cláudia, do lado do pai, tinha ido ao Registo Civil pedir uma segunda via da certidão de nascimento da sobrinha. A tia acabaria por ser interrogada pela PJ: disse que só foi levantar a certidão a pedido de uma outra irmã, que morava em Vila Nova de Gaia. Interrogada pela PJ, essa outra irmã explicou que, como tinham surgido o rumor de que Cláudia estaria em Espanha, contactou a Guardia Civil para ajudar na investigação. Lá ter-lhe-ão dito que só poderiam investigar se tivesse a certidão de nascimento da criança. Adiantou ainda que não chegou a enviar o documento para as autoridades espanholas, estando na sua posse, e não disse nada aos pais porque sabia que “iriam recusar”, consta no processo ainda consultado pelo jornal i.

Em setembro daquele ano, o padre Luís Gavina apareceu na casa de Maria de Jesus, garantindo que sabia onde estava Cláudia. “Disse-me que quem tinha a certidão da Cláudia era quem tinha a menina”, recorda a mãe, que já não sabe ao certo em que sítio é que o padre Gavina disse que a filha estaria. Seria ali no concelho de Vila Verde ou algures em França. Um dos dois. “Dizia que ela ia voltar, mas que podia demorar 20, 30 ou 40 anos. Que ela estava bem, mas que era uma pena tirá-la de lá”, recorda ainda.

O padre chegou a ter uma conversa semelhante com a chefe dos escuteiros, Rosalina Queirós. “Não me dizia bem que sabia, dava a entender, mas não explicitamente”, contou a mulher ao Observador. O padre Gavina morreu em dezembro de 2009, aos 69 anos, e ninguém chegou a saber o que queria dizer com aquelas palavras. “Às vezes, vou ao cemitério e peço-lhe que diga ao Senhor para nos ajudar a encontrar a nossa menina”, diz a avó de Cláudia.

Não se sabe se o padre Gavina chegou a ser interrogado pela PJ. No processo, segundo o jornal i, em janeiro do ano seguinte ao desaparecimento, a PJ pediu ajuda às autoridades francesas. Um padre, Manuel, vigário da paróquia de Gentilly, perto de Paris, teria sido contactado por outro padre, que tinha recebido a informação de que Cláudia estava naquela zona. A criança teria sido localizada por um terceiro padre. A polícia francesa contactou o padre Manuel, que disse que achou as informações vagas e o caso acabou por ser arquivado, em março de 1995.

Claúdia desapareceu num trajeto de 500 metros a caminho da escola, tendo passado na Rua de Baltar (Foto: CAROLINA BRANCO/OBSERVADOR)

CAROLINA BRANCO/OBSERVADOR

Só voltaria a ser aberto mais uma vez em maio desse ano. Maria Jesus voltou à PJ para contar que suspeitava que a filha estaria na Suíça, depois de ter sido raptada com ajuda da prima Maria Júlia. As autoridades suíças foram chamadas a colaborar, mas não encontraram qualquer indício — e o caso voltou a ser arquivado, em Setembro. Em 2001, a PJ é ainda contactada por uma mulher de Linda-a-Velha, que garantia ter visto Cláudia com dois alemães “muito altos” e vestidos de “forma berrante”, no Parque do Alto da Serafina, em Lisboa. O caso nem chegou a ser reaberto: a mulher dizia que a criança não tinha mais de sete anos, mas, em 2001, Cláudia já teria 14.

A expulsão da família Garcia. “Nunca me saiu da cabeça que foram os ciganos”

O desaparecimento de Cláudia foi o pretexto e a desculpa para uma questão que a população de Oleiros já há muito queria resolver. A família Garcia, de etnia cigana, tinha montado acampamento naquela freguesia, ainda antes de 1994. Com o passar dos anos, o ambiente foi piorando. “O comportamento que eles começaram a ter fez-nos ficar com medo. Começaram a agredir as pessoas, de noite faziam muito barulho, tínhamos de fechar tudo, senão assaltavam-nos a casa. Eu tinha muita dificuldade de fazer com que os miúdos viessem às reuniões porque tinham medo de ir”, recorda a chefe dos escuteiros, Rosalina Queiros.

Na altura do desaparecimento de Cláudia, algumas pessoas colocaram a hipótese de terem sido eles a raptar a criança. “Foi quando começou o povo a revoltar-se com o modo de vida deles”, conta Augusto Silvestre, o presidente da junta de então. “Eu admirava muito o patriarca dessa família. Só que, atrás dele, vieram filhos e genros e todos aqueles que vinham procurar a droga”, explica ainda, admitindo mesmo que “alguém que veio ali buscar a droga levou a Cláudia”.

"Eu admirava muito o patriarca dessa família. Só que, atrás dele, vieram filhos e genros e todos aqueles que vinham procurar a droga"
Augusto Silvestre, presidente da Junta em 1994

Em 1995 ou 1996 — ninguém sabe precisar ao certo —, quando as linhas vermelhas já tinham sido todas ultrapassadas, a população revoltou-se e, “se não é a força policial, as coisas tinham tomado rumos”, conta Carlos Cerqueira, estudante na altura e que viria a ser o sucessor do presidente Augusto Silvestre. “A polícia de choque esteve lá em força e evitou confrontos. A família Garcia não ia ter hipótese. Ainda por cima, foi em agosto, quando a população praticamente duplica com imigrantes”, explica.

O assunto só ficou resolvido com a compra do terreno onde a família tinha o acampamento. “Fizemos uma manifestação na Câmara e o presidente acordou comprar aquele terreno, onde agora é uma escola”, conta o ex-autarca Augusto Silvestre. A Câmara deu metade do dinheiro. A outra parte resultou de um peditório aos habitantes de Oleiros. “Lembro-me que os pais fizeram um sacrifício enorme, como todas as famílias, porque era muito dinheiro”, recorda a agora presidente Carla Leitão.

Ainda hoje, o dedo é apontado à família Garcia. Maria Pinheiro, uma habitante que chegou a Oleiros em 74, mas que prefere não dizer a idade, não tem problemas em dizê-lo para quem quiser ouvir: “Nunca me saiu da cabeça que foram os ciganos que fizeram isto”. À mãe de Cláudia nunca lhe passou essa ideia. “Não foram eles”, garante. “Os ciganos pequeninos vinham para aqui, brincavam com os meus filhos”, conta, revelando: “Eles revoltaram-se por andarem a dizer que eram eles. Houve uma vez que veio aqui um e atirou quatro tiros às pernas da minha mãe“.

A família foi expulsa, os anos passaram e Cláudia não aparecia, como tinha prometido o padre Gavina. Na casa da família de Cláudia, nunca mais se festejaram os aniversários dos filhos. Maria de Jesus chorou tanto “que agora nem uma lágrima”. Só há 10 anos deu a primeira gargalhada. Não se lembra porquê, mas sabe que foi a neta que a arrancou. O aniversário do nascimento (13 de março) e do desaparecimento (13 de maio) não passam despercebidos, por mais que Maria de Jesus desejasse que passassem. Num desses trezes de maio, foi a Fátima. Foi a única vez: desmaiou em pleno santuário.

Maria de Jesus sempre foi doméstica. Faz umas passadeiras de trapilho para ganhar algum dinheiro (Foto: CAROLINA BRANCO/OBSERVADOR)

CAROLINA BRANCO/OBSERVADOR

Embora a investigação já há muito esteja parada, Maria de Jesus não deixou de ver se encontrava a filha. Em 2011, chegou mesmo a ir atrás de uma jovem para ver se era Cláudia. “Disseram-me que havia uma menina em Moure [concelho de Vila Verde] que tinha sido adotada e também fazia anos em março”, explica, rematando a conversa: “Quando a vi, disse logo que não era ela“. Também há cinco anos, estava na praia e uma mulher com uma marca na perna chamou-a a atenção. “Ó mãe, não esteja assim que não é a Cláudia”, disse-lhe a filha. Cláudia tinha uma cicatriz com cerca de dez centímetros na coxa direita — “uma vez aleijou-se com um prego” — e outra no lábio inferior, de nascença, como consta, aliás, da página de pessoas desaparecidas da PJ. Maria de Jesus acredita que se a visse, mesmo que tivessem passado muitos anos, a reconhecia. “Reconhecia, sim”, diz enquanto leva a mão ao peito.

Processo foi destruído em 2017. Um pista nova seria uma agulha no palheiro

Maria de Jesus já sabia que o processo da filha tinha sido destruído. Só lamenta uma coisa: “Tinha lá tanta fotografia e não me entregaram”. O processo foi destruído no dia 11 de dezembro de 2017 — quando passavem já 23 anos do desaparecimento de Cláudia — e quando já tinha sido atingido e ultrapassado o prazo de prescrição de qualquer eventual crime relacionado com o caso. Nem a PJ de Braga tem qualquer registo da investigação. Aliás, quando contactados pelo Observador, os inspetores não tinham sequer conhecimento da destruição do processo — o que revela bastante sobre o estado em que estava a investigação.

Mas pode eliminar-se um processo de um desaparecimento que ainda não foi resolvido? Sim. Os procedimentos criminais prescrevem. Ou seja, imaginemos que alguém confessava que tinha raptado e assassinado Cláudia. “Nada poderia ser feito porque o procedimento criminal já prescreveu”, explica a juíza e secretária-geral da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Carla Oliveira. O alegado autor já não podia ser investigado, acusado ou condenado, porque o prazo de prescrição do crime, que seria de homicídio — o prazo mais longo — é de 15 anos. “Ou seja, decorridos os 15 anos sobre a prática dos factos, independentemente daquilo que se tiver passado, não pode já ser instaurado procedimento criminal contra ninguém“, explica ainda a juíza Carla Oliveira ao Observador.

Reconhece que a destruição “não deixa de chocar e, sendo um caso de um desaparecimento de uma criança, parece que não há nada“. Mas a juíza explica que, passado esse prazo, “processo estar lá ou não é exatamente igual”, questionando: “Qual é a utilidade de manter vivo um processo que não vai nunca traduzir-se em nada? Que mesmo que houvesse uma pista não se podia fazer nada?”. E responde: “A destruição, neste aspeto técnico, faz sentido porque o tribunal e os serviços do Ministério Público não são um memorial”.

Há, porém, uma memória impossível de apagar — as dos pais de Cláudia. E quem sabe que aquele mesmo processo não poderia, um dia, ajudar a responder às perguntas que ainda têm?.

A destruição dos processos e os seus prazos estão previstos na portaria n.º 368/2013, de dezembro de 2013, que também prevê que, todos os anos, há cinco processos que ficam guardados para efeitos históricos: Cláudia não foi um deles. O Observador contactou o Ministério da Justiça, a Procuradoria-Geral da República e o Conselho Superior de Magistratura. Todos fizeram referência à portaria n.º 368/2013, ao facto de os prazos de prescrição terem sido atingidos e de nada mais poder ser feito.

A presidente da APCD, Patrícia Cipriano, parece ser a única a lembrar que o objetivo, nestes casos, não é só encontrar os potenciais criminosos. O objetivo é também encontrar a criança. “O desaparecimento não prescreve. Não é um crime. É um facto que não está sujeito a prescrição. Ou seja, estas investigações, formalmente, nunca acabam. Contudo, na prática, estão mortas”, diz ao Observador. “Mais ninguém procura a Cláudia. Neste momento, a Cláudia é um ficheiro informático. Não passa disso. Um ficheiro que está ali, com uma fotografia que não serve de nada porque ninguém vai reconhecer aquela criança: ela é adulta”, acrescenta, referindo-se à imagem que aparece na lista dos desaparecidos da PJ.

"Mais ninguém procura a Cláudia. Neste momento, a Cláudia é um ficheiro informático. Não passa disso. Um ficheiro que está ali, com uma fotografia que não serve de nada"
Patrícia Cipriano, presidente da Associação Portuguesa da Criança Desaparecida

Advogada de profissão, defende que “a destruição do processo físico, nestes casos, deveria ser travada”. “Esse processo deveria ficar arquivado. Até porque não são assim tantos”, alerta. Se hoje alguma força policial recebesse uma pista, teriam de começar do zero. “Se não sabem as circunstâncias do desaparecimento, como é que vão investigar? As testemunhas já morreram e os seus depoimentos já não existem”, lamenta a presidente da APCD.

A revolta parece apoderar-se de si à medida que a conversa avança. “Há coisas que têm de ser mudadas.Desde logo, a atenção que as pessoas dão a esta causa das pessoas desaparecidas. Ninguém quer saber. Os políticos e os legisladores também se esquecem que isto tem de ser tratado, acima de tudo, ao nível preventivo”, diz. Patrícia Cipriano questiona ainda quantos casos de desaparecimento “destes cabeludos, como o da Cláudia”, é que foram resolvidos. “Algum? Eu não conheço nenhum e isto preocupa-me imenso“.

25 anos depois, Maria de Jesus acredita que a filha está viva. Mantém-na viva na sua vida. No telemóvel, guarda até fotografias delas — ou a fotografia robot feita anos mais tarde — junto com fotografias dos netos. Agarra-se ao que se pode. Há uns anos, uma vizinha disse-lhe que Cláudia estava viva. Tem o “corpo aberto”, que é como diz: sente os espíritos. Maria de Jesus não sabe se acredita se não. Sabe que a vizinha lhe disse: “Eu chamo pelo espírito da tua filha e ela não me aparece”.

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