Uma amnistia e um referendo à independência da Catalunha. Este é o preço que Pedro Sánchez terá de pagar, nos próximos quatro anos, para se manter no poder. Apesar da vitória do Partido Popular (PP) nas eleições gerais de julho, a direita espanhola não conseguiu formar uma maioria — ficando a quatro dos 176 lugares que garantem o controlo maioritário do parlamento. Num clima incerto e após meses de intensas negociações, o líder socialista firmou um acordo entre oito partidos, reunindo o apoio de 179 parlamentares. Prepara-se agora, salvo uma grande surpresa, para ser reeleito chefe de governo, numa investidura que começa com um debate esta quarta-feira e termina com a votação no dia seguinte.
Com os previsíveis votos a favor do Partido Socialista Obrero Espanhol (PSOE), do Sumar, da Esquerda Republicana Catalã (ERC), do Junts per Catalunya, da coligação basca Eh Bildu, do Partido Nacionalista Basco (PNV), do Bloco Nacionalista Galego (BNG) e da Coligação Canária (CC), a alternativa da chamada “esquerda progressista” espanhola deverá ter sucesso, mas a gestão de um futuro governo terá de ser feita com pinças, devido às ideologias e às sensibilidades diferentes dos oito partidos. Mesmo assim, Pedro Sánchez tem argumentado que esta solução governativa é estável.
Por sua vez, a direita espanhola tem organizado manifestações e considera inaceitáveis as cedências de Pedro Sánchez aos partidos independentistas catalães. Ainda no último domingo, o PP diz que conseguiu mobilizar cerca de dois milhões de pessoas numa manifestação contra a amnistia em 52 cidades por toda a Espanha. Para além disso, nas últimas semanas, têm-se repetido os protestos — alguns apoiados pelo VOX — em frente à sede do PSOE em Madrid e do Congresso dos Deputados.
Numa atmosfera política fortemente bipolarizada, o PSOE tem procurado colar a imagem do PP à “ultradireita radical”, enquanto os populares acusam os socialistas de “corrupção” e de não respeitarem a separação de poderes. À boleia deste último argumento, o Partido Popular já apelou à intervenção da União Europeia no processo político (e judicial) espanhol. O líder do partido, Alberto Núñez Feijóo, considera que, na Europa, não é “admissível” que Pedro Sánchez “amnistie políticos corruptos ou acusados de terrorismo em troca de votos”.
Ainda que não tenha havido um pronunciamento oficial de Bruxelas, certo é que o comissário europeu da Justiça, Didier Reynders, escreveu uma carta ao governo espanhol a pedir “informação mais detalhada” sobre o “alcance pessoal, material e temporal” da lei da amnistia. O responsável comunitário argumentou que o tema ganhou uma “considerável importância” e um “grande número de cidadãos pôs-se em contacto com a Comissão Europeia”: “Manifestam-se sérias preocupações em relação ao debate em curso”, sublinhou o responsável europeu.
O PSOE desvalorizou esta carta de Bruxelas, mas o PP tem insistido no tema e até convocou a sua família popular — o Partido Popular Europeu, de que fazem parte o PSD e o CDS-PP portugueses— para discutir o assunto. Ainda assim, nada disto travará a investidura de Pedro Sánchez.
A investidura e debate
O debate de investidura começa esta quarta-feira às 12h00 (menos uma hora em Lisboa) e todos os líderes partidários terão oportunidade de intervir. Quem abre a sessão é Pedro Sánchez, uma vez que foi o candidato proposto para a investidura pelo Rei Felipe VI, e dispõe do tempo que entender para discursar perante os deputados. Depois, será a vez dos restantes partidos, para falarem ou para responderem ao socialista. No final de cada intervenção, o secretário-geral do PSOE poderá intervir novamente.
Será feita uma pausa para o almoço e a sessão retornará da parte da tarde. É expectável que todos os líderes partidários falem esta quarta-feira, mas se o tempo terminar, poderá ainda haver intervenções na quinta-feira, data em que acontece a votação. Todos os 350 membros do Congresso dos Deputados terão de responder se apoiam, se se abstêm ou se votam contra a investidura de Pedro Sánchez.
Se o socialista reunir o ‘sim’ de 176 deputados — espera-se que até consiga 179 —, Pedro Sánchez é reeleito chefe do governo espanhol. Se isso não acontecer, haverá um segundo debate de investidura, imediatamente 48 horas depois do primeiro — ou seja, no sábado. Todo o processo já relatado repetir-se-á de novo, seguindo os mesmos moldes. Agora, no caso de na segunda investidura o socialista não obter os apoios necessários, haverá novas eleições, já marcadas para 14 de janeiro.
O mais certo é que Pedro Sánchez seja investido já na quinta-feira, ao contrário do que aconteceu em setembro com Alberto Núñez Feijóo. Proposto em primeira instância pelo monarca por liderar o partido mais votado nas eleições de 23 de julho, o líder do Partido Popular tentou reunir apoios para a sua investidura, mas falhou nas duas vezes, o que abriu caminho a uma aliança alargada à esquerda, com o envolvimento dos partidos independentistas.
O referendo e a amnistia: os acordos do PSOE com outros partidos
Desde que foram divulgados os resultados finais das eleições de 23 de julho, Pedro Sánchez e Yolanda Díaz, a líder da coligação Sumar, mostraram-se confiantes de que iriam estender a aliança que mantinham desde 2020. O PSOE acreditava que estavam reunidas as condições para que isso acontecesse, mesmo que o processo implicasse negociações complexas com dois partidos marcadamente independentistas.
Servindo como intermediária, Yolanda Díaz chegou a ir a Bruxelas reunir-se com o líder do Junts per Catalunya, Carles Puigdemont, que está exilado na Bélgica. Ao mesmo tempo, e contrariando o que tinha prometido na campanha, Pedro Sánchez tentava convencer os socialistas de que a amnistia era um processo que tinha de ser levado a cabo para que acontecesse um “virar de página” na sociedade espanhola. “Queremos deixar para trás um passado de trincheiras. Apostamos no diálogo — é a melhor solução para esta crise”, sublinhou.
Enquanto a ERC e o Junts per Catalunya tentaram puxar a corda e exigiram um referendo, visto até aqui como uma “linha vermelha” para Pedro Sánchez, o PSOE tentava afastar essa ideia. No entanto, uma resolução no parlamento regional da Catalunha exigiu que os socialistas cedessem às exigências de autodeterminação da Catalunha — sem isso, não haveria o apoio à investidura dos dois partidos independentistas.
Há duas semanas, o PSOE anunciou que tinha chegado a acordo com a ERC e oficializava a lei da amnistia, que prevê que sejam ilibadas cerca de 300 pessoas que participaram no processo que resultou no referendo de 2017; não apenas os que estiveram envolvidos na organização do referendo para a autodeterminação, mas todos aqueles que levaram a cabo atividades (não incluindo crimes graves, como terrorismo ou homicídio) que tivessem como objetivo a independência da região desde 1 de janeiro de 2012. Para além disso, os socialistas e os republicanos catalães concordaram que os comboios da Catalunha seriam exclusivamente geridos pelo parlamento catalão, para além de parte da dívida da região ser perdoada.
Sobre o referendo, a ERC deixou o futuro em aberto. No acordo assinado com o PSOE, os catalães apenas concordaram “ratificar e impulsionar o diálogo institucional entre governos sobre o futuro político da Catalunha mediante o diálogo político e institucional”. Com o Junts per Catalunya, a história é diferente; e Carles Puigdemont desejou que as exigências de autodeterminação fizessem parte da solução governativa.
Na sexta-feira passada, o Junts per Catalunya oficializou o acordo com o PSOE. Tal como acontece com a ERC, a lei da amnistia está presente no documento assinado pelos dois partidos e serve para efetivar a “plena normalidade política, institucional e social”. Para além de assegurar a “participação direta da Catalunha nas instituições europeias e demais entidades internacionais”, o documento é claro e tem também implicações futuras: “O Junts proporá a celebração de um referendo de autodeterminação sobre o futuro político da Catalunha.”
Já o PSOE “defenderá o desenvolvimento amplo” desse referendo, através de “mecanismos jurídicos” próprios, prometendo ainda respeitar as “instituições do autogoverno e a singularidade institucional, cultural e linguística da Catalunha”. Os socialistas comprometeram-se ainda a ampliar a “participação direta da Catalunha nas instituições europeias e demais organismos e entidades internacionais, particularmente em assuntos que têm especial incidência no seu território”.
Com estes dois apoios, o PSOE conseguiu convencer os dois parceiros mais difíceis. Contudo, para conseguir que 176 deputados votassem a seu favor, os socialistas persuadiram ainda duas forças bascas, um partido galego e um das Ilhas Canárias, e também deram garantias ao Sumar, nomeadamente o aumento de salário mínimo e a diminuição da jornada de trabalho.
De todos estes partidos regionais, foi o PNV, o Partido Nacionalista Basco, aquele que mais benefícios obteve ao apoiar a investidura de Pedro Sánchez, principalmente o fortalecimento de um governo autónomo basco, o que incluiu a transferência de competências para a região. No que concerne à Eh Bildu — uma coligação do País Basco que gerou controvérsia nas eleições regionais de maio, por colocar nas suas listas condenados pela prática de crimes de sangue —, mesmo sem ter assinado qualquer acordo com o PSOE, garantiu apoiar a investidura de Pedro Sánchez sem nenhuma aparente contrapartida.
Tal como aconteceu na Catalunha, o Bloco Nacionalista Galego conseguiu que parte da dívida da Galiza fosse perdoada. O PSOE também obteve o apoio da Coligação Canária, que votou a favor da investidura de Alberto Núñez Feijóo. Os socialistas prometeram à força das Canárias que iam cumprir a “agenda canária”, fortalecendo a autonomia da região e transferindo mais competências para o governo regional.
A oposição (e as possíveis) sanções da UE
Derrotado nas duas votações da primeira investidura, o Partido Popular tem apostado na mobilização da sociedade contra a amnistia. Atacando Pedro Sánchez por ter “comprado a investidura”, Alberto Núñez Feijóo defende que está em causa a independência do poder judicial, que fica constrangido por motivos políticos, isto é, pela formação de um novo governo.
Pedro Sánchez tendría que presentar su dimisión.
No merecemos un presidente que ha comprado su investidura a cambio de impunidad para sus socios y con el dinero de todos los españoles.#EspañaNoSeRinde ni se vende por siete votos. pic.twitter.com/Rq1kLIpbaV
— Alberto Núñez Feijóo (@NunezFeijoo) November 12, 2023
O líder do Partido Popular pede a demissão de Pedro Sánchez e deverá aproveitar a investidura para reforçar os seus argumentos. Simultaneamente, Alberto Núñez Feijóo apela à realização de novas eleições, lembrando que a amnistia e o referendo não faziam parte do programa eleitoral dos socialistas. “Não nos vamos calar. Não nos calaremos até haver novas eleições e até que possamos outra vez votar, porque o que se está a fazer é o contrário daquilo que votámos”, vincou o responsável partidário numa manifestação no último domingo.
Convocando manifestações em toda a Espanha e aproveitando a contestação social para debilitar a imagem dos socialistas, o Partido Popular também abriu uma nova frente de pressão sobre o novo governo, desta vez em Bruxelas, apresentando as incoerências da lei da amnistia. Em declarações aos jornalistas esta terça-feira, Alberto Núñez Feijóo sugeriu que os órgãos comunitários possam sancionar o novo governo de Espanha, por “arrasar com a segurança jurídica de um Estado-membro da União Europeia” e por ser um sinal do “deteriorar da democracia em Espanha”, que tem implicações negativas nas restantes democracias europeias.
Alberto Núñez Feijóo chegou a usar o exemplo das sanções aplicadas contra a Polónia e contra a Hungria, cujos regimes não salvaguardaram o princípio do primado do direito na União Europeia. Segundo o líder do PP, a amnistia é um processo “moralmente indecente” e constituiu uma “fraude eleitoral massiva”.
Em Bruxelas, atualmente, analisa-se a questão. Mas uma voz proeminente, e até socialista, já veio confessar que a amnistia lhe merece apreensão. Para o alto representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, Josep Borrell, os acordos do PSOE com a ERC e com Junts suscitam-lhe “bastante preocupações”. “Preocupações lógicas, porque se trata de um problema complexo e difícil”, sinalizou, indicando que se vai “pronunciar” sobre o assunto com mais detalhe nas próximas semanas.
Ainda que seja improvável que Bruxelas atue de forma decisiva neste caso, o PP não vai baixar os braços. Esta quinta-feira, se tudo correr como planeado, Pedro Sánchez deverá ser reeleito, prometendo uma solução governativa estável. Mas o líder do PSOE não se livra de enfrentar uma direita mais contestatária que vai continuar a ter expressão nas ruas — e, quem sabe, arraste consigo mais problemas jurídicos e diplomáticos.