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Com que dinheiro se reconstrói um país arrasado pela guerra?

Nove meses depois do início da guerra, ainda não há um "Plano Marshall" para a Ucrânia. Especialistas dizem que, a cada dia que passa, "a conta sobe". E decretam que UE tem de se envolver mais.

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“É lógico que os Estados Unidos façam o que quer que seja possível para ajudar ao regresso a uma atividade económica saudável do mundo, sem a qual não pode haver estabilidade política nem paz.” Esta é uma pequena parte de um discurso curto, de apenas 11 minutos, que ficaria para a História. Estávamos em 1947 e o recém-nomeado secretário de Estado norte-americano George C. Marshall falava para uma plateia de quase 15 mil pessoas, na Universidade de Harvard, quando se referiu pela primeira vez ao projeto de recuperação económica para a Europa após a II Guerra Mundial que ele próprio planeara — e que acabaria por batizar.

O nome “Plano Marshall” nunca foi dito, mas os quase 15 mil milhões de dólares que seriam distribuídos nos anos seguintes para ajudar à reconstrução em 17 países (incluindo a Alemanha Ocidental) seriam determinantes para o futuro da Europa. “As palavras de Churchill venceram a guerra, as palavras de Marshall conquistaram a paz”, decretaria mais tarde o ministro dos Negócios Estrangeiros holandês Dirk Stikker.

Sweet Charity

O Plano Marshall original consistiu num apoio de 15 mil milhões de dólares a 17 países europeus

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Agora, 75 anos depois, o nome “Plano Marshall” volta a estar nas bocas de vários representantes mundiais. É o caso do chanceler alemão, Olaf Scholz, e da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que têm defendido publicamente a necessidade de criar um novo programa de ajuda económica para a reconstrução, agora aplicado à Ucrânia, país fustigado por uma guerra de larga escala desde 24 de fevereiro deste ano.

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Mas palavras leva-as o vento. Barry Eichengreen, historiador económico da Universidade de Berkeley que se tem pronunciado sobre a criação de um “Plano Marshall” para a Ucrânia, está pessimista: “Vale a pena recordarmo-nos de que foram precisos vários anos desde o final da II Guerra Mundial para o Plano Marshall original começar a funcionar”, lembra ao Observador. “E o caso atual é ainda mais complicado, porque esta é uma guerra que ainda está a decorrer, há múltiplos doadores governamentais e não-governamentais e há uma falta de acordo sobre como organizar a ajuda e quem deve ser responsável por ela.”

Bruce Stokes, um dos analistas do think tank German Marshall Fund (GMF, historicamente ligado ao próprio Plano) que desenhou uma proposta para um “Plano Marshall” ucraniano propagado pelos países do G7, explica ao Observador que as semelhanças podem mesmo ficar só pelo nome. “Já houve muitos outros ‘Planos Marshall’ no passado, porque é uma boa expressão para quando é preciso fazer planos de reconstrução. Mas a analogia fica-se por aqui: em 1947, havia um doador para muitos beneficiários; agora são múltiplos doadores e um único beneficiário”.

Ukrainian Forces Reclaim Territory Around Kharkiv

Muitas das zonas ocupadas pelo exército russo, como Izium, foram alvo de destruição profunda

Getty Images

Apesar das declarações entusiastas, em termos concretos ainda não existe nenhuma estrutura montada, nenhum acordo político de fundo, nem nenhum George C. Marshall no horizonte. E a economia ucraniana vai definhando, à medida que os gastos do país aumentam, as empresas vão fechando e o número de infraestruturas a precisar de serem reconstruídas dispara.

Rússia bombardeia centrais elétricas. Anúncio de um “Plano Marshall” podia ajudar o moral dos ucranianos para lidar com o frio

A difícil situação económica da Ucrânia agudizou-se ao longo das últimas semanas, quando se tornou claro que a Rússia está a atacar diretamente a infraestrutura energética do país. Um levantamento feito pelo Instituto da Kyiv School of Economics em setembro já dava conta de que, desde 24 de fevereiro, foram destruídas quatro centrais termoelétricas e oito ficaram danificadas. Desde então, ao longo deste mês de novembro, os ataques às centrais por parte do exército russo escalaram de tal forma que atingiram 40% da infraestrutura energética da Ucrânia ao longo das últimas semanas.

Além das mortes e destruição, os ucranianos têm agora de lidar com o frio — uma estratégia que, diz o professor Eichengreen, serve para “desmoralizar os ucranianos”. “Mas a experiência do Blitz [de Londres] durante a II Guerra Mundial e outros precedentes históricos sugerem-nos que esta tentativa pode falhar”, acrescenta.

Torbjörn Becker, diretor do Instituto de Estocolmo de Economia de Transição que se tem dedicado a estudar a situação económica atual da Ucrânia, não tem dúvidas de que os ataques às infraestruturas energéticas do país são deliberados: “Isto está a acontecer à medida que neva mais no país, portanto, não é uma coincidência. São ataques estratégicos”, nota ao Observador. “É uma forma de provocar sofrimento económico e humano, uma forma de pressionar o governo ucraniano através da dor da população.”

Além das mortes e destruição, os ucranianos têm agora de lidar com o frio — uma estratégia que, diz o professor Eichengreen, serve para “desmoralizar os ucranianos”. “Mas a experiência do Blitz [de Londres] durante a II Guerra Mundial e outros precedentes históricos sugerem-nos que esta tentativa pode falhar”, acrescenta.

A ideia de anunciar agora um modelo de novo “Plano Marshall” para a Ucrânia ajudaria não só a garantir a reconstrução no futuro como poderia contribuir para “manter o moral dos ucranianos elevado, enquanto os russos estão a massacrar a sua infraestrutura”, defende, em declarações ao Observador, Charles Maier, historiador da Universidade de Harvard especializado na Alemanha do pós-II Guerra Mundial. E tendo em conta que neste caso há apenas um país beneficiário da ajuda, Maier acredita que a estrutura necessária para colocar o programa em andamento pode até ser muito mais simples do que a do Plano original de 1947.

São vários os especialistas que consideram que a assinatura de um compromisso imediato teria ganhos, não apenas ao nível da motivação dos ucranianos. “A guerra ainda está a ser combatida, mas isso não deve impedir os atores da reconstrução de trabalharem com urgência”, avisa um estudo da consultora Deloitte, publicado em outubro. “À medida que os custos se acumularem, vai ser cada vez mais difícil para a Ucrânia levantar-se.”

Key Infrastructure Attacked, Leaving Kyiv With Further Power And Water Outages

Trabalhadores ucranianos tentam reparar uma das centrais elétricas atingidas pela Rússia nas últimas semanas

Getty Images

Stokes, do GMF, concorda. “Os políticos reagem muito assustados quando lhes dizemos que devíamos começar já, mas devíamos mesmo”, diz. “Se esperarmos pelo fim da guerra, a Ucrânia pode estar tão destruída que, roubando a expressão que um economista do Banco Mundial usou numa conversa comigo, teremos uma espécie de Somália na fronteira com a Europa.”

A História mostra que há precedente. Barry Eichengreen nota que, muito embora o Plano Marshall original tenha sido aplicado muito depois do final da II Guerra, “foram distribuídos fundos à Grécia enquanto a Guerra Civil ainda decorria”. “No caso da Ucrânia, pode ser distribuída ajuda agora para reforçar a rede elétrica e outras infraestruturas”, sentencia. Os financiadores, contudo, têm de estar mentalizados, avisa: “O montante de ajuda necessária estará sempre a mudar.”

“A cada dia que passa, a conta sobe mais e mais”. De quanto precisa a Ucrânia afinal?

Neste momento, a Ucrânia já terá tido danos em infraestruturas no valor de 127 mil milhões de euros, de acordo com uma estimativa da Kyiv School of Economics. E, à medida que a guerra continua, esse valor só tem tendência a aumentar, podendo chegar aos quase 350 mil milhões, de acordo com uma estimativa conjunta do Banco Mundial e da Comissão Europeia.

O governo ucraniano foi ainda mais longe e avançou com um número astronómico: 750 mil milhões. Um valor que provocou dúvidas, como explica Bruce Stokes, por não ser claro se incluiria ou não regiões como todo o Donbass ou a Crimeia. “Mas, à medida que a guerra avança, até as projeções mais tímidas vão começando a aproximar-se desse valor”, diz ao Observador. “O Plano Marshall original equivaleu ao que hoje seriam 150 mil milhões de euros. Este poderá ser duas a três vezes mais caro.”

Isto porque o nível de destruição no país é tremendo. Desde o início da invasão de larga escala, já foram destruídas na Ucrânia quase mil instalações de saúde, 1270 escolas, quase 800 jardins de infância, 80 edifícios religiosos e mais de 100 estações de comboio (dados de setembro).

The Kherson International Airport became a "graveyard of military vehicles" after Russian retreat Russia-Ukraine war

As infraestruturas destruídas na Ucrânia vão desde aeroportos e estações de comboio até escolas e creches

Anadolu Agency via Getty Images

E a destruição não é o único dano colateral da guerra. O estado da economia ucraniana é comatoso, de acordo com as estimativas dos principais organismos financeiros. O PIB do país, por exemplo, decaiu 30% entre janeiro e setembro deste ano. Uma situação em muito agravada por situações como o bloqueio dos portos nos mares Negro e de Azov, que fez as exportações ucranianas decaírem em 50%, ou a destruição de muita da produção agrícola (mais de 14 mil milhões de euros de quebra num só ano).

O sueco Torbjörn Becker diz que esta “instabilidade macrofinanceira” é tão aguda que tem levado a que, no geral, tenha havido uma resposta satisfatória de auxílio de curto-prazo por parte dos aliados da Ucrânia. “Só a Hungria é que tem resistido a participar no mecanismo europeu que quer dar cerca de 1,5 mil milhões de euros por mês ao longo do próximo ano, para segurar as finanças do país”, diz.

“Se eles não tiverem este auxílio do estrangeiro, terão muitas dificuldades em financiar o próprio Orçamento do Estado. Aquilo que a Ucrânia está a fazer neste momento é imprimir mais dinheiro a partir do Banco Central, mas isso não é uma solução sustentável, porque a longo-prazo cria mais inflação.” E a inflação já é uma dor de cabeça para o país, estando atualmente nos 25% e a caminho dos 30% até ao final do ano. Os preços dos vegetais, por exemplo, aumentaram quase 85% durante a ocupação de Kherson, maior região de produção de vegetais do país, de acordo com o think tank polaco Centro de Estudos de Leste.

Esta urgência para resolver as finanças do país é tanta que, esta quarta-feira, o Fundo Monetário Internacional anunciou que chegou a um acordo preliminar com a Ucrânia para conceder um empréstimo no valor de 20 mil milhões de euros ao país, com o objetivo de “servir de âncora para as políticas macroeconómicas”. E, no dia seguinte, o Parlamento Europeu aprovou a entrega da mais recente tranche de 18 mil milhões para a ajuda curto-prazo ao país.

Até porque o desastre social acompanha a crise económica. O desemprego já atingiu oficialmente os 35%, mas na realidade pode ser ainda mais elevado, tendo em conta que, antes do início da guerra, muita gente trabalhava no mercado negro. A taxa de pobreza pode chegar aos 25% no final do ano e duplicar no ano seguinte, com as crianças a serem uma das faixas etárias mais afetadas.

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O governo ucraniano estima os custos para a reconstrução do país em 750 mil milhões de euros

Anadolu Agency via Getty Images

No meio desta situação económica desesperante, a Ucrânia tenta pedir ajuda. O primeiro-ministro do país, Denys Shmyhal, fala em cinco mil milhões de euros necessários por mês para manter o Orçamento do Estado funcional, a que se somariam os tais 750 mil milhões de euros num programa mais lato de reconstrução. E se o FMI, União Europeia e EUA vão ajudando com a primeira parte, para a reconstrução continuam a faltar muitos milhares de milhões.

Os especialistas consultados pelo Observador consideram que os países que se disponibilizem a ajudar a Ucrânia devem ter presente que estes valores serão muito provavelmente ultrapassados: “Não devemos confundir a ajuda militar com o auxílio para a reconstrução futura. Seria muito fácil prometer assistência mais tarde e começar a cortar na ajuda imediata”, alerta o historiador de Harvard, Charles Maier. “Podemos fazer estimativas, mas enquanto a guerra não acabar serão apenas palpites.” Torbjörn Becker concorda: “Só quando a guerra acabar teremos o cálculo final.”

Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre a reconstrução da Ucrânia com Cátia Bruno.

Quanto vai custar a reconstrução da Ucrânia?

EUA mais rápidos no apoio financeiro. Mas acolhimento europeu de refugiados tem sido subestimado

Com a Ucrânia a pedir um “Plano Marshall” imediato — que não seja em forma de empréstimo, como este recente apoio do FMI —, para moralizar a população e as estimativas ainda no ar, os aliados ocidentais levaram a cabo duas reuniões para discutir o tema: uma primeira em Lugano (Suíça), em julho, e outra em Berlim (Alemanha), em outubro. Na reunião mais recente, o chanceler Olaf Scholz foi taxativo a invocar a expressão “Novo Plano Marshall”, dizendo que, “tal como a Europa marcada pela guerra” precisou desse apoio, também agora a Ucrânia precisa dele.

Os dois encontros, porém, foram inconclusivos. O GMF classificou a reunião de Lugano como “uma desilusão”. “Os doadores não estavam preparados e não articularam mecanismos de coordenação, divisão de tarefas e níveis de financiamento, que são necessários para garantir a reconstrução da Ucrânia. Os Estados Unidos e outros financiadores não estiveram representados ao mais alto nível. A conferência foi, por isso, uma oportunidade perdida”, decretaram os analistas do think tank, que têm estudado a melhor forma de aplicar um novo “Plano Marshall” à Ucrânia.

Uma das condições que consideram essenciais para que um possível Plano deste género resulte é o envolvimento claro de Estados Unidos e Comissão Europeia. E o GMF sugere sinais concretos: um norte-americano como coordenador principal — o “senhor ou senhora Marshall” —, mas com gabinete estabelecido em Bruxelas. A que se soma o envolvimento da sociedade civil ucraniana, que deve dar o seu contributo para o programa, de forma a funcionar também como fiscalizador e assegurar que a corrupção não coloca o Plano em risco.

"Se o projeto tivesse à frente uma figura dura, mas com prestígio internacional, essa pessoa poderia ligar diretamente a um primeiro-ministro e dizer ‘Amanhã vou embaraçá-lo na conferência de imprensa, porque o seu país prometeu este dinheiro, mas ainda não o entregou’.”
Bruce Stokes, analista do German Marshall Fund, que elaborou uma proposta de projeto de reconstrução para a Ucrânia

A ideia de um “senhor Marshall”, explica ao Observador Bruce Stokes, veio precisamente de Kiev, mas recebeu “muita resistência por parte de Bruxelas”. “Quase me arrependo de a termos apresentado”, confessa. “O racional era o de que um comité torna as coisas muito lentas. Se o projeto tivesse à frente uma figura dura, mas com prestígio internacional, essa pessoa poderia ligar diretamente a um primeiro-ministro e dizer ‘Amanhã vou embaraçá-lo na conferência de imprensa, porque o seu país prometeu este dinheiro, mas ainda não o entregou’.”

Nenhuma destas ideias foi oficialmente discutida em Lugano ou Berlim. “A discussão está a decorrer, mas ainda não sabemos quem vai organizar isto, nem como”, aponta Becker ao Observador. “A União Europeia (UE) agora está bastante ativa a dizer que quer criar uma plataforma de doadores. Mas os Estados Unidos têm sido mais rápidos e têm dado à Ucrânia bolsas, em vez de empréstimos. Acho que chegou a altura de a UE se chegar à frente.”

German-Ukrainian Business Forum in Berlin

O chanceler alemão Olaf Scholz (à esquerda) na conferência de Berlim em que decretou ser necessário um "Plano Marshall" para a Ucrânia

Anadolu Agency via Getty Images

Para lá da assistência em armamento, os EUA têm garantido diversos pacotes de apoio financeiro à Ucrânia, a grande maioria sob a forma das tais bolsas — o que significa que é dinheiro dado a fundo perdido. Washington já deu mais de 8,5 mil milhões em auxílio económico à Ucrânia e vai dar mais 4,5 mil milhões até ao final do ano, enquanto que a UE se comprometeu com 11 mil milhões, mas ainda só entregou três mil milhões — na forma de empréstimos.

Estes números foram avançados por responsáveis da administração Biden ao Washington Post, em outubro, e fazem parte de um artigo onde se nota o descontentamento com a situação por parte dos norte-americanos, que consideram que os europeus não têm feito o suficiente.

Washington já deu mais de 8,5 mil milhões em auxílio económico à Ucrânia e vai dar mais 4,5 mil milhões até ao final do ano, enquanto que a UE se comprometeu com 11 mil milhões, mas ainda só entregou três mil milhões — na forma de empréstimos. Mas a isso é preciso somar o dinheiro dado pelos Estados europeus individualmente e o apoio aos refugiados.

Uma visão partilhada por alguns dos analistas ouvidos pelo Observador: “Os números falam por si”, aponta o historiador económico Eichengreen. “Os governos europeus têm-se atrasado a dar ajuda financeira real à Ucrânia, tanto quando comparados com os Estados Unidos como relativamente às suas próprias promessas.”

Outros são mais cautelosos nessa análise. “Nós, americanos, não reconhecemos o valor enorme que a Europa está a gastar com os refugiados ucranianos, por exemplo”, diz Bruce Stokes. “Se somarmos isso ao dinheiro gasto pelos Estados-membros a nível individual, mais a ajuda da própria Comissão Europeia, a Europa já gastou quase tanto como os EUA. Mas o cidadão comum americano não entende isso.”

Já o historiador Charles Maier crê que o verdadeiro teste ao compromisso europeu nesta matéria ainda está por chegar: “Não vou comentar se a UE fez o suficiente ou não. O grande teste vai ser quando o fornecimento de energia russo for reduzido durante este inverno”, afirma, destacando a reação alemã como a mais importante a seguir. “Enviar armamento é relativamente fácil, sobreviver sem aquecimento é mais difícil. Não criticaria a UE para já. O inverno vai ser o verdadeiro teste.”

Os tempos das vacas gordas, porém, ficaram para trás. Perante uma inflação crescente e uma crise energética à vista, a vontade dos europeus em ajudar a Ucrânia pode vacilar ao longo dos próximos meses. A unanimidade entre Estados-membros europeus será necessária caso a Comissão Europeia avance com a ideia de financiar um valor de centenas de milhares de milhões de euros — e se o governo húngaro já está hesitante em participar no auxílio a curto-prazo, antevê-se uma resistência maior à medida que os valores envolvidos cresçam.

“Os republicanos são mais isolacionistas (com a ideia de ‘temos de resolver os problemas da América primeiro’) e muitos querem simplesmente frustrar qualquer esforço da administração Biden, porque isso resulta bem na fotografia junto da sua base eleitoral.”
Barry Eichengreen, professor de História Económica da Universidade de Berkeley

Um imbróglio que, prevê Stokes do GMF, poderia ser resolvido pelos alemães. “São eles que estão a liderar a resistência ao financiamento centralizado através dos chamados eurobonds”, afirma o especialista. “O sistema financeiro está disponível a comprá-los num piscar de olhos, mas a Alemanha ainda está muito preocupada com a ideia de como pagar isto depois.”

Há quem, como o editor da National Interest Carlos Roa, faça por isso previsões pessimistas: “A certa altura, os líderes europeus vão sentar-se, olhar para o orçamento, admitir que não podem pagar tudo e pensar em silêncio que os ucranianos não votam nas eleições europeias.”

E a resistência em participar em pleno neste novo “Plano Marshall” pode não vir apenas da Europa. Com o Partido Republicano a ter conquistado a Câmara dos Representantes nas eleições intercalares norte-americanas, antecipa-se uma maior resistência a um financiamento contínuo da Ucrânia também nos EUA, como explica Barry Eichengreen ao Observador: “Os republicanos são mais isolacionistas (com a ideia de ‘temos de resolver os problemas da América primeiro’) e muitos querem simplesmente frustrar qualquer esforço da administração Biden, porque isso resulta bem na fotografia junto da sua base eleitoral.”

House Members Vote On Leadership Rolls For 118th Congress

Os republicanos liderados por Kevin McCarthy (à esquerda) na Câmara dos Representantes irão provavelmente travar algum do apoio financeiro à Ucrânia

Getty Images

Uma ideia reforçada por Bruce Stokes: “Essas vozes vão tornar-se mais ruidosas, ainda para mais com a candidatura de Donald Trump à presidência”, diz. “Há um sentimento entre os eleitores republicanos de que os EUA já estão a fazer demasiado pela Ucrânia. E os republicanos na Câmara dos Representantes estão atentos a isso.”

Perante este cenário, há quem já esteja à procura de alternativas, como é o caso do antigo primeiro-ministro britânico Boris Johnson, que está a tentar ganhar uma nova vida política como paladino da Ucrânia. “Ele acha que os republicanos vão falhar nisto e quer garantir que isso não acontece”, confessou uma fonte próxima de Boris ao Telegraph, anunciando que o tory vai criar uma organização para tentar recolher financiamento junto de doadores privados e pôr assim em marcha um Plano Marshall para a Ucrânia.

Também o governo ucraniano tem tentado recolher financiamento junto de privados, de onde se destaca o compromisso do milionário australiano Andrew Forrest, que prometeu conseguir reunir 740 mil milhões. Mas esta solução não é uma panaceia, alerta Torbjörn Becker: “Se eu estivesse no lugar de Zelensky também pedia contribuições a toda a gente. Mas não podemos acreditar mesmo que os privados vão ser suficientes para substituir a UE e os EUA. Continuam a ter de ser eles a avançar com o grosso do financiamento.”

Reparações de guerra? Especialistas consideram que “enquadramento legal” seria um pesadelo e, à semelhança do que aconteceu no pós-I Guerra Mundial, essa exigência poderia aumentar "o extremismo" russo.

Bruce Stokes, do GMF, dá um exemplo que ilustra porquê: “O Banco Mundial estima que um dos maiores investimentos que serão necessários é o investimento para desminar o país. Não vejo privados a quererem levar a cabo esse trabalho, não há nenhum lucro a retirar dessa tarefa — mas, sem ela, mais nada poderá avançar.”

Outra solução alternativa que tem sido levantada por muitos, como o primeiro-ministro polaco, Mateusz Morawiecki, é a de financiar este “Plano Marshall” com reparações de guerra da Rússia.  O “enquadramento legal” seria um pesadelo, avisa Becker — um aviso que já tinha sido partilhado pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. A que se soma um outro problema: “Pode alimentar a própria beligerância russa”, alerta Eichengreen. “As reparações do pós-I Guerra alimentaram o extremismo alemão das décadas de 1920 e 1930. Queremos mesmo ir por aí?”.

Ajuda internacional à Ucrânia, sim. Mas com condições

Decidir de onde vem o dinheiro para sustentar este “Plano Marshall”, e como ele será gerido, são dois dos principais desafios, mas não são os únicos. Para conseguir um projeto tão bem sucedido como o histórico Plano Marshall, há uma dimensão política que, dizem os especialistas, deve estar associada. Afinal, quando George C. Marshall falou àquela audiência na Universidade de Harvard, em 1947, estava a propor aquilo que Henry Kissinger classificou como “um novo desenho da política externa americana”, muito embora a maioria dos presentes na sala — incluindo ele próprio — não tenham entendido isso de imediato.

Army General Testifying Before Committe

O general George C. Marshall foi o pai do Plano Marshall que transformou a Europa

Bettmann Archive

Agora, a nova geometria internacional tem outras nuances que, dizem os analistas, devem ser tidas em conta neste novo “Plano Marshall”. “O G7 deve dizer ao governo ucraniano que o programa não avança até que Kiev aplique três dos sete requisitos para adesão à UE, relacionados com reformas do Estado de Direito”, decreta o GMF na sua proposta. “E deve incluir um inspetor-geral independente.”

Bruce Stokes explica ao Observador qual a lógica desta exigência: “Eles têm de limpar o histórico deles em relação à corrupção. Não sabemos se os oligarcas não vão todos regressar depois da guerra, por exemplo. E quando há milhares de milhões a serem canalizados para um país, o risco de corrupção está sempre lá.”

"Se a UE contribuir para tornar a Ucrânia num país bem sucedido, teremos trocas comerciais e fluxos de pessoas, e esse é um cenário muito mais positivo para a Europa do que o de ter um vizinho em dificuldades. E qual é a alternativa? Se não ajudarmos a Ucrânia, imaginem como serão os fluxos migratórios em direção à Europa".
Torbjörn Becker, diretor do Instituto de Estocolmo de Economia de Transição

Isto significa, porém, que qualquer “Plano Marshall” para a Ucrânia está sempre intrinsecamente ligado à prometida adesão do país à União Europeia, dando-lhe assim uma dimensão política que não é oficialmente assumida, mas que lá está. “Esse é o objetivo a longo-prazo e, portanto, faz todo o sentido que qualquer organização que seja criada para exigir este Plano tenha fortes ligações à UE”, resume Torbjörn Becker.

Os objetivos podem ser económicos, bem como as ferramentas, mas o “Plano Marshall” ucraniano também terá sempre, indiscutivelmente, uma dimensão profundamente política, frisam ao Observador os vários especialistas consultados. “Se a UE contribuir para tornar a Ucrânia num país bem sucedido, teremos trocas comerciais e fluxos de pessoas, e esse é um cenário muito mais positivo para a Europa do que o de ter um vizinho em dificuldades”, afirma o investigador sueco. “E qual é a alternativa? Se não ajudarmos a Ucrânia, imaginem como serão os fluxos migratórios em direção à Europa… Investir na Ucrânia pode custar a curto-prazo, mas a longo-prazo só nos beneficia.”

Meeting of Volodymyr Zelenskyi and Ursula von der Leyen in Kyiv

A adesão da Ucrânia à União Europeia pode ser uma faceta intrínseca de qualquer programa de apoio à reconstrução do país

Global Images Ukraine via Getty

Bruce Stokes, do GMF, aponta outro exemplo: “Se Washington e Bruxelas continuarem a hesitar — e estão a hesitar—, os chineses podem aparecer e disponibilizar-se para assinar um cheque. E isso deixa os ucranianos numa posição difícil.” Uma ideia que a própria Alemanha já tinha invocado em tempos, quando o ministro dos Negócios Estrangeiros da altura disse que “se [os europeus] falharem, outros irão substituir-nos”. “Num vácuo, os princípios chineses para a ordem internacional vão impor-se”, afirmou Sigmar Gabriel num evento a propósito do 70.º aniversário do Plano Marshall organizado pelo think tank americano CSIS.

Cinco anos depois dessas declarações, o chanceler alemão Olaf Scholz promete agora um “novo Plano Marshall” para uma Ucrânia em guerra, mas, em concreto, esse programa ainda está por apresentar — apesar de ter havido dois encontros, em Lugano e Berlim, dedicados a esse tema. “Quantas mais reuniões vão ser precisas até haver um Plano?”, questiona o analista do GMF, Bruce Stokes. “Esta é uma tarefa monumental, mas é preciso fazê-la. Está na altura de deixar as palavras e passar à ação”.

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