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O Bloco de Esquerda disponibilizou este sábado o programa eleitoral com que se vai apresentar às legislativas de 6 de outubro. Ao longo de 156 páginas, e sob o lema de campanha “Faz Acontecer”, o partido faz muitas promessas, agita velhas bandeiras e presta as contas da última legislatura. A proximidade ao Governo nos últimos quatro anos tornou o partido mais brando nalguns dossiers e mais cauteloso com as consequências orçamentais — para a maioria das medidas, sobretudo as de maior impacto financeiro, é apresentada a fatura que o Estado se veria obrigado a pagar se as propostas fossem aplicadas, assim como os ganhos delas provenientes.
À vista salta imediatamente a nova aposta do partido: o combate às alterações climáticas. Numa altura em que existe uma espécie de onda verde a mobilizar as camadas mais jovens um pouco por toda a Europa e depois de as primeiras greves pelo clima terem chegado aos estudantes portugueses no último ano, o Bloco de Esquerda não quer perder a oportunidade de agarrar este discurso. Há quatro anos, no programa eleitoral que levou às eleições de 2015, o tema já existia mas não tinha a relevância que os bloquistas lhe atribuem no novo diploma. Nos próximos quatro anos, os bloquistas prometem fazer frente à “maior de todas as crises: a emergência climática”.
Aliás, na carta de apresentação do programa, Catarina Martins dedica duas páginas a falar apenas deste tema. Afirma que não há tempo a perder para enfrentar este problema e avisa que, ao contrário do que acontece com outras pastas, “com o clima não se negoceia”. A prioridade está definida.
Mas o partido não se fica por aqui. Promete lutar por uma subida do salário mínimo para 650€ já no próximo ano e por um aumento de 5% ao ano nos anos seguintes. Propõe que o investimento público volte “aos níveis de 2008 e 2009”, quando se situava nos 5% do PIB — aos números de hoje, qualquer coisa como 10 mil milhões de euros por ano — e um aumento de 30 mil funcionários públicos ao ano.
Para ter liquidez para tudo isto, o partido propõe uma reestruturação da dívida, que alivie os encargos em 2 mil milhões de euros anuais, e uma reestruturação fiscal — a que não querem chamar aumento da carga fiscal, “preferimos dizer que se trata de impostos mais justos”, afirmou José Manuel Pureza em declarações ao Observador.
Mas há pastas que voltam à agenda na ressaca desta legislatura, como o fim das PPP na Saúde, a recontagem do tempo em que a carreira dos professores esteve congelada para efeitos de progressão ou a medida que prevê a despenalização da morte assistida ou eutanásia — uma medida que entrou na agenda mediática há pouco mais de um ano pela mão do PAN mas que entra diretamente para o rol de medidas que o BE leva a eleições.
Pelo meio, os bloquistas lançam vários ataques aos adversários políticos, sobretudo ao PS, que definiram como principal alvo a abater no programa, e piscam o olho à entrada num Governo. Não esquecem velhas bandeiras como o 1% do Orçamento do Estado para a Cultura, a nacionalização da banca e de empresas de setores estratégicos (como os CTT), a defesa das minorias, a legalização da canábis ou o estatuto de cuidador informal. Mas também esquecem outras, à cabeça a preparação de um plano que avaliasse a saída de Portugal do euro — uma medida que fazia parte do programa de 2015 mas que saltou das propostas . Por lá continuam também outras, embora muito mais tímidas do que noutras alturas, como a saída da NATO ou a saída do Tratado Orçamental, de que António Costa até é um defensor. Vamos por passos.
A nova bandeira do Bloco de Esquerda: Clima
É a nova grande bandeira do Bloco de Esquerda. As alterações climáticas ganham um papel central no programa que o partido vai levar a votos em outubro deste ano e que vai guiar a linha de orientação política dos bloquistas nos próximos quatro anos. Uma prioridade que já tinha ficado clara na apresentação parcial do programa que aconteceu a 7 de julho no Teatro Thalia, em Lisboa. Catarina Martins falou durante mais de uma hora para levantar o véu sobre o programa do Bloco de Esquerda e quase não abordou outro tema que não o clima.
Para esta área, o partido propõe medidas estruturais e outras mais simbólicas. Comecemos pelas últimas. O Bloco de Esquerda sugere que se crie o Ministério da Ação Climática para sinalizar — porque se trata sobretudo de uma proposta simbólica — a prioridade que o governo português deve dar a esta matéria, dando-lhe não apenas um ministério como um nome pró-ativo em vez de um mais genérico, como Ministério do Clima, por exemplo.
Mas os bloquistas querem utilizar esta bandeira para justificar mudanças estruturais em setores estratégicos. Até 2029, o partido pretende que nas zonas mais centrais de Lisboa e Porto não circule nenhum automóvel. Em Lisboa esta decisão a ser tomada ipsis verbis afetará as zonas da Baixa, do Chiado e da Avenida da Liberdade; já no Porto, a medida afetará a zona da Ribeira e a Avenida dos Aliados.
Mas para que isso seja possível é necessário um forte investimento nos transportes públicos, para que se tornem verdadeiras alternativas de mobilidade. E é aqui que surge uma segunda proposta: o partido propõe um alargamento dos metros das duas cidades para que cheguem “onde hoje não chegam” — na capital a locais como Campo de Ourique, Algés ou Loures e na Invicta a Paços de Ferreira ou Lousada —, assim como o aumento de 20% da frota da Carris e da STCP.
Em declarações ao Observador, o deputado do partido José Manuel Pureza explica que esta aposta no clima como eixo central da atuação política noutras áreas, como a dos transportes, se prende com o facto de as alterações climáticas terem consequências “dramáticas” em todo o mundo “e especificamente em Portugal”. “É um imperativo ético, político e até económico“, refere. O histórico bloquista salienta que é uma luta primordial, que não pode esperar por soluções que “têm de chegar no nosso tempo de vida, designadamente na próxima legislatura”.
E se é certo que o partido sempre foi sensível à matéria também é verdade que nunca lhe deu tanta centralidade como aquela que merece neste programa eleitoral. Pureza nega que se trate de “oportunismo político” para tentar cavalgar a onda de sensibilização que varreu a Europa no último ano, muito por causa de Greta Thunberg, mas também reconhece que na última legislatura o tema foi descurado e merecia mais atenção. “Devia ter havido uma atuação mais intensa. Há responsabilidades que temos de assumir e há uma avaliação que fazemos e que nos imprime mais determinação para o futuro”, explica.
Além das medidas já referidas, o Bloco de Esquerda quer criar um Plano Nacional da Ferrovia que ligue todas as capitais de distrito via comboio e a requalificação da via ferroviária em geral — uma medida que está avaliada em 10 mil milhões de euros até 2040 — ou a promoção de uma Lei de Bases da Energia.
Investimento público nos 5% do PIB (como em 2009)
A aproximação ao poder tornou o Bloco de Esquerda um partido habituado a lidar com as contas do Estado e acarretou uma carga de responsabilidade que até então não tinha feito parte da ação política do partido. Em novembro passado, no Carpool do Observador, o mesmo José Manuel Pureza reconhecia que o partido se tinha tornado mais responsável com a experiência da “geringonça”, embora afiançasse que não tinha perdido “a rebeldia” dos tempos em que era apenas um partido de oposição. Talvez por isso o programa do BE esteja repleto de contas. “Mostra a exequibilidade do programa”, explica agora o deputado. “As propostas têm custos e nós mostramos quais são e o que precisa de ser arrecadado para a sua execução”.
Assim, a parte do programa dedicada à política económica reveste-se de uma importância e centralidade maiores do que noutros atos eleitorais. Um dos maiores destaques nesta pasta é a proposta do partido para que o nível do investimento público se estabeleça, como mínimo, nos 5% do PIB. Em números atuais, seria qualquer coisa como um investimento público na ordem dos 10 mil milhões de euros por ano. Níveis apenas comparáveis com os anos imediatamente anteriores aos dos governos de José Sócrates, que em 2008 e 2009 registaram esta percentagem de investimentos.
Para alcançar esse “objetivo mínimo”, o partido sugere uma reestruturação da dívida que liberte 2 mil milhões de euros anuais, e uma reforma fiscal que contribua para arrecadar mais dinheiro para alocar no investimento público. Questionado sobre se o país goza de condições económicas para enveredar por esse caminho, José Manuel Pureza responde de forma sucinta: “São escolhas políticas”.
O objetivo deste aumento do investimento público seria o da melhoria dos serviços públicos. “A Educação, a Saúde, a Habitação e a Justiça são algumas dessas áreas” em que o Bloco de Esquerda quer investir dinheiro público, por considerar que se encontram numa situação deficitária. No âmbito da Habitação compromete-se a construir mais de cem mil casas para arrendar a partir de 150 euros, uma das medidas a que o próprio partido atribui mais importância. Na Educação, o partido propõe, por exemplo, o fim das propinas no Ensino Superior. Na Administração Pública, o Bloco de Esquerda defende um aumento de 30 mil funcionários públicos ao ano — 120 mil ao longo da legislatura.
Já na área da Justiça, por exemplo, o partido propõe a criação de um Serviço Nacional de Justiça assim como uma lei de bases da Justiça, medidas que visam facilitar o acesso do cidadão comum à justiça e aliviar os custos associados a processos judiciais. Duas propostas reveladas em julho pelo deputado José Manuel Pureza numa entrevista que concedeu à Rádio Observador.
Outra área que o Bloco de Esquerda apresenta como carenciada é a da Segurança Social. Embora reconheça que os últimos anos deram uma balão de oxigénio ao sistema de Segurança Social o partido quer ir mais longe e garantir a sua sustentabilidade a longo prazo.
Para isso o partido prevê a alocação de parte do investimento para este sistema, incluindo uma medida direta que passa por promover a diversificação das fontes de financiamento da Segurança Social. “Uma contribuição de 0,75% sobre o valor acrescentado das grandes empresas (que exclui todas as micro, pequenas e médias empresas) representaria um acréscimo de receitas de cerca de 300 milhões de euros/ano para a Segurança Social”, pode ler-se no documento disponibilizado este sábado online. Um valor a que acresce um previsível aumento das contribuições “em cerca de 800 milhões de euros por ano, em consequência do aumento do emprego” que o Bloco de Esquerda prevê que vá ter lugar na próxima legislatura.
Reforma fiscal — ou aumento da carga fiscal?
E se para aumentar as receitas da Segurança Social o partido prevê recorrer a novos impostos, como a criação de um novo escalão da derrama estadual para empresas com lucros entre 20 milhões e 35 milhões com a taxa de 7% (que aumentará em 27 milhões de euros por ano as receitas do sistema de Segurança Social), o mesmo mecanismo é utilizado para vir a aumentar o investimento público.
No programa do Bloco de Esquerda há várias medidas que visam alterar diretamente os impostos existentes. Trata-se de uma reforma fiscal que o partido não nega que venha a aumentar a carga fiscal. “Não é necessariamente um aumento de impostos mas a criação de um sistema de tributação mais justo e eficaz”, explica José Manuel Pureza. “Não significa um aumento da carga fiscal sem critério”, acrescenta ainda o deputado.
A título de exemplo, o partido propõe que o património imobiliário passe a fazer parte do englobamento dos rendimentos assim como a criação de dois novos escalões na tabela de IRS. Com esta medida o partido pretende regressar “aos oito escalões pré-troika, de forma a aumentar a progressividade e aliviar a carga fiscal sobre os rendimentos do trabalho”, explica-se no programa eleitoral.
Além deste aumento de escalões, o Bloco de Esquerda quer ainda criar um imposto sobre doações e heranças, incluindo património mobiliário ou outras formas de ativos líquidos, com valor superior a 1 milhão de euros; criar o imposto de solidariedade sobre as grandes fortunas, que incide sobre o património global dos sujeitos passivos cuja fortuna seja superior a 2 000 salários mínimos nacionais; e criar o “imposto Google”, que incidirá sobre as mais valias geradas pelas multinacionais a nível digital pela sua atividade em Portugal.
Propõe-se ainda, no âmbito desta reforma fiscal, a tributação das mais-valias imobiliárias para empresas e fundos de investimento, através de um novo regime que estabeleça justiça fiscal ou a eliminação de vários benefícios fiscais — incluindo o da isenção de IMI para os partidos políticos. O sistema fiscal que o partido quer alterar e tornar mais “justo e eficaz”, sobretudo “no combate à fraude e à evasão fiscal”, tem como objetivo “dotar o Estado dos recursos necessários ao investimento nos serviços públicos e na criação de emprego”.
Importa salientar que algumas destas medidas não são novas e foram apresentadas ao longo desta legislatura, como a derrama estadual ou o imposto Google. Ainda assim trata-se de um conjunto de propostas que apesar de não terem sido aprovadas foram repescadas para o programa eleitoral do partido.
Bloco de Esquerda propõe criação de “imposto Google” para fundo de apoio à comunicação social
Salário Mínimo Nacional nos 650€ já em 2020
E por falar em repesca, o Bloco de Esquerda volta a insistir no aumento anual do Salário Mínimo Nacional (SMN). Ao longo desta legislatura a “geringonça” garantiu um aumento anual. O partido quer que em janeiro de 2020 o valor volte a subir, desta feita para os 650€ e que, a partir daí, suba 5% todos os anos. Este é uma matéria que será certamente central num eventual cenário de repetição de governação condicionada à esquerda, já que as subidas do SMN registadas ao longo desta legislatura decorrem das posições conjuntas assinadas com o PS.
Um valor abaixo daquele que o PCP apoiou através de Jerónimo de Sousa no seu discurso no 1 de Maio deste ano, proposto pela CGTP-IN, e que se situa nos 850€.
Para defender esta medida, que Catarina Martins apresentou logo em julho quando foi revelada parte do programa eleitoral bloquista, a líder do partido propõe que o aumento aconteça “tanto no público como no privado”. “Os últimos quatro anos provaram que não há impossíveis e asseguraram um aumento de quase cem euros do salário mínimo nacional”, argumentou então, para provar que se trata de uma proposta realizável. “Provámos que a economia funciona melhor assim”.
A par desta medida, o Bloco de Esquerda propõe um aumento das pensões contributivas. A saber: a recuperação do valor das pensões mais baixas do regime contributivo e o alargamento do acesso ao sistema de saúde (o fim de todas taxas moderadoras e conclusão da cobertura universal do médico de família) e a apoios sociais (retirando a consideração dos rendimentos de descendentes para a atribuição do Complemento Solidário para Idosos).
Fim das PPP na Saúde e recontagem do tempo de serviço dos professores
É precisamente na área da Saúde que o Bloco de Esquerda volta a apostar forte, cumprindo com a promessa que tinha deixado no ar depois de aprovar uma lei de bases da Saúde que não impede que as PPP existam no setor. Os bloquistas inscrevem no seu programa o fim das PPP na saúde como uma das prioridades para esta área.
Assim, o partido defende a “autonomia de gestão das unidades do SNS”. E justifica do seguinte modo: “a partir do momento em que o seu orçamento e plano de atividades anual é homologado pela tutela, as instituições do Serviço Nacional de Saúde não devem ficar dependentes de autorizações para a contratação de profissionais ou para a realização de pequenos investimentos. O SNS deve ainda ser excluído da aplicação da Lei dos Compromissos”.
Para complementar esta medida, sugere-se ainda a criação de um plano plurianual de investimentos associado a uma carta nacional de equipamentos de saúde, com dotação própria.
Duas medidas que já se previa que figurassem no programa do BE, assim como o aumento do investimento no SNS ou fim definitivo das taxas moderadoras. Isto num setor para o qual o partido reclamou mais financiamento ainda que de forma menos impetuosa quando se compara com os tempos em que o partido era apenas oposição.
Lei de Bases da Saúde fica sem referências às PPP (que continuam a existir)
O mesmo acontece no caso dos professores. O partido faz um “balanço misto” do mandato de Tiago Brandão Rodrigues como ministro da Educação. Em resumo, os bloquistas consideram que o governante começou bem e acabou mal, ensombrado por uma encenação de crise política a propósito da recuperação da carreira dos professores e professoras. Uma medida que só não foi para a frente, considera o BE, por um bloqueio da maioria PS-PSD-CDS.
Assim, e para ultrapassar “esse bloqueio” o partido propõe que durante a próxima legislatura sejam contabilizados mais 3 anos, 8 meses e 24 dias, além dos 2 anos, 9 meses e 18 dias já considerados, concluindo-se a contagem integral nos três anos seguintes.
As velhas bandeiras que continuam, as que se esbateram — e até as que caíram
O programa que o Bloco de Esquerda vai levar a estas eleições apresenta novidades no discurso, mais contido do que noutros tempos, nas propostas e até nas prioridades do partido para os próximos quatro anos. Mas há outras medidas que não só não são novidades como são habitués nos programas eleitorais bloquistas. Em primeiro lugar as nacionalizações. Da banca aos CTT passando pela REN, a EDP ou a Galp, o partido propõe a passagem das entidades dos setores estratégicos do Estado para a esfera pública. Uma série de medidas que decorrem de uma questão ideológica e que era expectável que voltasse a entrar no programa — novidade seria se não o fizesse.
O mesmo se pode dizer de um rol de medidas como o reforço do estatuto do cuidador informal, o combate ao racismo e à homofobia (embora tenha vindo a a ganhar mais peso programa eleitoral após programa eleitoral), a reivindicação de 1% do OE para a Cultura, a defesa das minorias, a legalização da canábis para consumo recreativo e a despenalização da morte assistida (ou eutanásia). Esta última não fazia parte do programa do partido de há quatro anos mas foi um tema sobre o qual o Bloco de Esquerda tomou uma posição bem cedo, declarando-se prontamente a favor.
Depois do debate suscitado pelo PAN em maio do ano passado, o BE coloca o tema na agenda e assume esta bandeira como sua. Aliás, outro tema que o PAN capitalizou desde cedo mas que o Bloco também tenta disputar é o bem-estar animal, a que os bloquistas dedicam um capítulo inteiro, com propostas que vão da extensão da legislação sobre maus tratos a animais a todos os animais errantes e assilvestrados até à criação de uma Rede de Centros de Recolha Oficial que abranja todos os municípios e que atenda às necessidades de esterilização de animais errantes.
O discurso anti-instituições europeias continua presente mas com menos tenacidade, já que o partido dedica grande parte do programa às políticas internas e pouco a propostas relativas às relações externas. O programa está dividido em cinco eixos, sendo um deles o das relações externas, que é, curiosamente, o que merece menos páginas e menos propostas dos cinco. Neste ponto do programa o partido defende a saída de Portugal da NATO e do Tratado Orçamental.
Salta a vista uma bandeira que o partido agitou durante muito tempo e que foi pousando aos poucos até que deixou mesmo de ser parte do discurso bloquista: a saída do euro. É verdade que o BE nunca assumiu de forma perentória a vontade de abandonar a moeda única nem nunca formulou uma proposta neste sentido. Mas no programa que levou às eleições de 2015 o partido propunha que se ponderasse essa possibilidade como plano B e que se trabalhasse nesse cenário ainda que em segundo plano e como recurso. Agora, nem isso. Zero referências ao euro. Apenas uma leve crítica en passant aos ditames que a zona euro impõe a nível financeiro, embora nunca se dê o passo seguinte, o de repensar a presença de Portugal nesse grupo. Mais um exemplo das consequências da aproximação do partido ao poder?
Os alvos políticos: o PS e a direita. PCP nem vê-lo
Mas nem só com medidas e propostas técnicas se constrói um programa eleitoral. Há sempre a carga ideológica e o confronto político, mais ou menos disfarçado. O programa do BE não é exceção. Para os bloquistas há um alvo preferencial para desferir ataques: o PS. Mais até do que a direita. Senão veja-se: ao longo das 156 páginas do programa eleitoral, o Bloco refere-se ao PS por 63 vezes, aos PSD e ao CDS por 15 vezes cada um.
Mas se isto não fosse suficiente, o Bloco de Esquerda tornou este facto ainda mais evidente com a estrutura que decidiu adotar ao longo de todo o programa. Em vários capítulos, o partido optou por, antes de apresentar as suas propostas, escrever aquilo que propõe o PS para aquela área em específico. Só depois apresenta medidas do próprio BE.
A ideia, explica José Manuel Pureza, foi fazer o contraponto direto entre as duas propostas. “Essas chamadas de atenção justificam-se”, garante. “Apresentamo-nos a eleições com uma proposta própria, como não poderia deixar de ser. Uma proposta que é, em muitos setores, diferente daquilo que o PS propõe”, acrescenta ainda o deputado. A insistência com o PS, mais até do que com a direita, deve-se ao facto de “ser precisamente o PS que está no Governo”. Ou seja, o partido quer deixar claro que, apesar de ter feito parte da solução governativa não é Governo, podendo assim imputar os insucessos aos socialistas e colher para si os eventuais louros desta experiência. “Este é um momento particularmente importante para mostrarmos as nossas diferenças”, refere.
Nestas declarações, assim como ao longo do programa eleitoral, fica plasmada a intenção do Bloco de se distanciar do PS e de o eleger como alvo a abater. Para crescer à esquerda o partido sabe que tem de arranhar eleitorado socialista, o que se faz não só com propostas mais moderadas — que as há — mas também com um discurso que apele ao lado esquerdo do coração do PS.
Importa notar que ao longo deste programa o Bloco de Esquerda não se refere uma única vez ao PCP. Nem para o responsabilizar por eventuais falhas da “geringonça” nem para repartir os méritos das conquistas.
Quer isto dizer que o partido tem pretensões de Governo? José Manuel Pureza responde nim. “O Bloco de Esquerda quer estar presente na determinação do caminho a seguir“, diz de forma redonda, escolhendo as palavras com pinças para não se comprometer com nenhuma resposta mais definitiva. E acrescenta: “tudo dependerá da força que tivermos”.
O próprio programa parece assumir esse desígnio com mais determinação do que o deputado bloquista. Na página 43 do programa, pode ler-se que o “é essencial criar uma relação de forças que dê ao Bloco a força para abrir caminho para uma economia para todas as pessoas e uma sociedade que proteja quem mais precisa. Só essa força permitirá a formação de um governo que faça o caminho que ainda está por trilhar”. Este excerto pode ser interpretado um piscar de olho à entrada num Governo. “Os programas não se fazem para piscar olhos“, devolve José Manuel Pureza, aproveitando para fugir mais uma vez à questão. Até quando?