Duas semanas depois de promover um colóquio na Fundação Calouste Gulbenkian sobre o abuso sexual de crianças, — em que se abordaram os 326 testemunhos de vítimas deste tipo de crime por parte do clero, — o coordenador da Comissão Independente criada pela Igreja para fazer um estudo sobre o tema deslocou-se à Polícia Judiciária. Era um encontro informal. O pedopsiquiatra Pedro Strecht levava com ele um papel com alguns nomes de padres apontados como abusadores sexuais por vítimas, casos cujos crimes já tinham prescrito e que, por isso, não podiam originar um inquérito, contrariamente a outros 17 que entretanto foram entregues ao Ministério Público.
Nesse encontro com um elemento da direção da Polícia Judiciária e um coordenador, Pedro Strecht revelou o que o estava a atormentar: estavam a chegar cada vez mais casos à Comissão Independente, incluindo testemunhos que apontavam para outras potenciais vítimas, e temia que estas informações permanecessem em silêncio e que não fosse feita Justiça — sobretudo nos casos em que os padres apontados pelo crime — ainda que prescrito — continuavam ao serviço de paróquias do país como se nada tivesse acontecido, contrariando assim, também, as orientações do Vaticano.
Igreja. Comissão Independente estima terem existido acima de 1500 vítimas de abuso sexual
O primeiro encontro com a PJ
Não era a primeira vez que Strecht estava com aqueles dois elementos da Judiciária, sabe o Observador. Logo no início do ano, quando a comissão começou a trabalhar, foram os próprios polícias que o alertaram para o facto de lhe poderem vir a chegar relatos de crimes de abuso sexual praticados por padres ainda vivos e no ativo que pudessem estar prescritos — e que estes suspeitos podiam continuar a praticar crimes. Raramente um predador sexual comete apenas um crime ao longo da sua vida, terão avisado.
Nessa altura, no seio da Polícia Judiciária, segundo apurou o Observador, temeu-se uma hecatombe de denúncias que pudessem obrigar à criação de uma equipa especial só para tratar destas suspeitas. No entanto, não foi assim. Em mais de três centenas de casos o juiz e ex-ministro da Justiça, Laborinho Lúcio, que também integra a comissão, só encontrou até hoje em 17 denúncias com indícios que, na sua ótica, poderão ser investigadas. O magistrado optou por entregá-los ao Ministério Público para que este decidisse se abriria ou não inquérito. E, quase dois meses depois, ainda não há qualquer posição pública da Procuradoria-Geral da República sobre os mesmos, se foram distribuídos ou não. E nenhum deles foi entregue à Polícia Judiciária — que tem competência neste tipo de crimes — para começar a investigar.
Num dos casos que Laborinho Lúcio enviou para o Ministério Público, apurou o Observador, o magistrado levanta mesmo a possibilidade de o caso acabar arquivado por falta de elementos suficientes para uma investigação. Aliás, na última divulgação dos dados da comissão, a 30 de junho, o próprio Laborinho Lúcio — que não esteve presente — deu a entender isso mesmo na mensagem que escreveu e que foi lida por Strecht. Sem dar muita esperança ao público e às próprias vítimas, avisou que “poucas devem ser as expectativas quanto ao êxito de uma investigação criminal”, até porque das 338 denúncias validadas pela comissão, a maioria dos testemunhos recebidos estão “a coberto do anonimato e não identificam em muitos casos o nome do abusador, nem o local”, explicar-se-ia nessa conferência de imprensa. “A informação enviada para o MP vem pelo dever geral do conhecimento de um crime”, lembrou.
Também numa conferência, mas promovida pela Associação para o Planeamento da Família (APF) com o apoio do Fundo de Relações Bilaterais do EEA Grants, sobre “Crianças Vítimas de Abuso Sexual: Conhecer mais para agir melhor”, se focou este ponto. O diretor adjunto da Polícia Judiciaria lembrou nesse dia 2 de junho a importância de todas as queixas de violência sexual contra menores serem comunicadas à polícia o mais rapidamente possível porque o tempo é fundamental numa investigação criminal. Carlos Farinha aproveitou também o seminário “Crianças Vítimas de Abuso Sexual: Conhecer mais para agir melhor”, que decorreu no auditório da Direção Nacional da PJ, para deixar um recado à Comissão Independente criada pela Igreja para a investigação deste tipo de crimes alegadamente praticados pelos seus membros e que optou por entregar cerca de duas dezenas de denúncias ao Ministério Público. “Uma participação feita à PJ está também a ser feita ao Ministério Público”, advertiu, lembrando que ao fazê-lo a esta polícia, com competência exclusiva para investigação de crimes sexuais contra menores, a investigação pode começar logo. “Esta questão da sinalização externa não deve dar margem a tempo perdido”, disse o responsável. “O tempo urge para que a resposta possa ser a desejável”.
Strecht levantou sigilo para dar nomes de padres suspeitos
Strecht, no entanto, quando na tarde de 24 de maio se deslocou à Polícia Judiciária, declarou o levantamento do seu sigilo profissional para dar uma lista de sete nomes de padres visados e que ainda estão no ativo. O levantamento do sigilo profissional foi, aliás, um dos pontos discutidos no colóquio na Gulbenkian, com o padre Anselmo Borges a assumir que nunca violaria o dever de confissão, contrapondo Strecht, que chegou a dar o exemplo do caso do violador de Telheiras que foi resolvido graças ao levantamento do sigilo profissional de um psicólogo — mostrando assim que um dos seus limites ao segredo é a denúncia de um crime.
Numa entrevista ao Público, que foi publicada no dia da conferência de imprensa com a atualização dos dados da Comissão, a 30 de junho, Pedro Strecht acabaria por confirmar estes encontros com a PJ ao afirmar que tinham sido “feitos também contactos com a Polícia Judiciária em relação ao esclarecimento de outros casos que eventualmente já poderiam ter processo aberto e que, portanto, não valeria a pena” serem enviados ao Ministério Público. “Estamos à espera dessa confirmação e dessa listagem [das autoridades]”, acrescentou.
O Observador apurou junto de fonte policial que o mais provável é esta resposta não chegar a Strecht. Até agora nenhum dos nomes fornecidos foi alguma vez investigado pela Polícia Judiciária ou tem sequer ficha criminal. “Mas em último caso, se houver algum resquício contra qualquer que seja a pessoa, informaremos a justiça canónica”, avisou uma fonte da PJ ao Observador.
Foi também no dia da conferência na Polícia Judiciária que os responsáveis pelos crimes sexuais de algumas diretorias da PJ do País (incluindo do norte do país) foram chamados para uma reunião em Lisboa com a Direção. A ideia foi dar-lhes em mãos os nomes dos padres alvo de denúncias na comissão consoante a zona onde agora se encontram a prestar serviço. Problema: é que para abrir inquérito é preciso haver suspeitas contra eles, e, para já, sem nomes de vítimas a investigação estará ainda numa fase muito embrionária. “Dificuldades que a PJ enfrenta todos os dias”, admitiu a mesma fonte ao Observador sem adiantar mais detalhes.
Abusos sexuais. “Uma participação feita à PJ está também a ser feita ao Ministério Público”
Um magistrado ligado ao processo Casa Pia que pediu para não ser identificado partilha de uma opinião semelhante à da PJ. Não havendo em Portugal crimes “imprescritíveis”, como lhe chama, lembrando os crimes de guerra na Alemanha, por exemplo, este procurador admite que a justiça em relação a estes homens não pode ser feita apenas pela justiça civil, mas também pela canónica. “Se os crimes já tiverem prescrito não há nada a fazer. Eu creio que à Igreja interessar-lhe-á, independentemente da responsabilidade penal, saber de pessoas que ainda estejam no ativo”. “As polícias também existem para prevenir a prática de crimes. Se a Igreja tem conhecimento do caso independentemente da situação, e temos que partir do princípio que a Igreja quer debelar estes perigos, eu creio que ninguém melhor do que a Igreja o fará”, defende.
Na última divulgação de dados por parte da Comissão Independente não foi apenas a responsabilização criminal destes casos que foi problematizada. Também o facto de haver zonas no país onde não existe qualquer denúncia preocupa os membros da comissão. Desde janeiro, a comissão validou 338 denúncias de abuso sexual. Mas se as distribuirmos pelo país inteiro e olharmos para o mapa conclui-se que a maior parte se concentra no litoral do País, sobretudo nas malhas urbanas junto a Lisboa (75 casos) e Porto (46). Já no interior do país, os casos não chegam a uma dezena por distrito, o que pode ser explicado pelo facto de nestas zonas viver uma população mais idosa e também menos qualificada, como constatou a professora Ana Nunes de Almeida.
“Não queremos mesmo deixá-las de fora”, disse por seu turno o coordenador da Comissão, o pedopsiquiatra Pedro Strecht, que acabou por defender que, para conseguir chegar a estas pessoas, é preciso um suporte mais ativo da Igreja, provavelmente “paróquia a paróquia”, ou através do poder local, pelas autarquias, associações ou instituições de solidariedade social. “Há muitas pessoas a irem à missa”, constatou, — lembrando que este trabalho foi pedido pela própria Igreja e que “não é uma caça às bruxas”, mas uma forma de poder retratar uma realidade que a própria Igreja procura descobrir. Da Igreja também se espera uma ação depois de, no final do ano, a comissão entregar os resultados finais do seu trabalho.