Sobreviveu mais de uma década. Foi alvo de muitos ataques à esquerda e defendido pela vozes mais “especialistas” (em impostos e imobiliário) que insistiram que, entre perda de receita (que nunca seria cobrada) e acréscimo efetivo de impostos, o país saia a ganhar. Até do Governo vieram declarações de justificação da sua existência (e não há muito tempo). Mas, agora, o regime fiscal favorável para residentes não habituais não vai sobreviver à crise da habitação, ainda que os seus efeitos se façam sentir por mais de 10 anos.
Foi esse o principal argumento que António Costa trouxe para justificar o travão à entrada de novos registos de residentes não habituais no regime fiscal criado em 2009, ainda durante o Governo de José Sócrates, mas que só começou a ganhar asas (em beneficiários e em valor de impostos por cobrar) nos anos do Executivo de António Costa.
Numa entrevista à CNN Portugal em que assumiu a “frustração” pela realidade ter andado mais depressa dos que as medidas do Governo para resolver o problema da habitação, o primeiro-ministro foi categórico ao anunciar o fim do regime que a esquerda batiza de “borla fiscal” e claro na motivação. Tendo o regime cumprido a sua missão, que não identificou, “não faria sentido prolongar uma medida de injustiça fiscal” e continuar de “forma enviesada a inflacionar o mercado da habitação” que já atingiu preços “perfeitamente insustentáveis”.
A intenção de Costa teve ressonância nos países que competem com Portugal por atrair rendimentos elevados. “Espanha ganha com o fim do oásis fiscal de Portugal”, diz o Expansíon. Segundo o económico espanhol, a morte anunciada do regime fiscal para não residentes fez disparar as consultas aos fiscalistas sobre destino alternativos, como Itália e Espanha, travando ainda a vinda de espanhóis para cá. O Cinco Dias escreve que os espanhóis com altos rendimentos que vieram para Portugal estão a planear os próximos passos e podem aproveitar a chamada “lei Beckham” — que está em vigor desde janeiro de 2023 e ficou com este nome por ter sido usada pelo futebolista inglês — que lhes permite continuar a pagar menos impostos do outro lado da fronteira.
Impacto no imobiliário? “Não é bala de prata”
O imobiliário parece ter sido o setor que mais beneficiou com a vinda destes novos residentes. Segundo dados divulgados pelas Finanças em 2021 (à falta da tal avaliação), em 2018 estes contribuintes entregaram ao Estado 200 milhões de euros — para além da receita do IRS sobre rendimentos não isentos (por exemplo financeiros), foram o IMI e o IMT a justificar a fatia mais importante desta arrecadação.
Mas o setor recusa associar a compra de imóveis por parte destes agregados à crise na habitação. Francisco Horta e Costa, diretor-geral da consultora do sector imobiliário CBRE, acredita que estes contribuintes compraram casas no segmento alto e muito alto — podendo até ter inflacionado os preços nesse segmento — e não é o travão que agora possa haver nessas aquisições que resolverão a acessibilidade na habitação. “Não é assim [terminando com o regime de residentes não habituais mas também com os vistos gold] que resolvemos o problema”, assume Francisco Horta e Costa que fala, antes, da necessidade de se aumentar a oferta para responder à procura, construindo mais habitação. E acusa o Governo de “tomar medidas de forma cega e sem analisar as consequências”. Recorda mesmo que os preços continuaram a subir em Lisboa e Porto mesmo depois de ter terminado a atribuição de vistos gold nas duas áreas para compra de imóveis.
De acordo com os dados do INE, no ano passado foram transacionados 167,9 mil casas habitacionais, tendo 157,17 mil sido comercializados por compradores com domicílio fiscal em Portugal, ou seja, cerca de 94%, o que deixa 6% para os estrangeiros. Mas aqui há que realçar que os residentes não habituais são fiscalmente domiciliados em Portugal, pelo que poderão até estar englobados nos “portugueses”. Mas Hugo Vilares, professor Faculdade de Economia da Universidade do Porto — um dos coautores do estudo sobre o mercado imobiliário português realizado para a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) no qual se avança com um conjunto de objetivos e soluções (policy paper) para este setor — dá outros números.
Existem, segundo o Tribunal de Contas, cerca de 74 mil registos de residentes não habituais. E, de acordo com o Censos de 2021, existem quase 6 milhões de alojamentos. O que significa que se cada um dos residentes não habituais tivesse comprado uma casa poderia significa pouco mais de 1% desse parque habitacional. Hugo Vilares também admite que as compras efetuadas por estes investidores apontam para segmento alto e muito alto. Ainda que ao ritmo de crescimento que o regime dos residentes não habituais estava a ter (cerca de 20 mil por ano) o impacto noutros segmentos de mercado poderia começar a sentir-se com maior força.
No estudo para a FFMS considera-se que “em termos gerais a pressão dos estrangeiros nos preços da habitação existe é maior nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, mas o impacto desta procura no valor mediano das habitações parece ser globalmente limitado”. Em particular, no entender de Hugo Vilares, as compras decorrentes dos contribuintes abrangidos pelo regime de residentes não habituais. Pelo que para Hugo Vilares poderão concorrer vários argumentos para limite esses regimes especiais mas não com expressão o da acessibilidade à habitação. Mas não há estudos precisos sobre a medida e o impacto da sua existência ou do seu travão. Além disso, toda a emigração — existem 780 mil emigrantes em Portugal — pode significar aumento da procura com impacto nos preços.
O professor do Porto deixa também a questão sobre pôr-se fim a uns regimes e não a outros — há cerca de 26 mil registos de nómadas digitais. E questiona se o regime é para terminar na sua plenitude ou se haverá ainda lugar a um sistema fiscal mais favorável para os chamados cérebros (como professores universitários, médicos, etc) que são altamente qualificados e que Portugal precisa. Além dos portugueses emigrados que aproveitaram para voltar e que pesam, segundo o professor, 10% deste regime. Ainda assim estes têm o Regressar para poderem voltar ao país com um regime fiscal mais favorável.
Dados de 2018, indicam que os portugueses são a sexta nacionalidade que mais usa este regime, abaixo dos suecos e acima dos espanhóis. A lista era liderada por franceses, seguidos de britânicos, italianos e brasileiros.
Hugo Vilares diz, pois, que o fim do regime dos residentes não habituais não será a bala de prata para a acessibilidade na habitação.
Governo socialista defendia programa
Para Mário Centeno, governador do Banco de Portugal — entidade que está a realizar um estudo sobre habitação — trata-se de uma “decisão política”. Questionado na conferência de imprensa de divulgação do Boletim Económico (no qual reviu em baixa as estimativas de crescimento para Portugal), Centeno afirma: “Não estou completamente convencido que seja esse o problema, mas enfim é uma decisão política”. Esse foi um dos programas, realçou, que foram estabelecidos numa altura de ajustamento em que o país tentou trazer investimento e procura para um setor que estava numa tendência de desaparecimento.
“É preciso entender o contexto histórico em que isso aconteceu, e entender que recuperar níveis de atividade neste tipo de setor [construção] leva tempo e, ao contrário da crise pandémica, em que não destruímos a capacidade produtiva, na construção destruímos”. “Se se entende que se pode e dever terminar com estes programas num contexto em que possa adicionar mais pressão a estes setores é uma decisão política. Confesso que não estou completamente convencido que seja esse problema, mas enfim é uma decisão política”, desabafa o governador que foi ministro das Finanças até 2019, quando a posição do Governo era diferente
Tendo como pretexto a crise na habitação, Costa parece agora dar razão às críticas vindos dos parceiros europeus que rasgaram as convenções fiscais com Portugal acusado de praticar injustiça fiscal e muda o discurso do Governo socialista que ainda em 2019 não estabelecia uma ligação direta entre o fluxo destes novos compradores e o aumento do preço das casas. Em entrevista ao Observador, o então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Mendonça Mendes (atual secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro), dizia que os residentes não habituais “não são os responsáveis pela especulação imobiliária”.
Também Fernando Medina, ministro das Finanças, justificava em 2022 ao Expresso a existência deste regime, dizendo que “Portugal não pode desperdiçar nenhum elemento de competitividade na capacidade de atrair capital, capacidade produtiva, quadros qualificados, rendimento”, ainda que se mostrasse mais defensor “de uma harmonização fiscal [europeia] muito mais avançada”. Questionado então sobre o impacto desse regime nos preços da habitação Medina sentenciava:
Digo aquilo que tenho dito sempre: o grande fator que inflacionou o preço das casas foi termos taxas de juro praticamente a zero durante muitos anos”.
O Ministério das Finanças prometeu fazer uma avaliação sobre as perdas e os ganhos deste regime, mas isso não chegou a ser apresentado.
Entretanto e depois da pandemia, o preço das casas acelerou e o número de pessoas abrangidas por este regime subiu muito (sobretudo em 2022) e apesar da prevista avaliação aos ganhos reais para o país (em outras receitas fiscais e retorno para a economia) não ter avançado, António Costa deu um número que também ajuda a explicar a decisão. Mais de metade, ou 59% dos beneficiários deste regime que perdem os benefícios fiscais ao fim dos 10 anos, optaram por ficar em Portugal. Um número que dá algum conforto aos que defendem que este benefício não é por si só motivo com força suficiente para justificar a mudança de estrangeiros para Portugal.
O fim do regime vai de encontro ao que o Bloco de Esquerda reclama há anos, mas Mariana Mortágua alertou para o risco do anúncio antecipado de António Costa originar uma corrida às “borlas fiscais” antes que a porta se feche definitivamente em 2024. O primeiro-ministro salvaguardou que os atuais beneficiários manteriam o regime enquanto durassem os 10 anos. E quem entrar em 2023 terá direito ao benefício até 2033, pelo regime.
O Bloco lembra o exemplo do anúncio do fim dos vistos gold e diz que vai apresentar propostas para que o regime termine já. Aliás, o partido levou a votos uma proposta para eliminar os benefícios fiscais do código do IRS relativos aos não residentes, que foi chumbada pelos socialistas.
BE exige fim imediato do regime fiscal dos não residentes para evitar corrida a “borla fiscal”
Há 50 declarações com um benefício médio de 8,6 milhões cada
Sempre que se fala nos residentes não habituais é inevitável que que venha à baila um valor. O que é referido como despesa fiscal, que é uma estimativa dos impostos que estes contribuintes teriam de pagar caso fossem portugueses e tivessem um nível de rendimento equivalente.
Esse valor não parou de crescer desde 2017, sublinha o Tribunal de Contas no parecer à conta geral do Estado de 2022 e o crescimento em mais de 50% dos recém-chegados ao regime nesse ano leva a instituição a avisar que a despesa fiscal com estes contribuintes vai disparar em 2023. Já no ano passado foi a despesa foi 1.360 milhões de euros (com base no rendimento de 2021), a segunda maior despesa fiscal depois do IVA, que, no entanto, não é perda de receita, mas impostos que o Estado deixa de cobrar (num cenário em que estes residentes viriam para Portugal pagar as taxas de IRS que se aplicam aos nacionais).
Esta despesa divide-se por 29.426 declarações com direito ao benefício — o que em média dá cerca 46 mil euros por declaração. Mas o tribunal assinala uma elevada concentração deste benefícios fiscais nos rendimentos mais altos. As 50 declarações com maior despesa fiscal representam 31,6% do valor total, quase 430 milhões de euros, o que dá uma despesa fiscal média por cada uma destas declarações de 8,6 milhões de euros.
Muitas vezes associado aos reformados ricos do norte e centro da Europa, este regime contempla duas modalidades. A que se aplica aos rendimentos com pensões que desde 2020 passaram a pagar uma taxa de 10%, em vez da isenção total que se aplicou nos primeiros dez anos do regime. E a modalidade que abrange os profissionais de alto valor acrescentado e quadros de grandes empresas a cujos rendimentos do trabalho é aplicada uma taxa de 20%, mas que não podem fazer deduções fiscais.
Em declarações dadas ao Observador em 2020, precisamente quando se assinalavam os primeiros dez anos do regime de residentes não habituais, o secretário de Estado que esteve ligado à sua criação — Carlos Lobo — explicou o contexto em que surgiu a medida. Existia uma recessão mundial (que em Portugal veio a evoluir para uma crise financeira). “Tínhamos de fazer alguma coisa para atrair pessoas com elevada capacidade de gerar rendimento” numa altura em que Portugal “não tinha uma grande reputação de estabilidade e segurança fiscal”.
Bónus fiscal para não residentes habituais vai mudar. Valeu a pena?
Descrevia a medida como inovadora e até disruptiva, destacando que quando foi adotada não havia risco de perda fiscal porque Portugal à data só cobrava rendimentos obtidos dentro do país. “Enquanto outros países atraíam empresas e banca — com taxas de IRC mais baixas — Portugal resolveu ir atrás das pessoas”, assinalava Carlos Lobo. E destacou dois alvos: os profissionais altamente qualificados e com ocupação de alto valor acrescentado; ou pessoas com património e pensionistas estrangeiros que não tivessem residido em Portugal nos cinco anos antes do pedido de adesão. O relatório encomendado pelas Finanças em 2019 sobre os benefícios fiscais indica que mais de metade dos contribuintes com profissão eram gestores de grandes empresas. Havia também engenheiros e informáticos e alguns professores universitários. Já cantores — numa altura em que a Madonna tinha fixado residência em Portugal — eram apenas seis.
Se é certo que teve um arranque tímido — talvez por causa da crise e do resgate internacional — o boom do turismo e o aumento da visibilidade de Portugal como destino atrativo (também para viver) trouxe um número crescente destes não residentes e o regime acabou por se tornar vítima do seu próprio sucesso.
Regime português para pensionistas estrangeiros é dos mais prejudiciais da UE
Em 2020, e depois da Suécia e da Finlândia terem rompido acordos com Portugal, o Governo tentou travar os ataques com a introdução de uma taxa de 10% para os rendimentos dos pensionistas. Mas um estudo de 2021 do Observatório Fiscal da União Europeia classificada o regime português para estes contribuintes como “um dos mais prejudiciais para a concorrência fiscal na UE”.