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António Botto vivia no Brasil há mais de dez anos anos quando a derradeira tragédia se abateu sobre ele. Tinha emigrado por vontade própria em 1947, descontente com o meio cultural português. Ainda que até hoje ninguém saiba ao certo porque é que o poeta escolheu aquele país, parece mais ou menos certo que Botto via no Brasil um paraíso há muito ansiado, onde esperava finalmente encontrar o reconhecimento que Portugal sempre lhe havia negado. “Troféus de luz me chamavam da capital Federal. O imenso território iluminado emocionou a minha sensibilidade ansiosa de ternura e de sossego”, escreveu ao brasileiro João das Neves. Não foi isso que aconteceu. “Surdo e pobre”, morreu a 16 de março de 1959 num quarto particular de hospital que lhe foi cedido por caridade, depois de ter sido atropelado numa avenida do Rio de Janeiro.
Botto nunca pensou que a “ternura” e o “sossego” se transformassem nos piores anos da sua vida. Caso único na literatura portuguesa, não há autor que se lhe compare a nível europeu e muito provavelmente a nível mundial. Quando em 1920 publicou Canções do Sul (que vários críticos consideram ser a sua obra inaugural), que viria a dar origem ao maldito Canções um ano depois, o poeta nascido em Abrantes tornou-se no primeiro português a assumir publicamente a sua homossexualidade (que de resto parece nunca ter escondido) e no primeiro escritor a fazê-lo sem véus, sem mensagens codificadas. Essa coragem valeu-lhe todo o tipo de insultos (e uma defesa pública por parte de Fernando Pessoa, de quem era amigo) e impediu que a sua obra e linguagem literárias, únicas e sem precedentes, fossem reconhecidas em 1920 e anos seguintes.
Quando no final da década de 40 decidiu emigrar, António Botto atravessava uma fase menos boa da sua vida. Ainda que o escândalo envolvendo o seu nome estivesse há muito acabado (depois da publicação de Canções viu-se ligado à polémica da chamada “Literatura de Sodoma” juntamente com Raul Leal e Judith Teixeira, que transformou os três escritores em personagens famosas a evitar), Botto e a sua homossexualidade continuavam a ser apontados na rua. Em novembro de 1942, foi expulso da função pública, onde trabalhava há vários anos, sem direito a qualquer pensão, por carecer “da necessária idoneidade moral para o exercício das suas funções”. O poeta tinha sido acusado de recitar “versos” nas “horas de serviço” e de dirigir “galanteios” a um colega.
Para ganhar a vida, Botto começou a colaborar ativamente com a imprensa, mantendo, como sempre, um ritmo quase frenético de publicação das suas obras. A história da sua expulsão do Arquivo Geral de Registo Criminal e Policial era contada em surdina pelas redações. Botto fazia de conta que não sabia de nada, mas o desprezo e a incompreensão foram pesando cada vez mais. “Repudiado pelos meios intelectuais” (Fernando Pessoa, que escreveu sobre ele mais do que ninguém, tinha há muito morrido e já não havia quem saísse em defesa dos seus livros), como apontou a biógrafa Maria da Conceição Fernandes em António Botto — Um Poeta de Lisboa, acabou por tomar a decisão de embarcar rumo ao Brasil, acompanhado por Carminda da Conceição Silva Rodrigues, uma mulher natural de Santiago do Cacém com quem vivia desde finais dos anos 20. O casal partiu de Lisboa a 17 de agosto de 1947, dia em que António Botto celebrou o seu 50º aniversário, graças ao dinheiro angariado em dois recitais e aos 40 contos oferecidos pelo banqueiro Ricardo Espírito Santo após uma sugestão feita, segundo consta, pelo próprio Salazar.
Uma “existência dramática”
Os últimos anos de António Botto foram os mais difíceis. No Brasil, o dinheiro começou a escassear e a sua situação deteriorou-se. No Rio de Janeiro, para onde se mudou em 1951 depois de uma temporada em São Paulo, viveu com Dona Carminda numa série de pensões baratas e quartos alugados de más condições. Os lucros que fazia com as colaborações esporádicas na imprensa brasileira e por vezes portuguesa quase não davam para as despesas. Muitas vezes obrigado a recorrer a lojas de penhores para pagar contas, Botto parecia fazer de tudo para esconder a pobreza que tomava conta da sua vida, dando até a entender o contrário.
Na edição de 17 de novembro de 1951, a rubrica “O Fôro Íntimo” do jornal carioca Última Hora, assinada por um tal Florian, relatava como Botto se tinha instalado no melhor quarto da Pensão Internacional de São Paulo e feito todo o tipo de exigências: “Como a pintura do cômodo lhe perturbasse a inspiração, fez com que o proprietário a mudasse, dando ao ambiente uma cor mais agradável à sua fantasia. Um rol imenso de testemunhas corroborou”. O “temperamental companheiro das musas” dizia “ter em preparo importantes obras encomendadas ‘por altas personalidades políticas’” que de pouco lhe valeram na hora de fazer as contas: Botto saiu da Internacional sem pagar.
Como lembrou Maria da Conceição Fernandes na sua biografia do poeta, António Botto não podia “suportar as despesas com o aluguer de quartos em hotéis de certo luxo, mas a sua tendência megalómana para uma forma de vida elegante e de requinte estava de harmonia, consideraria ele, com a sua personalidade de artista esteta”.
Com o passar do tempo, as dificuldades foram-se tornando maiores. Disso são testemunhas as cartas que o poeta enviava aos poucos amigos que ainda lhe restavam do outro lado do Atlântico e que davam conta de uma quebra nos rendimentos. Com a desilusão e desespero a tomarem conta de si, em 1954, Botto decidiu pedir a repatriação. Tal como aconteceu antes da sua partida para o Brasil, tentou angariar apoios, mas o pedido para voltar a Portugal foi-lhe negado. Sem outros meios, virou-se para a escrita e, antes de morrer, publicou ainda Fátima — Poema do Mundo, produto de uma “profunda crise de religiosidade” (como lhe chamou Eduardo Pitta), uma coletânea de teatro e ainda uma nova edição aumentada de Canções. A sua escrita, no entanto, já não era o que era. A sobrevivência fazia-se graças ao apoio dos poucos amigos brasileiros.
Nos dias que antecederam a sua morte, os jornais cariocas apontaram a solidão e pobreza de António Botto, que parecia ter poucas amizades no Brasil. A sua vida “estava confinada a um círculo restrito de amizades e relações e a recordações dos tempos idos”, escreveu o Última Hora. O jornalista e escritor Peregrino Júnior descreveu-o até como um “homem de poucos amigos”, cujos conhecimentos no meio intelectual nem sequer conseguia dizer de cor. Ainda que muitos tivessem louvado a sua poesia depois da sua morte, eram poucos aqueles que realmente a admiravam, como Ribeiro Couto, Carlos Drummond de Andrade, Erico Veríssimo e Manuel Bandeira, nomes apontados por Maria da Conceição Fernandes em António Botto — Um Poeta de Lisboa.
Também o Última Hora deu conta, entre elogios rasgados de uns, da incompreensão de outros. Herbet Móses, presidente da Associação Brasileira de Imprensa, conheceu Botto quando este chegou ao Brasil e garantiu que o poeta tinha chegado “aureolado de glórias”. “Esse conceito foi confirmado através do tempo que ficou aqui. É, indubitavelmente, um dos grandes escritores de nossa língua. as suas poesias podem ser consideradas como as melhores escritas em português”, afirmou. Tomás Ribeiro Colaço, embora admitindo que tinha uma certa admiração por Botto, tinha uma opinião contrária: “A sua poesia era incompreensível e estranha”. Ribeiro Colaço, que morava então no Rio de Janeiro e que conhecia o poeta dos tempos de Lisboa, esteve envolvido numa acesa discussão com José Régio nas páginas da Fradique, que dirigia, por ocasião da publicação de Ciúme, em 1934.
“O facto é que, do outro lado do Atlântico, Botto caiu numa espécie de buraco negro. O natural desenraizamento, uma incompreensível sucessão de decisões editoriais de natureza arbitrária, a rápida progressão da doença, a crise de fé dos anos 1950, toda a sorte de dificuldades de ordem pessoal, foram fatores que aceleraram o fim”, escreveu Eduardo Pitta na introdução à edição de 2008 de Canções. O poeta Augusto Frederico Schmidt garantiu ao Última Hora que “ele levava uma existência dramática”.
Em 1956, António Botto adoeceu gravemente, sendo obrigado a hospitalizar-se. De acordo com as cartas que lhe foram enviadas por Carlos Drummond de Andrade, o poeta terá permanecido internado no Hospital da Santa Casa do Rio de Janeiro, enfermaria 14, quarto 18, de janeiro a maio desse ano. A doença permanece até hoje um mistério. Muitos autores, como Eduardo Pitta, dão como certo que o poeta sofria da sífilis mas, segundo a investigadora Anna Klobucka, não existe nenhum documento que sustente essa afirmação. Numa entrevista concedida ao Diário Carioca depois da sua morte, D. Carminda revelou que o motivo do internamento teria sido um “tumor no cérebro” que o deixou surdo.
Apesar da deterioração física e mental de Botto causada pela “velha doença descuidada”, como lhe chamou Augusto Ferreira Gomes, não foi esta a causadora da sua morte. O poeta, quase surdo, foi atropelado na noite de 4 de março de 1959 por uma viatura oficial enquanto atravessava a Avenida Nossa Senhora de Copacabana, no Rio de Janeiro, a caminho de casa. Sofreu uma fratura craniana e teve de ser levado de urgência para o hospital. Nunca mais voltou ao apartamento na Rua Princesa Isabel.
Entre a vida e a morte
O atropelamento de António Botto fez notícia nos jornais cariocas. Foram várias as publicações que, a 6 de março, relataram como o poeta, um dos “maiores da lírica portuguesa de todos os tempos”, tinha sido transportado “entre a vida e a morte” do posto de assistência do Lido, onde tinha recebido os primeiros socorros, para o Hospital Miguel Couto onde, na manhã de 5 de março, Dona Carminda o foi encontrar já sem fala.
Assim que amanheceu, Carminda, que não tinha notícias do companheiro desde o dia anterior, pediu a alguns amigos que a ajudassem a contactar esquadras e hospitais. Foi assim que soube que, durante a madrugada, tinha dado entrada no Miguel Couto “um desconhecido de 60 anos presumíveis e meio calvo, atropelado em Copacabana”. A mulher deslocou-se rapidamente ao estabelecimento de saúde, onde reconheceu Botto na enfermaria. “Tomada de forte crise de nervos não conseguiu falar-lhe”, relatou o Diário Carioca. “O poeta, todavia, nem sequer reconheceu a mulher.”
Inicialmente hospitalizado numa “enfermaria de indigentes”, Botto foi no mesmo dia transferido para um quarto particular do mesmo hospital, onde mereceu “todos os cuidados” da equipa médica, graças à intervenção do Diário Carioca, jornal onde colaborou “durante algum tempo”, que entrou em contacto com o secretário de Saúde. Além de Guilherme Romano, foram também informados do estado de saúde do poeta o cônsul português no Rio de Janeiro e o presidente da Associação Brasileira de Imprensa, Herbet Móses, “uma vez que o acidentado” era “colaborador permanente de jornais brasileiros”, como lembrou a mesma publicação. Foi também solicitada a colaboração da União dos Escritores Brasileiros.
O jornal do Rio de Janeiro lembrou que António Botto, que tinha “prestado com a sua arte à língua e literatura lusa-brasileira” uma grande “contribuição”, estava “há vários anos enfermo e sem recursos”. “O seu estado de saúde o impedia de acompanhar a circulação da sua obra. A sua vinda para o Brasil, onde reside há mais de dez anos, decorreu de sua incompatibilidade com o atual regime político instalado em sua terra. Seu estado psíquico, por outro lado, contribuiu para torná-lo incompreendido até mesmo dos intelectuais seus compatriotas, que não se preocuparam com a sua sorte.” Não existem, contudo, indícios de que Botto tivesse fugido da ditadura, que naquela altura enchia várias páginas de jornal no Brasil.
O Diário Carioca terminava dizendo que, “até às 23 horas de ontem”, o estado de António Botto (cujo apelido se escrevia então com um só “t” por decisão do próprio) não tinha sofrido alterações. Numa outra notícia publicada mesmo dia, 6 de março, o Última Hora afastou até qualquer perigo de vida, explicando que, apesar da “idade avançada e da natureza dos ferimentos que recebeu (fratura do crânio)”, Botto, que tinha 61 anos, passava “bem”. “Ao que tudo indica em breve estará recuperado”, escreveu a publicação.
O poeta terá piorado durante a noite. No dia seguinte, os jornais apontaram como “gravíssimo” o seu estado de saúde. Botto, que entretanto se encontrava na enfermaria Paulo Cesar do Hospital Geral Souza Aguiar, que disponha de melhores condições, foi transferido durante a noite de 5 de março numa ambulância alugada pelo diretor do estabelecimento hospitalar, o dr. João Soares da Silveira, que pagou a dispensa do seu próprio bolso, segundo relatou o Última Hora.
A 9 de março, o jornal deu como certo que o poeta não sobreviveria aos ferimentos causados por um carro que pertenceria ao Ministério da Marinha: “Seu organismo idoso já não reage aos medicamentos que lhe são ministrados”, afirmava o Última Hora num artigo intitulado “Antônio Bôto entre a vida e a morte”, lembrando que, no dia anterior, amigos e familiares o tinham tentado levar para a Beneficiência Portuguesa, que se tinha mostrado disponível para o receber. Os médicos do Souza Aguiar afastaram de imediato a hipótese devido ao seu estado de grande gravidade. “Antônio Bôto encontra-se em estado de coma na Sala de Recuperação, aguardando-se a qualquer momento o desenlace que fatalmente sobrevirá, caso o seu estado não apresente melhoras, com o cerrado tratamento a que está sendo submetido.” As visitas foram proibidas.
Dona Carminda permanecia ao seu lado dia e noite e, a 10 de março, o companheiro ter-lhe-á mesmo dirigindo algumas palavras que não se conseguiram entender. Enquanto velava o doente, Carminda ia abrindo as dezenas de cartas que dizia que lhe iam chegando às mãos indagando sobre o estado de saúde do companheiro. Os telegramas e telefonemas também era muitos, feitos para o hospital ou para sua casa, segundo contou ao Última Hora. Vinham sobretudo de Portugal e de Inglaterra, país onde Botto dizia ter passado a infância e juventude, embora não fosse verdade. Dona Carminda parecia ter apanhado a mania das mentiras do companheiro.
Morreu António Botto. “Morreu o poeta!”
António Botto, o poeta maldito que desassossegou Lisboa nos anos 20, morreu a 16 de março de 1959, pelas 17h50, na enfermaria do Hospital Souza Aguiar, sem ter chegado a acordar do estado de coma em que entrou depois do atropelamento. Dona Carminda, que viveu com ele durante 32 anos, estava ao seu lado no momento da morte. Limitou-se a exclamar: “Morreu o poeta!”. Os jornais lembraram o grande vulto das letras portuguesas, que tinha morrido “sem dinheiro e sem amigos”. Com o seu desaparecimento, perdeu-se “um dos seus maiores poetas”, declarou o Diário Carioca. A notícia também chegou a Portugal.
O funeral realizou-se no dia seguinte, ao final da tarde. O corpo do poeta foi transportado da capela da Beneficência Portuguesa, onde esteve em câmara ardente, para o Cemitério de São João Baptista, onde foi sepultado no túmulo n.º 771, secção H, quadra 22. A cerimónia foi acompanhada por um pequeno grupo de pessoas, onde se incluía o poeta Carlos Drummond de Andrade, o pintor Jorge Maltieira, o major Múcio Scevola Scorzelli, em representação do presidente brasileiro, e o vice-cônsul português. Dona Carminda, chorando, garantiu que visitaria a campa do companheiro todos os dias até ao fim da sua vida: “Virei aqui, todos os dias, trazer-te as flores de que tanto gostavas, até que possa te acompanhar na vida eterna”, disse, pedindo a Botto que não a deixasse sozinha, que a viesse buscar. Ela sabia que não era possível voltar atrás no tempo, à altura em que o conheceu “tão cheio de vida, tão sonhador, dizendo versos que só ele sabia compor”. Enquanto Carminda lamentava a sua sorte, o coveiro atirava as últimas pás de terra para cima do caixão.
Astério de Campos, que representou o Instituto da Educação, fez o elogio fúnebre. “A maior reverência que se pode fazer a um poeta é cultuar-lhe a memória”, começou por dizer o professor. “Morreu um homem, mas o poeta fica para a glória de todos os lugares onde se fale a língua portuguesa. Antônio Bôto não está pois apenas neste cemitério. Ao seu lado se encontram nomes célebres como [os poetas] Olavo Bilac e Olegário Mariano. Aqui já esteve Ruy Barbosa. A um poeta não se diz nunca adeus, pois quando a saudade aperta, abrimos os seus livros e neles o reencontramos.”
Admirado pelos maiores, esquecido pelo resto
Depois da morte de António Botto, Dona Carminda, “profundamente abatida” e sem conseguir “articular uma palavra”, terá sido internada. Foi isso que noticiou o Última Hora a 17 de março, o mesmo dia em que a mesma Carminda deu a primeira entrevista na qualidade de viúva do poeta português. Nas declarações que prestou ao Diário Carioca em sua casa, a mulher, que pela primeira vez recebia a atenção da imprensa, não poupou críticas, acusando aqueles que haviam desprezado o companheiro, que em tempos conviveu com os maiores escritores europeus, de terem provocado a sua morte.
“Antônio Bôto faleceu em virtude de ter sido abandonado pelos seus velhos amigos portugueses aqui residentes. Ultimamente levantaram uma campanha de silêncio contra sua obra poética. Tudo isso e mais as dificuldades financeiras, transformaram os últimos dias do meu marido”, declarou Carminda. Questionada pelo jornalista do Diário Carioca sobre o porquê de ter exclamado no hospital que tinha morrido o poeta e não o seu marido, a portuguesa explicou que tinha sentido “primeiro a perda que as letras luso-brasileiras estavam tendo”. “Depois é que pensei em mim. Sempre venerei meu esposo como o grande poeta que ele era.”
Durante a entrevista, Dona Carminda revelou que Botto deixou uma “mala cheia de originais” escritos durante os mais de dez anos que viveu no Brasil. Estes estavam maioritariamente por publicar, porque “os editores brasileiros se recusaram a publicá-los alegando ser ele autor vendável somente em Portugal”, e tinham sido organizados pelo poeta que, parecendo prever a sua própria morte, os tinha organizado antes de sair de casa naquele fatídico dia 4 de março.
O curioso nas declarações é que estas fazem eco das “ficções mirabolantes” do companheiro de Dona Carminda. Em vez de usar o espaço que lhe foi dado para falar de si, a portuguesa continuou a alimentar as histórias que António Botto contava de si próprio e que começaram a surgir logo nas primeiras notícias do seu atropelamento na imprensa brasileira. Quando o Diário Carioca escreveu que Botto, “cantor das coisas simples”, se alinhava “entre os maiores da lírica portuguesa de todos os tempos”, estava muito provavelmente a citar Dona Carminda, que terá também dito que “sua obra” era “mundialmente conhecida e na Inglaterra, sobretudo”, onde Botto gozava “da dedicação de um público fiel e carinhoso”, que o situava “no mesmo plano de T. S. Eliot e Fernando Pessoa”. O poeta teria até sido “hóspede oficial da rainha de Inglaterra” devido “à sua cultura e personalidade”, de acordo com o jornal carioca Correio da Manhã. Nada disto era verdade.
A viúva podia ter usado o espaço que lhe foi dado para dar algum protagonismo a si própria, mas não foi isso que fez. “Desta forma, embora se encontrasse simbolicamente excluída dos domínios da estética homoerótica (…) Carminda Rodrigues não apenas chegou a desempenhar o papel consagrado da viúva literária, amplificadora da fama (quer real quer imaginária) do marido escritor e guardiã do seu legado, mas participou também, pelo menos fugazmente, na (re)produção do caleidoscópio cosmopolita da vida inventada de Botto, vida esta em que ela própria não figurava de todo”, escreveu Anna Klobucka em O Mundo Gay de António Botto.
António Botto foi, ao longo dos anos, tentando reescrever a sua própria história (sobretudo os anos da infância pobre numa aldeia ribatejana, que começou a dizer ter passado em Inglaterra), criando uma “autobiografia imaginada”, como lhe chamou Klobucka, que abordou a questão no seu estudo sobre o poeta das Canções. Aquilo que contava sobre si nem sempre fazia sentido, mas Botto parecia não se preocupar — chegou a dizer que tinha conhecido Proust quando este já estava morto, o Duque de Windsor e Pirandello.Mas por que é que o fazia?
Ao contrário de Fernando Pessoa, Botto não deixou nenhuma reflexão sobre o seu “processo de auto-invenção” e, por isso, só é possível especular. Questionada sobre esta questão durante a entrevista concedida ao Observador no ano passado, Anna Klobucka começou por explicar que “Botto fazia uma coisa parecida” com a que fazia Pessoa, “mas apenas consigo próprio, com a sua própria pessoa”. “Mas pode-se certamente falar, a propósito de noções teóricas, da crítica cultural literária dos gays, lésbicas e queer, da auto-invenção dos sujeitos marginalizados, proscritos e oprimidos, que procuram auto-construir uma imagem aceitável, que não seja negativa como aquela que é imposta pela sociedade. Era esta a visão de Botto de si próprio, em que não era marginalizado ou alvo de agressões homofóbicas. Por exemplo, [o episódio inventado da] a Universidade de Salamanca. Ele contava que tinha ido a Salamanca e que tinha sido aplaudido de pé por um auditório cheio de professores conservadores. É completamente impensável.”
Existe também outra questão. A homossexualidade de Botto era publicamente conhecida e era, por conseguinte, “propriedade pública, de certa forma”. “Ele passou a ser propriedade pública. Toda a gente sabia quem ele era e toda a gente sabia que ele era homossexual. Para recuperar um pouco dessa autonomia de criação de si próprio, da imagem que queria deixar de si, inventava coisas. Mentia, obviamente, mas eram mentiras que obedeciam a um propósito, a uma lógica de auto-invenção favorável, positiva, de apresentação de uma figura, de uma personalidade que não era a do paneleiro ou maricas que toda a gente conhecia, mas a de uma pessoa com reputação internacional, admirada pelos escritores de renome.”
Um esquecimento que perdura
A morte de António Botto foi o último episódio triste de uma existência dolorosa marcada pela incompreensão que se prolongou até muito depois disso. Esquecido na vida, assim permaneceu na morte. Após o seu desaparecimento, foram poucos aqueles que tentaram colocá-lo no lugar que é lhe devido na história da literatura portuguesa. Jorge de Sena e Natália Correia foram as duas grandes exceções. “Numa época em que a censura estendia vigorosamente as suas malhas”, foram capazes de “defender a poesia bottiana” dos injustos ataques de que foi alvo nas décadas anteriores (e posteriores), como escreveu Maria da Conceição Fernandes, realçando a sua modernidade.
Depois de Sena e Correia, o silêncio permaneceu. Nos últimos 44 anos, fizeram-se apenas cinco edições da sua poesia. A mais recente é do ano passado e foi editada dez anos depois da última tentativa de se publicar em Portugal a obra poética completa de Botto. “Mas a obra [de Botto] inclui contos e teatro. Nada disso voltou aos prelos, quanto mais às livrarias”, lembrou Eduardo Pitta, responsável pelas últimas duas edições da poética bottiana, em entrevista ao Observador em agosto passado. Como é que é possível conhecer a obra de um poeta se esta não está disponível ao grande público?
A falta de bom trabalho crítico, ou de pelo menos trabalho crítico recente, é também um problema. O último grande estudo sobre o poeta, O Mundo Gay de António Botto, saiu também no ano passado. Esta é uma das razões pelas quais o colóquio que está a decorrer este fim de semana em Lisboa é tão importante, ainda que surja no âmbito da ligação de Botto com Pessoa — nunca se fez nada do género. Passados 60 anos da morte do poeta que não teve medo de assumir quem era, talvez esteja na altura de o resgatar do esquecimento.