É um acórdão raro, muito raro na Justiça portuguesa. Pela linguagem clara e pela síntese — são apenas cinco páginas. É evidente que o objeto do acórdão era uma simples reclamação de José Sócrates mas a decisão tomada esta quarta-feira pela 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) marca um virar de página surpreendente na tramitação dos autos da Operação Marquês.
O Observador já tinha questionado o Conselho Superior da Magistratura na última quinta-feira, dia 14 de novembro, sobre a aplicação do art. 670.º do Código de Processo Civil contra as manobras abusivas. E é precisamente essa norma que foi aplicado esta quarta-feira pela TRL.
As consequências são simples de explicar: futuros incidentes processuais manifestamente infundados serão decididos num processo à parte (com efeito devolutivo) e o despacho de pronúncia para julgamento de José Sócrates e mais 21 arguidos (17 individuais e quatro empresas) pela prática de 118 crimes vai baixar à primeira instância para ser executado.
Mas só após uma reclamação e um incidente de recusa que estão pendentes no Supremo Tribunal de Justiça terem sido resolvidos.
Dito de outra forma: há claramente uma luz ao fundo do túnel para que o julgamento de José Sócrates e dos restantes arguidos se inicie, finalmente, ao fim de 10 meses após a ordem da Relação de Lisboa. E ao fim de 10 anos após a detenção de Sócrates no Aeroporto da Portela.
Qual é a decisão? Uma reclamação sobre outra reclamação que já tinha sido rejeitada
O estado verdadeiramente único que atingiram os autos da Operação Marquês, devido aos perto de 40 recursos e incidentes processuais de José Sócrates, pode-se tentar explicar de inúmeras maneiras. Uma delas é tentar explicar o objeto da decisão pela Relação de Lisboa esta quarta-feira. Um recurso, uma reclamação, uma nulidade ou uma aclaração? Nada tão simples.
Vamos começar pelo princípio do que está em causa nesta decisão de 20 de novembro de 2024.
Após as desembargadoras Raquel Lima, Madalena Caldeira e Micaela Rodrigues (da 9.ª Secção da Relação de Lisboa) terem decidido a 25 de janeiro de 2024 pronunciar para julgamento José Sócrates e mais 21 arguidos pela prática de 118 crimes, as mesmas magistradas tomaram apenas mais uma decisão a 2 de maio: rejeitaram todas as nulidades apresentadas pelas defesas, como o Observador explicou aqui.
A partir daí, os autos passaram a ter como titular o desembargador Francisco Henriques. Porquê? Porque o coletivo da 9.ª Secção tinha sido desfeito por duas das titulares terem sido transferidas para outros tribunais
Após ter sido designado como relator dos autos da Operação Marquês, o desembargador Francisco Henriques tomou as seguintes decisões relevantes a 24 de junho:
- Admitiu todos os recursos de inconstitucionalidade sobre a decisão de 25 de janeiro das suas colegas Raquel Lima, Madalena Caldeira e Micaela Rodrigues, com efeito devolutivo. Ou seja, não param a marcha do processo;
- Rejeitou um requerimento de José Sócrates, datado de 29 de maio de 2024, em que foi suscitada uma nulidade, tendo o ex-primeiro-ministro solicitado à Relação de Lisboa que mandasse baixar os autos à primeira instância ou proceder a nova distribuição do processo dentro daquele tribunal superior. E porquê? Porque Sócrates alega há meses que as desembargadoras Raquel Lima e Madalena Caldeira não podiam tomar aquela decisão porque pertenciam aos quadros da Relação do Porto e de Guimarães desde 1 de setembro de 2023 — argumento que sempre foi rejeitado pelo Conselho Superior da Magistratura pois as desembargadoras só poderiam sair da Relação de Lisboa após terem decidido o recurso da Operação Marquês que lhes tinha sido distribuído antes de se candidatarem ao movimento.
A defesa do ex-primeiro-ministro não parou e apresentou uma reclamação para a conferência da 3.ª Secção da Relação de Lisboa dessa rejeição da nulidade decidida pelo desembargador Francisco Henrique. Ora, tal reclamação veio a ser rejeitada em conferência por acórdão de 9 de outubro.
E é sobre essa primeira reclamação rejeitada sobre uma alegada nulidade de uma decisão do mesmo juiz datada de 24 de junho — que também tinha sido rejeitada — que Sócrates apresenta uma nova reclamação para a conferência.
Sócrates “está a protelar de forma manifestamente ostensiva a submissão a julgado”
É depois disto que surgem as referidas cinco páginas que condenamos inúmeros recursos e incidentes processuais de José Sócrates na Operação Marquês — e que estarão a aproximar-se dos 40 no total.
Os desembargadores acusam José Sócrates de se encontrar a “protelar de forma manifestamente abusiva e ostensiva o trânsito do despacho de pronúncia e, consequentemente, a sua submissão a julgado”. “Os tribunais não podem aceitar a adoção de tal comportamento processual”, lê-se no acórdão subscrito pelos desembargadores Francisco Henriques (relator), Margarida Ramos de Almeida e Adelina Barradas Oliveira.
Neste acórdão aprovado por unanimidade pela 3.ª Secção da Relação de Lisboa, censura-se Sócrates por estar ter um “comportamento doloso”, por “atos manifestamente dilatórios” e “uso manifestamente reprovável” e “abusivo” dos direitos e garantias de defesa inscritas na lei.
“Não é legalmente admissível a apresentação de sucessivas reclamações. Este tem sido o comportamento processual do reclamante/recorrente [José Sócrates], pois apresenta sucessivas reclamações para a conferência, contra os despachos do relator e acórdãos“, lê-se no acórdão.
Abuso esse, enfatize-se, que tem como justificação, no entendimento dos desembargadores, o facto de Sócrates querer “retardar artificialmente o trânsito em julgado da decisão” de 25 de janeiro que o pronuciou para julgamento.
A aplicação do artigo 670.º do Código de Processo Civil contra as manobras dilatórias
É neste contexto de litigância super-intensa de José Sócrates que a 3.ª Secção da Relação de Lisboa decidiu aplicar o artigo 670.º do Código de Processo Civil contra as manobras dilatórias e quer forçar o início do julgamento o ex-primeiro-ministro e dos restantes arguidos da Operação Marquês.
“Existe um momento processual em que o direito de discordar das decisões jurisdicionais não é mais admissível. Para além desse momento, a discordância deixa de constituir o exercício de direitos de defesa e passa a constituir um exercício ilegítimo desse direito”, lê-se no acórdão da Relação de Lisboa.
O relator Francisco Henriques faz questão de citar um acórdão de 2005 da Relação de Lisboa, subscrito pelo então desembargador (hoje conselheiro) Mário Belo Morgado, no qual se pode ler que “não é processualmente admissível a transformação de um processo judicial, com decisão final, num interminável carrossel de requerimentos/decisões/recursos em que, sucessivamente, em todos os patamares de decisão judicial, são suscitadas, circularmente, sem qualquer fundamento real, sucessivas questões (…) até, enfim, à prescrição do procedimento criminal”. Depois desta citação, o relator da 3.ª Secção de TRL reafirma: “É legalmente inadmissível fazer do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável”.
Daí que a “reclamação” apresentada “constitui um acto manifestamente dilatório. Este comportamento não deriva de um desconhecimento ou errada interpretação das normas processuais penais mas constitui um comportamento doloso” e “visa, somente, retardar artificialmente o trânsito em julgado da decisão”, repete. “Os direitos de defesa do arguido integram-se no direito a um processo justo e imparcial. O comportamento processual do reclamante/recorrente não é justificável. A lei impõe ao arguido o dever de litigar de forma justa e equitativa. Assim, como de modo igual, cumpre-lhe aceitar que as decisões proferidas pelos tribunais se mostram de cumprimento obrigatório para todas as entidades públicas e privadas”, defende o relator Francisco Henriques, chegando, inclusivé, a invocar a Constituição.
“No caso presente, é manifesto que o acórdão proferido já há muito transitou em julgado, uma vez que já não admite qualquer forma de impugnação, seja porque meio for, quer por via do recurso, quer por via da reclamação”, conclui.
Daí que o tribunal irá recorrer ao mecanismo previsto no art. 670 do Código de Processo Civil que trata da “defesa contra as demoras abusivas”, lê-se no acórdão.
E quais as consequências dessa aplicação do 670.º do Processo Penal?
- Em primeiro lugar, “todos os requerimentos” que “se relacionem com questões já definitivamente decididas no âmbito do acórdão neste tribunal, das quais se pretenda interpor recurso/aclaração/reclamação/nulidade ou incidente afim, serão processados em separado, extraindo-se traslado”. Isto é, serão tratados em processo à parte, com efeito devolutivo, não parando a marcha do processo principal — que tem decisão de pronúncia para julgamento de José Sócrates e outros arguidos por 118 crimes.
- Para não deixar dúvidas, a 3.ª Secção da Relação de Lisboa decidiu que “o processo será remetido” ao Juízo Central Criminal de Lisboa “após a decisão das reclamações enviadas para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ)”.
Contudo, estão pendentes dois incidentes processuais no STJ. A saber:
- O primeiro incidente prende-se com uma reclamação apresentada a 11 de julho por José Paulo Pinto de Sousa, primo de Sócrates e igualmente arguido no caso Marquês. Está em causa precisamente a recusa do desembargador Francisco Henriques em admitir um recurso. José Sócrates apresentou idêntico requerimento mas o conselheiro Nuno Gonçalves, vice-presidente do STJ, já rejeitou a reclamação de Sócrates.
- Já um incidente de recusa do juiz Francisco Henriques interposto por José Sócrates também está pendente no STJ. O ex-primeiro-ministro entende que o magistrado não pode ser o titular dos autos por já ter participado no julgamento de Ricardo Salgado, sendo certo que condenou o ex-líder do BES a uma pena pesada de seis anos de prisão mas a pena acabou aumentada para oito anos pela Relação de Lisboa.
Só com a decisão final sobre esses dois incidentes processuais é que os autos vão baixar de forma definitiva à primeira instância para ser designado um coletivo de juízes que julgue o caso.