As doenças cardiovasculares são a principal causa de morte no mundo — só em Portugal, matam todos os anos cerca de 35 mil pessoas. Um facto que levou a cientista Susana Pereira a decidir agarrar esta área de investigação. A portuguesa faz parte de uma equipa internacional que agora desvendou alguns dos mistérios sobre o envelhecimento deste órgão, descobertas que acredita trazerem pistas para um dia poderem ser criadas novas e melhores técnicas de diagnóstico e terapias para a prevenção destas patologias.
“Há muito a ser melhorado na área da prevenção da doença cardíaca e é preciso trabalhar principalmente na medicina preventiva, antes de a doença se instalar“, defende a investigadora do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra. Para isso, acrescenta, é essencial compreender o envelhecimento natural do coração, que pode potenciar o surgimento destas doenças, mais prevalentes em idades avançadas.
Com este objetivo em mente, a equipa de investigadores, que inclui os portugueses Luís Grilo e Paulo Oliveira, também associados à Universidade de Coimbra, procurou identificar os mecanismos moleculares responsáveis pela relação entre o envelhecimento deste órgão central à vida e a disfunção cardíaca. Estudaram, por isso, um grupo de 35 babuínos, do Instituto de Investigação Biomédica do Texas, na cidade de San Antonio, pela proximidade que o coração destes animais tem com o humano. Os resultados foram publicados esta semana na revista Advanced Science.
Um retrato do envelhecimento do coração
Tudo começa com alterações metabólicas nas células cardíacas. “São mudanças no modo como o corpo transforma os alimentos em energia e como usa essa energia para realizar funções essenciais. Quando há uma alteração metabólica, esses processos não funcionam corretamente, o que pode levar a problemas de saúde”, enquadra Susana Pereira.
Estas alterações não são propriamente uma novidade. “Já sabemos que, com o envelhecimento, temos maior propensão para desenvolver diabetes, obesidade e outras doenças metabólicas. Mas apenas no coração observámos que há uma alteração metabólica, que é normalmente característica de doenças cardiovasculares”, explica Luís Grilo, autor principal do estudo, no qual participou no âmbito do seu doutoramento.
Deste processo nas células cardíacas resulta o aumento da glicose, que se acumula nas paredes do coração durante o envelhecimento. Numa fase inicial, esta acumulação provoca o enrijecimento das paredes deste órgão, o que faz com que seja necessário muito mais força para bombear o sangue até todo o corpo. Como consequência disso, numa segunda fase leva ao aumento da espessura das paredes do coração (hipertrofia cardíaca).
Estas duas consequências, dizem os autores do estudo, estão diretamente relacionadas com o aparecimento de doenças cardiovasculares, que exigem “cuidados específicos e continuados”, algo que representa “elevados custos para a pessoa e para os sistemas de saúde”. Segundo os dados mais recentes, na União Europeia, em 2021, estas doenças tiveram um custo económico de 282 mil milhões de euros.
Até agora a sequência destes eventos era desconhecida dos cientistas. “Uma das grandes novidades do nosso estudo é observarmos estas mudanças ao longo da idade e ver o que é que acontece primeiro“, refere Susana Pereira. “Normalmente, nos humanos, o que fazemos é seguir a função cardíaca, ver se a capacidade de contração do coração está comprometida ou não, se houve uma alteração da morfologia do coração. Agora sabemos que isso é um evento já quase final, daí ser importante ter identificado os eventos iniciais, para podermos prevenir e intervir mais cedo”, acrescenta.
Uma investigação pensada para conhecer o coração humano e evitar desigualdades
Estudar um coração não é fácil. Estudar a nível molecular e em detalhe corações humanos saudáveis é ainda mais desafiante, uma vez que as “oportunidades são raríssimas”, refere Susana Pereira. “Quando se recolhe uma amostra de um coração humano é porque a pessoa morreu ou teve um grande problema cardíaco e teve que fazer um transplante para o substituir”, lembra.
Como as “amostras de coração humano saudáveis são virtualmente impossíveis de obter”, os investigadores voltaram-se para uma espécie “muito próxima do ser humano e que partilha uma elevada percentagem genética”: os babuínos, animais com um ciclo de vida de cerca de 22 anos.
O investigador Luís Grilo explica que durante a investigação, que começou a ser pensada há mais de duas décadas, foi estudado um grupo de 35 babuínos saudáveis, com idades entre os 7 e 22 anos. Traduzindo para anos humanos, rondaria entre os 30 e 88 anos, um período longo que permite acompanhar o envelhecimento do coração e antever o desenvolvimento de eventuais problemas cardíacos.
Uma particularidade do estudo é que os 35 animais estudados eram todos fêmeas. A principal razão por trás desta decisão, aponta Susana Pereira, é a “grande lacuna [na ciência] sobre o conhecimento gerado entre animais do sexo feminino e masculino” e que também se estende aos testes com humanos.
“Até há poucos anos não havia essa sensibilidade de incluir igualmente mulheres”, diz, notando que isso se devia em parte à incerteza sobre o impacto do ciclo reprodutivo e a variação de hormonas nos resultados das investigações. Uma “falha que levanta vários problemas, já que um tratamento testado para um género pode não ser tão eficaz para o outro ou ter mais efeitos secundários”, salienta.
Há, no entanto, uma outra razão para o grupo ter sido apenas constituído por fêmeas. É que a equipa também está a investigar como é que os hábitos das mães durante a gravidez podem afetar os descendentes e programar para doenças cardiovasculares. O doutoramento da investigadora já tinha sido sobre um tema semelhante — como a má nutrição durante a gravidez potencia as doenças cardiovasculares nos descendentes — e abriu caminho à consolidação da parceria internacional, que, além do Instituto de Investigação Biomédica do Texas, envolve a Escola de Medicina da Universidade Wake Forest, a Universidade do Wyoming e a Universidade do Texas.
Os próximos passos de um longo caminho para prevenir doenças e agir atempadamente
Apesar de o grupo alvo deste estudo terem sido só fêmeas, a equipa vai agora estudar os efeitos nos machos e já iniciou a recolha de tecidos. “Queremos fazer essa comparação e ver se os mecanismos são os mesmos, se as idades em que ocorrem as alterações são as mesmas ou não para os animais do sexo masculino”, diz Susana Pereira. Mas há mais a fazer e os investigadores querem validar os seus resultados ao fazer um novo estudo com a mesma espécie, mas em indivíduos com doença cardíaca.
Os cientistas acreditam que estes e futuros estudos podem abrir caminho a novos e melhores diagnósticos das doenças cardiovasculares, que anualmente provocam mais de 17,9 milhões de mortes em todo o mundo, o que representa mais de 30% das mortes a nível global, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
“Os métodos de diagnósticos atuais baseiam-se numa série de fatores de risco, com análises sanguíneas para ver se esses fatores estão ou não presentes e normalmente são validados por exames de função cardíaca. Mas quando se deteta uma disfunção cardíaca já estamos num estado avançado da doença. Já tens que estar doente para ser detetado que estás doente“, refere Susana Pereira.
Desenvolver técnicas mais robustas é algo demorado, lembra Luís Grilo, mas os investigadores estão também já a tentar dar alguns passos iniciais neste caminho. Para isso, vão procurar encontrar pistas no sangue que apontem para as tais alterações metabólicas que se verificou serem a primeira etapa no envelhecimento do coração.
Além dos diagnósticos, a expectativa é ajudar a desenvolver novas terapias para a prevenção destas patologias. “Já há vários fármacos no mercado para os diferentes tipos de doenças cardiovasculares, mas há uma grande falta de terapias na fase do início da doença”, acrescenta Luís Grilo. A aposta, sublinha a equipa, dever ser a prevenção.