Conversar aqui no Observador sobre informação era uma ideia já com algum tempo — cheguei a falar nela ao Miguel Pinheiro antes do verão — mas o outono revelou-se afinal mais convidativo ao exercício. Tratava-se de ouvir quem hoje dirige a informação de três estações televisivas, tentando perceber como se abre todos os dias uma cada vez mais imprescindível janela para o mundo, e basta pensar apenas na guerra da Ucrânia para dar um eloquentíssimo exemplo dessa imprescindibilidade.
Tratava-se se sobretudo de pôr lado a lado ou em confronto — eles que decidissem — três “maestros” da informação que lidam com ela há anos, fizeram de tudo ou quase tudo no jornalismo e dirigem hoje esse polifónico, apaixonante e sempre propiciador de controvérsia universo das notícias: sentados à minha frente no estúdio do Observador, foi muito interessante seguir António José Teixeira da RTP, Nuno Santos da TVI e Ricardo Costa da SIC. Acompanhando o voo dos seus respectivos raciocínios, observando como pensam, registando onde se aproximam, desviam ou confluem, como vivem enfim no quotidiano o pão nosso de cada dia da informação. Concordaram mais do se imaginaria em quase tudo; eu, discordei deles mais do que teria antecipado. A ver, ler e ouvir absolutamente.
[Veja aqui a entrevista em vídeo]
Vocês já fizeram tudo — notícias, reportagens, entrevistas — e saíram-se tão bem que foram convidados a reger as orquestras de informação da RTP, da TVI e da SIC. São uma espécie de maestros informativos. Queria saber exatamente o que é que isto pressupõe e o que é que isto reclama? Ricardo, começo por si.
Ricardo Costa (RC): Começo já primeiro por um enquadramento ou uma correção. Hoje em dia, para quem está na nossa posição, a ideia de que fizemos tudo não é verdade. Porquê? Porque fizemos tudo nos padrões anteriores. Hoje, com a digitalização das redações, eu nunca trabalhei no terreno com os atuais meios com que trabalham a maior parte dos jornalistas. Isso não é necessariamente um problema, mas é uma limitação e sobretudo uma condicionante. Não estou a dizer isto por uma questão de falsa humildade. Estive sete anos no Expresso e, quando voltei à SIC em 2016…
Era outro mundo.
RC: Era outro mundo. O salto tecnológico que a redação tinha dado, como as outras redações deram, do ponto de vista de como é que se gere vídeo, toda a informação que chega a uma redação, como os jornalistas todos ou quase todos editam em computador, como todo o ecossistema funciona era radicalmente diferente. E nesse mundo eu nunca fiz tudo, nem de perto nem de longe, e isso é uma questão que às vezes…
Pode condicionar?
RC: Obviamente eu tento perceber como é que as coisas todas se fazem e isso não é difícil perceber. Mas é diferente perceber e fazer. Porque é que este ponto é importante? Porque há 40 ou 50 anos, ou mesmo há 30, era possível alguém ser convidado para ser diretor e ter feito tudo. Hoje isso é praticamente impossível porque o salto tecnológico que se deu nos últimos 15/20 anos é brutal.
Já lá vamos depois ao resto do que pressupunha também a minha pergunta. António José Teixeira, o facto de estar a dirigir uma estação televisiva leva-o a concordar com a pertinência do que acabou de dizer o Ricardo Costa?
António José Teixeira (AJT): Em geral sim. Quando olho para trás, o meu primeiro contacto com uma rádio foi numa rádio de onda média, com um emissor com umas válvulas que quando aqueciam muito corria mal. Só de imaginar que havia uns gravadores de cassetes e tínhamos um cabo e era preciso desmontar um telefone fixo para fazer a ligação com esse cabo ao telefone e poder transmitir algo que tínhamos gravado… E hoje estamos aqui no Observador e estamos num estúdio e numa redação onde se faz texto, online, rádio, vídeo… Tudo isto mudou muito, nós vivemos a ritmos diferentes. Eu trabalhei num vespertino, que é uma coisa que já na altura estava em decadência e veio a desaparecer, já não fazia sentido. Vimos nascer telemóveis, que não existiam antes… Do ponto de vista tecnológico, houve muitos saltos e isto continua a mudar muito. Hoje, a ideia permanente é de que há muitas coisas que conseguimos fazer de modo próprio, mas a maioria delas funcionam em equipa, em interdependência com muitos elos, às vezes muito complexos, não apenas pela tecnologia, mas pelas ligações que é preciso fazer entre várias especialidades que concorrem para fazer comunicação — e para fazer televisão, que é o meio que agora aqui nos traz. Estes saltos são enormes. O que há em comum, e que nos carateriza a todos é que continuamos a ser jornalistas e continuamos a ter critérios que se tornaram, porventura, mais difíceis, mais complexos, mas que no essencial não mudaram e nós continuamos a defendê-los. O bom jornalismo continua, com as ferramentas disponíveis, a ser uma necessidade e a ter padrões que não mudaram.
Nuno Santos, você dirige a CNN e a parte informativa da TVI. O que queria saber é, face àquilo que é a informação, qual é a diferença que lhe exige estar atento a uma estação que é noticiosa por definição e natureza, e a uma que é generalista? Há diferenças ou é secundário o meio em que se transmite a informação?
Nuno Santos (NS): Há uma diferença entre aquilo que nós pensamos, escolhemos e colocamos no ar ou na operação digital para o target do cabo, e aquilo que fazemos para a antena generalista. Claro que há muitos pontos coincidentes, mas um público e outro público são distintos. Em qualquer dos casos, talvez valha a pena dizer isto: enquanto, no meu caso, nós temos duas marcas — e fizemos esta escolha há cerca de um ano —, na essência nada distingue muito o meu trabalho do trabalho do António ou do Ricardo. Temos uma redação central, que depois tem que produzir, escolher e distribuir para as suas diferentes plataformas.
Por isso é que eu fazia essa pergunta. Como é que se produz e quem distingue e separa?
NS: Concordando que de facto a mutação tecnológica introduziu uma grande diferença entre a maneira como trabalhamos hoje e a maneira como trabalhávamos quando qualquer um dos três chegou às redações, há coisas que felizmente não mudaram. É preciso hierarquizar as notícias, pensar quais são aquelas que têm — eu vou dizer uma série de coisas que, sendo óbvias, é bom dizê-las — quais são aquelas que merecem acompanhamento em direto, quais são as que merecem tratamento mais distanciado, analítico… A maneira como hoje em dia os próprios noticiários das 8 da noite são pensados é um pouco diferente de como eram pensados há 10 ou há 20 anos. Porquê? Porque às 8 da noite, quando as pessoas ligam a televisão, muitos de nós já tivemos contacto com as notícias do dia. E por isso é que os noticiários das 20h ganharam também um lado de maior aprofundamento, de maior análise, de maior enquadramento.
Em função daquilo que o Nuno disse, que exato papel é que o Ricardo tem como diretor da estação no agendamento do dia? Tem total porque é você que decide? Tem parcial porque delega?
RC: Tenho pouco.
Tem em quê? Tem no telejornal, por exemplo?
RC: Tenho aqui três tipos de condicionantes. Uma puramente funcional, porque numa redação grande que tem estas várias frentes — seja a frente de televisão generalista, que continua a ser uma força muito centrípeta numa redação, porque puxa muitos meios, muitas pessoas, muito tempo, muito trabalho mais editado; que tem um canal de notícias já com 21 anos, mas que continua obviamente a ter uma exigência brutal e que até aumentou por via da concorrência, sobretudo da CNN, que apareceu há 1 ano e obviamente alterou bastante o ecossistema de informação em Portugal; e por via digital — era só o que faltava que fosse eu a decidir o que é ou não é feito. Isso não faz sentido nenhum, porque é completamente impossível.
O verbo talvez seja mal escolhido. Não é “decidir”, é ter a palavra condutora se quiser. Por isso escolhi o termo maestro, porque com certeza que você tem instrumentistas e solistas, e um coro que é a redação.
RC: Não sei se a expressão “maestro” é correta. Há dias em que a minha intervenção até é mínima, e quando digo isto não é porque fico com os pés em cima da mesa a descansar, embora ate me pudesse dar jeito de vez em quando — é porque as cosias estão a correr bem. Eu costumo dizer “manda quem está”, gosto muito de dizer essa expressão na redação, porque há editores, há coordenadores, há jornalistas, e as coisas fluem normalmente. Depois, obviamente, há situações em que tenho de intervir. Esta, se quisermos, é a primeira condicionante, e é uma boa condicionante — uma redação é uma estrutura que tem várias pessoas a pensar os diferentes outputs: a televisão generalista, a televisão de cabo, o digital, as pessoas que estão a pensar grandes reportagens para daqui a três ou quatro meses, e por aí fora. Além disso, eu trabalho numa direção que é colegial. Somos cinco pessoas e, nessa direção, há pessoas que tratam mais desta ou daquela área — falamos todos uns com os outros, mas há bastante autonomia. Por isso é que há muita coisa que está a ser feita que eu não sei, e faz todo o sentido que não saiba, sendo que há coisas importantes que devo saber. Há uma outra condicionante que é a de, quer se queira quer não, estas funções terem uma componente de gestão, que tem a ver com contas, com resultados do ponto de vista financeiro e orçamental. E isto é importante, não há nada a fazer. E também é importante porque eu acredito e partilho da ideia do meu patrão, que conheço bem, e que é a de que é muito difícil haver independência jornalística sem haver independência económica. Não estou a dizer que não haja um ano ou dois em que uma empresa possa ter resultados negativos e não consiga ser independente.
Sim, mas a premissa é muito verdadeira.
RC: É. E eu, já estando nisto há muitos anos, acho que, a longo prazo, para órgãos de comunicação social que se mantêm e são, apesar de tudo, perenes na sua qualidade de entrega — não aqueles que de repente, já apareceram muitos, fazem grandes fogachos durante um período e depois, ao fim de três anos, já ninguém percebe o que é que cá estão a fazer — é quase impossível conseguir fazê-lo sem independência económica. A terceira é completamente pessoal: hoje em dia, por razões pessoais e familiares, estou muito afastado do dia-a-dia, sobretudo de tudo o que tenha a ver com política, estou mesmo cada vez mais afastado.
Então aqui tenho que fazer uma pergunta, que aliás envolve um certo reconhecimento que penso que é geral, da delicadeza que possa por vezes surgir no ato da sua profissão, que é ser irmão do primeiro-ministro, que está permanentemente nos ecrãs…
RC: Um bocadinho menos que o Presidente, mas quase tanto.
Exatamente, por acaso também estava a pensar nisso. Mas seja como for estamos a falar do primeiro-ministro, António Costa. Houve uma vez que eu me lembro que ele lhe telefonou a perguntar “Vês algum inconveniente, pode chocar com a tua profissão?”, nunca mais me esqueci disso.
RC: Isso foi há muito tempo…
Foi há muitos anos, e foi numa altura em que ele não chegou a avançar para a liderança do PS. O que interessa é esse gesto. Quando você diz “Estou afastado por razões familiares”…
RC: Afastado não, mas condicionado.
Sim. É uma condicionante?
RC: É.
Você entende que não deve estar num debate onde se discuta uma atitude ou um gesto…
RC: Não é só isso. Às vezes até em certas alturas em reuniões de editores há situações em que eu não me manifesto, ou até saio para não haver nenhum tipo de constrangimento — que não há, embora as pessoas que trabalham lá é que devem dizer isso, não eu. Portanto, há certas situações em que me afasto mais, afasto-me bastante.
Situações com as quais você convive aparentemente muito bem.
RC: Vou convivendo, como já disse, até ao dia. Não vale a pena fazer disso uma grande questão, tenho dito isto muito claramente — aliás já o disse aqui na Rádio Observador uma vez ao João Miguel Tavares, e disse-o no outro dia num podcast do Dr. Balsemão. No dia em que houver alguma coisa que prejudique brutalmente a imagem da redação da SIC ou a condicione, ou que seja uma situação insustentável do ponto de vista familiar, sou eu que deixo o que estou a fazer — não é o primeiro-ministro que vai deixar de ser primeiro ministro, parece-me evidente.
Como se faz o alinhamento de um telejornal
Está explicado que a palavra maestro talvez não fosse a mais apropriada, que a evolução tecnológica e informática introduziu uma diferença que é maior do que talvez os espectadores em casa se apercebam. Mas, apesar de tudo, o alinhamento de um telejornal é uma coisa que é importante. Que coordenadas devem, na sua opinião, reger o alinhamento de um telejornal?
AJT: Posso ainda pegar na questão anterior? Não me esquecerei dessa também. Na RTP tenho uma diversidade de entrega de informação por vários canais e plataformas. O Ricardo dizia isso em relação à SIC — e quando estive lá tive uma experiência equivalente —, e na RTP não é muito diferente: nós trabalhamos com equipas e trabalhamos numa base de confiança e de autonomia. Portanto quando falamos de um jornal ou de um programa informativo há responsabilidade e há também trabalho de equipa. Faço questão de participar o mais que posso em reuniões: a reunião do telejornal, ou a reunião do dia, ou a reunião da noite da RTP3… Sempre que posso participo, mas essas reuniões são conduzidas por quem coordena esses espaços. Obviamente que não abdico da minha intervenção e de contribuir para a discussão — como é que podemos tratar este assunto, o que é que ele implica ou não, alguma reflexão sobre o que fizemos e o que estamos a planear fazer. Sou jornalista e não abdico disso obviamente, trabalhamos todos e debatemos todos. Um alinhamento de um telejornal é um alinhamento que procura diversidade. Isto é, procura ser um retrato do dia, seja para um público que não teve muita informação ao longo do dia ou mesmo para um público que foi tendo as notícias principais mas que precisa de perceber melhor o que aconteceu. Ou porque damos contexto ou porque discutimos e analisamos.
Ou porque acrescentam.
AJT: Ou porque acrescentamos. Portanto, o jornal tem sobretudo essa preocupação de variedade. Não falhar as notícias importantes do dia, falar de economia, política, internacional, cultura, desporto — e gerirmos o melhor possível esse tempo. O telejornal, no caso da RTP, é mais pequeno, e portanto esse é um exercício muitas vezes difícil, mas que todos os dias assumimos e quem coordena o jornal assume todos os dias.
Nuno, o que é que vos faz de repente decidirem “Eu vou à antena”? De vez em quando vejo o Ricardo, vejo o António José e vejo-o a si. É o sentido de “Isto é mais grave, tem de ser o diretor”, ou “Isto é mais importante” ou “Isto pode mudar alguma coisa”? Ou é até genuinamente a saudade de continuar vivo no jornalismo?
NS: Talvez valha a pena distinguir aí dois planos. Para sermos rigorosos, quer o Ricardo quer o António têm uma longa (não me interpretem mal no termo escolhido) carreira e tarimba de analistas e comentadores políticos, que eu não tenho e nunca procurei. Não quer dizer que não tenha opinião — tenho e, aliás, bastante fundamentada — mas nunca fiz isso, e achei que não era agora, por termos lançado uma marca com a força da CNN, que começaria a aparecer a comentar o tema A ou o tema B. No meu caso, nas vezes em que decidi ir à antena nessa versão mais analítica, fui em assuntos que domino, sobre os quais tenho opinião e sobre os quais estudo bastante. Por exemplo agora quando houve esta crise mais recente no Reino Unido, em que cai a Liz Truss. É um tema que tenho acompanhado, que acho que domino bem, sobre o qual tenho bastante informação, e eram 13h30 ou 14h, e disse “Vou à antena, estou aí na primeira fila na próxima hora para ajudar”. Ou quando foi o caso de Angola, que é uma realidade que conheço bem também, no caso da morte do José Eduardo dos Santos e de tudo aquilo que se lhe seguiu. Acho que, do ponto de vista do espectador, as pessoas hoje procuram muito encontrar — e aí ainda vale a velha televisão, mesmo aquela que é emitida no cabo (isto é, a CNN a SIC Notícias a RTP3) — do outro lado alguém lhes descodifique ou acrescente alguma coisa em relação ao que já sabem ou que já viram. E também sou capaz de fazer aqui algum assentimento de culpa quando digo que, muitas vezes, temos talvez demasiadas pessoas na antena. Mas uma das vantagens que acho que temos em Portugal é essa capacidade de analisar e de descodificar a atualidade.
Ricardo, há por vezes um certo desagrado na plateia do país porque não há aquilo a que eu chamaria a “pedagogia da notícia”. Dá-se uma notícia e ela muitas vezes não é contextualizada ou preparada. Outra coisa que causa um certo mal-estar é ver — e aí não sei se da parte dos editores há uma reflexão no dia seguinte — por exemplo, quando há uma tragédia, repórteres a perguntar à mãe de uma criança que morreu: “Sofreu muito? O que é que sentiu?” Percebe o que quero dizer?
RC: Percebo completamente o que diz. A grande questão que existe hoje numa redação é relativamente simples de identificar mas complexa de trabalhar no dia a dia: é que, hoje em dia, são exigidos ritmos completamente diferentes. Veja os protestos dos miúdos que entraram no liceu Camões, na Faculdade de Letras ou na António Arroio. Muita gente criticou e disse: “Porque é que se está a cobrir isto?”. Acho sinceramente que aí há mesmo um problema de geração. A maior parte das pessoas que criticavam eram da minha geração para cima, e aí é mesmo uma falta de compreensão. Eu disse às pessoas: “Gostava de vos ver a editar jornais no tempo do maio de 68”. Também iam dizer que estavam ali uns cabeludos nas universidades, porque as coisas que eles diziam eram também razoavelmente absurdas e, aliás, inatingíveis — era isso que dava graça ao maio de 68.
Era tão inatingível que acabou como acabou.
RC: Isto para dizer que há ritmos diferentes. Há quem tenha de estar lá em direto a acompanhar o acontecimento e tenha que estar a dizer “A faculdade está ocupada, não há aulas…” Pode estar em permanência ou estar só de vez em quando, pode entrevistar pessoas. Depois, é natural que essa mesma pessoa ou outra esteja a fazer uma reportagem que vá para o ar às 6 da tarde ou às 8 da noite ou às 10 da noite. Atenção: o direto tem de ter enquadramento, mas esta reportagem tem de ser mais pausada e mais enquadrada.
E um bocadinho analítica.
RC: Uma reportagem não tem de ser necessariamente analítica. São coisas diferentes, e análise e opinião também são coisas diferentes. E depois pode haver, em televisão generalista ou em cabo, debates, entrevistas — e essas, sim, já têm de ser muito mais analíticas, muito mais contextualizadas, a explicar o que é que eles reclamam, até pode criticar o absurdo das coisas que reclamam porque misturam os combustíveis fósseis com as casas de banho transgénero e a expulsão de professores por assédio sem nenhum tipo de processo interno.
Mas nesse caso há uma palavra de um editor a chamar a atenção?
RC: Há e tem de haver. As situações mais complicadas não são estas. São situações de crimes.
Estou a pensar no público, não estou a pensar se é complicado para si.
RC: Dei este exemplo porque havia muita gente que dizia “Nós não devíamos fazer diretos disto”, e eu acho isso um absurdo. Há quem defenda isto, mesmo dentro da redação da SIC — e, atenção, eu acho a discussão interessante. Há quem diga que se estivermos a fazer diretos estamos a aumentar a repercussão.
AJT: São sempre os efeitos perversos que a nossa intervenção tem, mas não pode deixar de ter. Acho que a questão que a Maria João Avillez está a colocar é pertinente e muito questionadora do nosso trabalho.
E ainda vêm aí perguntas mais difíceis.
AJT: De acordo, e obviamente conversaremos. Acho que vivemos um tempo em que a instantaneidade da informação e o modo como ela circula coloca novos desafios ao jornalismo. Achamos que o jornalismo é mediação. O jornalismo é, obviamente, refletir distanciadamente sobre um acontecimento para contar a história da forma mais correta possível. E nós temos um duplo desafio que se coloca hoje. Poderíamos entregar o jornalismo dito rápido, que acompanha os acontecimentos em direto, e deixamos isso para as redes sociais, e o jornalismo só tratar de uma velocidade mais lenta depois de digerir os acontecimentos é que aparece — mas acho que aí o jornalismo se condenaria ao desaparecimento a prazo, mesmo podendo ser útil naquilo que vai ser mais digerido, mais refletido, mais contextualizado, mais analisado. Nós não podemos deixar de recusar a frente mais ágil de resposta aos acontecimentos. E esse terreno tem de ter profissionais que têm regras e que é suposto serem jornalistas. Isso comporta riscos, comporta problemas, nem sempre as coisas correm bem. O jornalismo é um ofício imperfeito. A ideia de que o jornalismo é algo de científico, no sentido em que o que dizemos hoje está acabado e não é mais questionável, não existe e nunca existiu. Se alguma coisa hoje é mais interpeladora, é ter a consciência de que precisamos de ter jornalistas preparados, questionadores, que saibam fazer perguntas, que saibam o que têm pela frente, para responderem melhor à complexidade do mundo de hoje. Isso aumenta a sua responsabilidade. O desafio do jornalismo (e das democracias) passa por aí, passa por exercer um papel de mediação sem recusar uma resposta ágil e rápida ao que está a acontecer, e sem recusar aquilo que também é a missão do jornalismo — digerir melhor os acontecimentos, refletir sobre eles, ter um olhar distanciado no tal jornalismo lento que também é preciso.
NS: Sem nos colocarmos em nenhum patamar de superioridade, temos uma obrigação e um dever, que é conhecer bem e estudar os públicos para os quais trabalhamos. Há ferramentas que nos permitem perceber para quem é que estamos a trabalhar em cada momento, e de que forma. Isso é um elemento que não podemos nunca desprezar nas escolhas que fazemos. Depois: eu rejeito logo quando me aparece alguém a dizer “Mas toda a gente acha que se deve fazer assim ou se deve fazer desta ou daquela maneira”. Digo sempre “Atenção que toda a gente é muita gente”. Nós fazemos, cada um dos canais, noticiários às oito da noite para 1 milhão de espetadores — ao contrário do que acontece com a ficção e o entretenimento, os três telejornais não têm hoje audiências muito diferentes do que tinham à meia dúzia de anos. Isto é, as pessoas procuram a informação. Três milhões de pessoas de audiência média às 8 da noite é muita gente. Isso deve fazer com que cada uma das pessoas que diz “Toda a gente considera que não se pode estar em direto na manifestação” ou “Toda a gente com quem eu falei” — atenção que toda a gente é muita gente. É evidente que, dizendo isto, também quero deixar claro que não podemos agir apenas naquilo que é “o gosto dos públicos”, mas temos de perceber qual é a demanda que os espectadores e os cidadãos esperam dos meios que procuram. A mim não me adianta nada ter um noticiário às 8 da noite que eu acho que tem umas notícias extraordinárias, mas que ninguém quer ver. É como aqui: se o Observador fizer um produto que ninguém procura e ninguém quer ler não terá independência financeira ou económica, nem será um meio influente, importante ou central da vida portuguesa.
RC: A Maria João já várias vezes fez a pergunta do ponto de vista do editor ou dos diretores. Nomeadamente na questão dos diretos, uma das informações mais importantes é a do jornalista no terreno. Muitas vezes a interpelação surge do próprio jornalista, e bem, que é quem está lá: liga e diz “Isto não vale nada, estão aqui 10 pessoas”. Há 70% ou 80% dos temas que são resolvidos assim, porque é assim que deve ser. Não há ninguém que saiba mais de um assunto do que quem está no terreno. Posso ter uma opinião sobre o que está a acontecer que é completamente diferente de quem está lá, e quem lá está liga e diz “Isto não faz sentido nenhum”, ou até diz “Mandem mais uma equipa porque isto é interessante”. Essa opinião não tem de ser soberana em tudo, mas é uma opinião muito pesada.
É um elemento indispensável de avaliação.
RC: A maior parte das últimas situações dessas, em que tivemos de ponderar não fazer uma coisa, saltar fora, 70% ou 80% foram por opinião de quem estava no terreno e isso é muito importante.
Como evitar os preconceitos
É ótimo que me fale de quem está no terreno. Vou dar um exemplo recentíssimo e que penso que terá ocorrido nas três estações que dirigem: as eleições de Bolsonaro e de Lula em que, mais uma vez, as sondagens se enganaram. Vou deixar aqui uma pergunta delicada: estou cada vez mais convicta, como jornalista e como cidadã, que as sondagens muitas vezes se enganam porque as pessoas não dizem a verdade a quem as interroga, porque há um condicionamento da media. Por exemplo, recentemente, puxando pelo Lula e “assassinando” Bolsonaro que, de facto, não vale a pena repetirmos aqui que é uma criatura que não podia ser Presidente, que ia dando cabo do Brasil, tudo isso. Mas estava a concorrer, e demorou muito tempo até que quem estava no terreno se apercebesse que havia meio Brasil, e os votos provaram, que estava com Bolsonaro. Isto aconteceu mais vezes noutras eleições, porque acredito que haja um condicionamento. Não estou a culpar os jornalistas: pode haver um condicionamento mental?
NS: Não…
Como é que explica o que aconteceu no Brasil, com o que nós ouvimos as televisões portuguesas contarem do que estava a acontecer?
NS: Quero dizer alguma coisa sobre o exemplo brasileiro e também sobre outros. Sou capaz de estar de acordo que o falhanço das sondagens em geral, não apenas no Brasil — não falemos de falhanço, falemos de desvio. Houve um desvio em eleições recentes, ainda agora nos EUA, em que entrámos para as eleições intercalares americanas a falar de uma onda vermelha e estamos prestes a acabar da maneira que se está a ver…
… com uma maré azul, sim.
NS: Olhemos para as eleições portuguesas, que foram há um ano, em que a questão da maioria absoluta se colocou, mas não parecia um cenário nada plausível. Olhemos para as eleições francesas… Enfim, há muitos casos. No caso concreto do Brasil, tenho como método dizer sempre às equipas que vão para o terreno que nós não podemos ser preconceituosos. Temos de ter capacidade critica, mas não quero equipas preconceituosas.
E acha que não tem? Estou a perguntar se acham, os três, que não há preconceitos.
NS: Acho que no Brasil que, apesar de tudo é um tema que nos diz bastante, porque há aqui uma grande comunidade brasileira, há uma ligação forte entre os dois países, mas não é um tema nosso, digamos assim, a situação era de tal maneira polarizada que nós tivemos de um lado e de outro…
Elementos de polarização.
NS: Certo, sim, que foram espelhados aqui pelas reportagens que foram mostradas na televisão portuguesa, pela TVI, pela RTP e pela SIC. Acho que isso foi bastante revelado e bastante demonstrado. Sigo muito a imprensa brasileira e acho que eles fizeram isso também. Quando dizia que houve um desvio, repare, o desvio nunca foi em relação ao resultado que o presidente eleito acabou por conseguir. Onde houve o voto escondido foi (e isso também não é exatamente novidade) em quem não disse que ia votar Bolsonaro, mas na verdade votou.
AJT: A Maria João lançou várias questões, e algumas delas davam um debate só.
Vocês têm de perceber que eu tenho de fazer de mediadora do que oiço – não estou a acusar as estações.
NS: As sondagens dão outro debate, outra conversa.
AJT: Davam um debate e, enfim, todos nós trabalhámos ao longo da nossa carreira com sondagens. Muitas vezes sinto-me no papel de grande defensor dos institutos de sondagens e das suas dificuldades, que são cada vez maiores. As sondagens demonstram tendências. Nós não podemos pedir às sondagens algo que elas não nos podem dar. Eles gostam de dizer sempre que são retratos, uma fotografia do momento em que se fazem, e é verdade. Demonstram tendências, e tendências cada vez mais difíceis de interpretar ou traduzir, porquê? Em parte, a Maria João na pergunta já dizia isso: as pessoas estão cada vez mais insondáveis, não se revelam, muitas vezes até dizem uma coisa e depois acabam por fazer outra.
Têm uma espécie de vergonha.
AJT: E também os momentos de campanha as vão fazendo variar, nomeadamente os indecisos. Há muitas explicações. Isto para dizer: as sondagens não antecipam resultados. Tirando as de boca de urna no próprio dia e com essas já é mais complicado que possam falhar rotundamente — e habitualmente não falham muito. Quanto aos acontecimentos e atos eleitorais, nomeadamente no Brasil, acho que todos tentámos estar de um lado e de outro, para perceber o que é que estava a acontecer. Falo pela experiência da RTP: colocamos equipas que todos os dias tinham a preocupação de nos dar o que é que se passava de um lado e de outro, e de serem equilibradas no sentido de olharem com olhos de ver, e mostrar o que cada um dos lados estava a fazer. Sabemos, nos Estados Unidos e noutras paragens que, obviamente, os eleitorados estão muito polarizados, de repente estão a perder um chão comum. Nos Estados Unidos, no Brasil e não só as coisas radicalizaram-se a um ponto em que são mais difíceis de trabalhar e de lidar até com a agressividade que os repórteres veem no terreno…
Não tem a noção de que houve um candidato privilegiado?
AJT: Já tive essa interpelação na RTP. Não me parece.
RC: Mesmo que houvesse um privilégio, a nossa influência nas eleições brasileiras é nula.
Não é disso que estou a falar. De repente há um jornalista que sente que faz parte de um exército…
RC: Mas espere, isto é um ponto importante, porque de repente parece que nós de alguma forma influenciamos — nós não influenciámos nenhuma eleição, nem no Brasil nem nos EUA. As que conseguimos “influenciar”, se quisermos, são as eleições portuguesas, e nenhum de nós influencia eleições portuguesas, isso está completamente comprovado. Podem ouvir pessoas mais excêntricas com alguma opinião, mas como se vê, nomeadamente nas últimas eleições, se há coisa para que as sondagens contribuíram de certa forma até foi para uma ideia de que o PSD podia ter uma votação bastante acima do que a que teve, e pouco mais do que isso. Depois há um segundo ponto. Neste caso do Brasil, estou bastante à vontade porque, exatamente por ter essa preocupação, quando começaram a sair as primeiras sondagens ainda na primeira volta e muitas davam a vitória do Lula à primeira volta, enviei um e-mail para a redação a dizer “Atenção, quando citarmos as sondagens da Folha, etc., mesmo dando o resultado — se o resultado dá que o Lula tem 52% temos de dizer que a sondagem dá 52% — convém dizer sempre que o cenário de segunda volta é um cenário altamente provável”. Enviei esse e-mail para a redação exatamente porque sempre achei que ia haver segunda volta, e era relativamente fácil intuir que havia uma segunda volta. Portanto estou muito à vontade nessa matéria. Em relação às sondagens, convém não generalizar. Ainda agora, em Itália, houve eleições há muito pouco tempo, e as sondagens acertaram em cheio. E estamos a falar de uma eleição de uma líder “pós-neo-fascista”, se quisermos — há várias maneiras de a caracterizar, tem feito um esforço, nomeadamente na política externa, para se demarcar muito de qualquer coisa que tivesse a ver com isso, porque ela é uma “atlantista” também — mas as sondagens acertaram em cheio. A sondagens na Alemanha acertaram em cheio. Em França, o erro nas sondagens que houve na primeira volta foi o de subestimar o eleitorado de Mélenchon, não houve mais nenhum.
Vocês não perceberam. Não é contra as sondagens, é sobre o comportamento do eleitorado pelo comportamento da media.
RC: Há uma discussão em Portugal que é muito condicionada por discussões que existem nos EUA, em Inglaterra, no Brasil etc., que tem a ver com dois temas que, em Portugal, existem felizmente pouco. Um é a cultura woke. Cá existe, felizmente muito pouco. Eu sei que, nomeadamente aqui no Observador, algumas pessoas escrevem e que acham que há naves de wokes em cima de nós. Acho que estão próximos do delírio. Há pessoas que acordam e quando abrem a caixa dos cereais sai de lá um wokista, depois quando abrem a porta há outro…
Digamos que eu estou a meio caminho entre esses que cita e você. Porque a cultura woke está a fazer um caminho.
RC: Se está a meio caminho, Maria João, é melhor acender as luzes da bicicleta porque isto ainda está muito longe de chegar cá nesta escala.
Mas não tenha dúvidas de que já cá está.
RC: Não está, Maria João. Não estou a dizer que as coisas não vão acontecer, estou a dizer é que convém termos os pés na terra. Eu, como a Maria João, lemos jornais internacionais. Nós importamos muitas ideias, e bem, isso é o que se chama ter cosmopolitismo e mundivisão. As maluqueiras que se passam nas universidades americanas, inglesas ou brasileiras, não tem comparação com o que se passa cá. Aliás, viu-se esta semana quando foi a história da invasão da Faculdade de Letras. Veja a carta do Miguel Tamen. Estamos a falar da Faculdade de Letras de Lisboa. Aquela carta não era possível de acontecer numa Faculdade de Letras em Inglaterra, nem nos Estados Unidos, nem no Brasil. Por isso é que digo que a paranóia do wokismo que existe em Portugal, que também existe em relação ao jornalismo engajado, é, desculpe dizer isto, porque se estou a falar em paranóia também estou a incluir a Maria João em certo grau…
… espero que não, porque de paranóica não tenho nada.
RC: Mas está demasiado preocupada com uma coisa que está a acontecer noutros países mas que cá ainda não está a acontecer nesse grau. Quando digo que é uma paranóia, é uma paranóia. E é igual no tema do jornalismo porque, se há natureza do jornalismo em Portugal (que também é uma crítica que pode ser feita), é o de não ser na sua maior parte fácil de identificar ideologicamente. Felizmente, em Portugal a esmagadora maioria dos órgãos de comunicação social não enfiaram a carapuça que enfiaram alguns jornais, que são muito bons nalgumas coisas, mas que são péssimos noutras, como por exemplo o New York Times ou a Folha de S. Paulo, para falar de dois excelentes jornais. Eu estive a cobrir as eleições americanas. Alguém que só leia o New York Times não percebe nada do que se está a passar no país. Aliás, na altura, com os colegas meus que lá estavam — entre os quais o Luís Costa Ribas, que entretanto passou aqui para a concorrência e que, quando ia ao meu quarto em Washington, dizia “Lá estás tu com a Fox News”. Quando estive nos EUA, lia o New York Times e via a Fox News, de manhã à noite. E ele dizia “És louco varrido”. Era a única maneira de perceber. Felizmente, vivo num país onde as coisas não são assim. Mesmo jornais como a Folha de S. Paulo, que é extraordinário em muita coisa, enfiou muito a carapuça. Atenção, Bolsonaro fez ataques vis — e vis é pouco — a alguns jornalistas, sobretudo a mulheres, de uma forma brutal, uma coisa vergonhosa em qualquer sítio do mundo, até abaixo do nível do Trump, coisas de cariz sexual etc., portanto percebo que a resposta do jornal tenha sido quase ao mesmo nível. Mas essa ideia de que em Portugal estamos perto disso não tem pés nem cabeça. Há uma série de pessoas que tem essa mania, há de facto aqui colunistas do Observador que vivem nesse mundo, que eu acho que é um mundo de aliens mas tudo bem, as pessoas podem viver no mundo dos aliens, não tem mal nenhum. Não estou a dizer que isso não possa acontecer em Portugal, estou a dizer que, em Portugal, os exemplos são mínimos e, repito, veja a carta do Miguel Tamen e diga-me em que Faculdade de Letras, de São Paulo, do Rio, de Washington, de Nova Iorque, da Califórnia ou de Inglaterra é que alguém escrevia aquilo.
Não há uma obsessão minha — do Observador não sei porque não falo pelo Observador, nem estou mandatada para falar por um órgão de comunicação social. O que estou a fazer é chamar a atenção para o facto de que ela já cá está.
RC: Mas, Maria João, já cá está tudo. E ainda bem. Está cá tudo no sentido em que felizmente o facto de estarmos na União Europeia, de haver internet…. Assim como está o melhor filme sul-coreano que ganha o festival de Veneza, também está a ideia mais maluca de uns tipos que resolvem estudar a história colonial de uma forma totalmente paranóica. Sim, também cá chegou. Agora, achar que os estudos do pós-colonialismo português estão ao nível dos americanos, não estão, felizmente. Felizmente, Portugal é um país moderado. E achar, para voltar ao nosso ponto, que o jornalismo português está neste momento com o nível de condicionante e de viés que tem algum jornalismo no Brasil, nos Estados Unidos ou em Inglaterra, não é verdade. Eu se ler o The Guardian quando há eleições inglesas não percebo nada, vou falhar totalmente no resultado.
Mas recusam que haja dois pesos e duas medidas? Vou já dar um exemplo recentíssimo…
RC: Eu digo já que sim, porque já imagino qual é a pergunta.
A pergunta é esta: recusam que haja um sentimento — não estou a falar se é no Observador, se é nos paranóicos, não divido o mundo assim — no país, e falo com muita gente e falo com a rua…
RC: Até fala com o Papa.
Exatamente. E olhe você até pode dirigir essa piada a muito poucas pessoas.
RC: Foi um à parte.
Bem, o que sinto é que há também um sentimento de dois pesos e duas medidas. Vou dar um exemplo que não é político, mas que de qualquer maneira é cultural e tem a ver connosco, Portugal. Houve o centenário da Agustina Bessa-Luís, que é uma escritora de indiscutível qualidade, até humana, de características totalmente invulgares, que passou relativamente despercebido…
NS: Maria João, não é verdade.
Só um momento. E agora veja a comparação com o José Saramago. Porque é que estou a dizer isto? Não é anticomunismo, é a noção de que há por detrás desse centenário um empenho mais organizado.
NS: Sobre a Agustina todos nós podemos falar, mas o António pode falar até um pouco melhor do que nós.
Com certeza que ela apareceu, e houve ações envolventes do centenário.
AJT: Deixe-me falar do caso geral. Da Agustina até era muito fácil para mim falar, fizemos um jornal especial feito em homenagem a Agustina Bessa-Luís, o Jornal da Tarde foi um jornal exemplar que fizemos e que foi percorrido de ponta a ponta durante mais de uma hora pela vida da Agustina. A Agustina merece-o, é um dos símbolos da cultura portuguesa — não é por ser conservadora ou por ser uma mulher de esquerda, nunca nos passou sequer pela cabeça. Do mesmo modo, quando olhamos para Saramago obviamente também lhe vamos dar atenção, todos nós nos nossos canais, a RTP incluída, porque ele tem a dimensão que tem, e não é por ser ou ter sido comunista.
Foi Nobel, com certeza.
AJT: Em Portugal, em relação àquilo que o Ricardo estava a dizer, se olharmos para a cultura portuguesa e para a posição que Portugal tem no mundo, até ao longo da história, somos um país de diálogo, de culturas que se cruzam, que se colocou em várias partes do mundo. Não é por acaso que tivemos um presidente da Comissão Europeia, não é por acaso que temos um Secretário-Geral da ONU. Nós temos a capacidade de olhar o mundo com algum equilíbrio e alguma moderação. E isso também se passa no jornalismo português. Tivemos alguns casos, e é normal que tenhamos — houve um jornal chamado Diário, como houve jornais à direita como o Diabo. Mas, até porque somos um país pequeno, o mercado também é pequeno, temos uma cultura jornalística de olhar com curiosidade para o mundo nas suas facetas e ter abertura para ouvir as pessoas e as várias sensibilidades. Lembro-me que estava na TSF quando foi o 11 de setembro e a certa altura recebi um comunicado de uma pessoa irritada porque alguém tinha estado na antena, não lhe agradou, e achou que a TSF estava a dar um ponto de vista. Não fazia nenhum sentido — a TSF, como outros órgãos de informação, estiveram no ar dias seguidos, não foram horas, foram dias, apenas com esse tema na antena. A nossa dificuldade era encontrar mais vozes: quem é que podemos ouvir mais de que não nos estejamos a lembrar? Dei-me ao trabalho de responder a esse ouvinte, colocando-lhe uma parcela da lista de pessoas que tínhamos ouvido. Ele depois teve a nobreza de me responder “Peço desculpa, só tinha ouvido ali”, portanto obviamente que nós ouvimos todas as cores, credos etc. que havia para ouvir. Acho que todos nós crescemos e fomos treinados na ideia de ouvir posições contrárias, às vezes até pensando que o jornalismo é apenas ouvir o contraditório, coisa que é muito limitadora. Mas, falo pela RTP, se há uma preocupação de diversidade e de pluralismo, nós temo-la em permanência. Portanto, acho que esse é um falso problema em Portugal.
Queria que isto ficasse claro. Vocês recusam aquilo que eu temo que ocorra no país, que é uma sensação face à media de uma forma geral de dois pesos e duas medidas? Recusam?
AJT: Absolutamente, absolutamente.
NS: Recuso.
RC: Recuso. Atenção, recuso em geral. Claro que pode encontrar um caso particular. Aliás só acho o caso da Agustina errado porque isso foi, de facto, um tema ali entre os anos 60 e os anos 80, em que havia toda a corrente, se quisermos, mais oficial da literatura portuguesa, que era muito condicionada pelo tema do neorrealismo. Estou muito à vontade porque o meu pai foi um escritor neorrealista muito ligado a um reconhecimento de certo tipo de escritores, e menos de outro tipo de escritores que não se encaixavam no cânone, que ia desde a Agustina até ao Jorge de Sena até ao Ruben A. Agora, sinceramente, nos últimos 20, 30 anos, ninguém discute a importância do Jorge de Sena, da Agustina, do Ruben Andersen Leitão ou de outros.
Isto não é um debate cultural, estava a falar do tratamento nos últimos dois meses de duas figuras grandes da literatura portuguesa que me pareceu desequilibrado, era só isto.
NS: Mas, Maria João, o olhar enviesado aqui é o seu, não é o nosso. Mas claro que há casos particulares, isso com certeza.
RC: Deixe só responder à questão geral. Há um tema que torna a comunicação social portuguesa um bocadinho singular na maior parte dos países, que é a de , em Portugal, a esmagadora maioria dos casos, nas últimas décadas, de órgãos de comunicação social que se colocaram de uma forma politicamente mais definida — que é completamente legítimo, não tem nenhum problema — não tiveram sucesso, ou tiveram sucessos conjunturais. E isso de facto é uma singularidade. A grande parte dos jornais, televisões e rádios que se mantiveram e que estão ativas foram os que se puseram numa posição mais neutral ou mais central em relação à atividade política. Isso é mesmo uma diferença, basta ir a Espanha e é completamente diferente. Uma pessoa sabe onde é que alinha o El País, o El Mundo, o ABC…
Em Portugal não há um Le Fígaro ou um ABC, por exemplo. Não se conseguiu fazer.
NS: Fez-se mas não se implantou.
RC: Fez-se e o mercado liquidou-os. Assim como o mercado liquidou o Diário, que era o jornal do PCP, de alguma forma liquidou também o Semanário, que era um projeto jornalístico bom, ou o Independente. Não estamos a falar de folhas de couve, estamos a falar de coisas importantes. Agora, há espaço? Claro que há, e não há nenhum problema. Vai ser sempre esse o panorama da comunicação social portuguesa? Não, não tem de ser. Mais: o facto de termos uma paisagem completamente digital vai permitir, na minha opinião, alguma fragmentação desse ponto de vista. E se calhar coisas que antigamente não tinham espaço passam a ter.
Como lidar com as audiências
Numa escala de 1 a 10, a guerra das audiências que existe, que é real, em que se duas estações estão a dar uma coisa a terceira tem de estar, é um dos mais delicados e complexos problemas com que lidar?
AJT: As audiências são importantes, também para a RTP, mas diria que a relevância do serviço público é obviamente algo que nos preocupa. Mas preocupa-nos qualificar, falo pela informação, o jornalismo que fazemos. As audiências hoje não podem ser lidas do mesmo modo que as líamos no passado. O consumo linear de televisão nas várias plataformas em que ela está disponível é hoje muito mais diverso e há dificuldade em medir consumos não-lineares. A nossa oferta hoje distribui-se por muitos fragmentos, muitas plataformas.
NS: As audiências são importantes, com certeza, agora não é esse o único elemento que norteia a nossa orientação. É um elemento obviamente importante, claro que sim.
RC: Vou-lhe responder de uma maneira menos agradável: não percebo a pergunta. Se abrir a porta e for à sala da redação do Observador, vai ver ecrãs com as audiências do Google Analytics, do Chartbeat, do CrowdTangle, todas em tempo real. Não há nada que se mova mais por audiências do que os órgãos de comunicação social que são puramente digitais.
O que a pergunta tinha implícita é: até que ponto é que um jornalista consciencioso e sério vai para não ficar para trás?
RC: A Maria João está a fazer a entrevista no Observador, onde as audiências são a coisa mais importante do mundo e são medidas em tempo real, coisa que na televisão não são, são com 24 horas de diferença. Nós usamo-las como análise, como condicionante e como métricas do nosso trabalho. E do seu trabalho.
E como pressão?
RC: A Maria João sentiu pressão de audiências para fazer esta entrevista?
Não, mas já senti no ar uma pressão para me despachar porque já estava o “caso do dia” numa estação concorrente.
RC: Mas quando acabar este trabalho e o publicar vão-lhe dizer se teve melhor audiência em texto ou se teve melhor audiência em vídeo. Vão conseguir saber quantas pessoas o viram, quantas pessoas ouviram, e quantas pessoas leram. É a primeira vez na vida que vai ter esse tipo de dados, coisa que não tinha quando trabalhou em televisão, em rádio…
Muito obrigada por essa informação tão detalhada sobre aquilo que me espera em vários ramos do meu trabalho. O que queria saber é, e reparei que vocês não concordam que por vezes é preciso gerir, ter jogo de cintura…
NS: Com certeza que é.
RC: Não, não, claro que é, o que estava a dizer é que não é um tema das televisões.
NS: Nem mais.
Mas eu estou a falar com televisões.
RC: Mas é que o tema não é das televisões. O tema “guerra das audiências” foi cunhado ali em 1992, quando a SIC nasceu. Todos os jornais escreviam — o Público, o Diário de Notícias, o Expresso — prosas sobre a guerra das audiências, e todos esses jornais hoje são os que estão na primeira linha da guerra das audiências. Há uma ironia.
AJT: Talvez estejamos todos de acordo, incluindo a Maria João, de que os públicos a que nos dirigimos obviamente são referências importantes no nosso trabalho, e que todos, mesmo aqueles que possam ser mais concorrentes e ter uma preocupação com resultados mais forte, nos preocupamos em fazer bom jornalismo, boa informação, porque acreditamos que boa informação faz o interesse do público e faz audiências.
Muito obrigado, António José Teixeira, Nuno Santos e Ricardo Costa. Houve uma coisa de que gostei imenso: é que tivessem discordado tanto de mim. Porque é vivo, porque é interessante, porque não é por causa disso que eu deixarei de trabalhar e de conviver com vocês.
NS: Não foi intencional.
RC: Eu nem sabia ao que vinha.
Mas estou muito convicta de algumas das coisas que aqui afirmei. Muito obrigado.
NS: Não se esqueça de perguntar quantas pessoas a leram, quantas pessoas a ouviram…
RC: E consegue saber o género e a idade. E as horas
AJT: Não só a ouviram e a leram, mas também a nós.
Serei generosa.