Uma espécie de aula de apresentação. Com menos de uma semana a vestir o fato de ministro das Finanças, Fernando Medina viajou até Luxemburgo para se reunir com os homólogos europeus, levando na bagagem uma missão bem definida à partida: apresentar-se como o novo protetor do rigor financeiro português, agarrar o legado de Mário Centeno e das suas “contas certas” e até dar a garantia de que Portugal não está preocupado com o regresso das metas orçamentais europeias – porque conta nem sequer se aproximar delas.
Segundo fontes que acompanharam a reunião do Eurogrupo – a primeira tarefa de Medina à chegada ao Luxemburgo, na segunda-feira, seguida de um encontro do Ecofin, na terça – foi essa a mensagem principal que o ministro se preocupou em passar aos colegas: Portugal não se desviará um milímetro da linha seguida nos últimos anos.
Primeiro, falou diante da “turma” de responsáveis pelas finanças europeias, em jeito de aula de apresentação: Medina apresentou-se com umas palavras breves para contar o seu currículo, frisar a experiência na Câmara Municipal de Lisboa e como secretário de Estado em dois Governos, e explicar as expectativas com que chega ao cargo.
Depois, a parte essencial: como dizia à chegada, aos jornalistas, Medina vinha preparado para deixar uma “mensagem de confiança” na “continuidade da política financeira do Estado português, tão bem desenvolvida ao longo dos últimos anos”, sempre com “a consolidação das contas públicas” — que tantas críticas dos parceiros da esquerda valeu ao Governo nos últimos anos — como prioridade.
Mesmo com uma guerra a rebentar na Ucrânia – e a provocar ondas de choque, sobretudo no aumento da inflação, dos preços dos combustíveis e de bens alimentares no resto da Europa e do mundo — a tripla de palavras-chave que a comitiva portuguesa estava interessada em passar ficava estabelecida: confiança, estabilidade, continuidade. Assim, Medina quis passar a ideia de que Portugal vai continuar a gerir com mão de ferro as contas públicas.
Dois dias de trabalho intenso com os parceiros europeus no #Eurogrupo para tornar mais efetivas as sanções à Rússia e mitigar o seu impacto nas famílias e empresas europeias. Foi também a oportunidade para reafirmar o compromisso português com uma política económica de rigor. pic.twitter.com/B4TwsPT0TP
— Finanças (@pt_financas) April 5, 2022
Guerra não muda nada: Portugal vai continuar a cumprir
Quando os jornalistas questionaram o recém-ministro sobre a hipótese de prolongar a suspensão das metas orçamentais europeias atendendo ao contexto de guerra e os impactos que já está a ter, Medina respondeu a duas velocidades: primeiro, lembrou que era “avisado” que se mantivesse um “entendimento flexível” sobre a questão; em segundo lugar, e mais importante, a garantia de que “Portugal cumpriu e vai continuar a cumprir” com as regras orçamentais.
De resto, Medina recordou que, mesmo com pandemia, Portugal conseguiu ter um défice inferior a 3% já em 2021. Do lado português, o entendimento é que, mesmo com a conjuntura internacional a agravar-se – e com o Banco de Portugal a fazer previsões mais pessimistas do que o Governo fazia no seu Programa de Estabilidade quanto às taxas de juro e o preço do barril de petróleo – as metas serão cumpríveis.
Ou seja, a suspensão das regras orçamentais, acredita a nova equipa das Finanças, será relativamente indiferente para o país. Por outro lado, manter a imagem de rigor que Portugal conquistou, depois dos anos da crise financeira e do resgate da troika, com Centeno e o sucessor João Leão, é mesmo a primeira prioridade.
Nos últimos anos, a credibilidade portuguesa junto das instâncias europeias cresceu em função dos resultados (e pelas baixas expectativas que existiam no início). Medina quer manter intacto esse legado e gozar da boa fé dos seus homólogos europeus — o novo ministro das Finanças diria, à saída do Eurogrupo, que Portugal tem “hoje um prestígio e reconhecimento que não tinha há vários anos” – “mérito” dos antecessores, reconheceu, e que o coloca “numa posição bastante diferente da que eles encontraram, nomeadamente Mário Centeno“.
Essa credibilidade serve, no entender do ministro, como um “grande ativo no debate europeu” que permite que o país “participe mais intensamente nos debates e tenha outro poder nas negociações”. Resta saber se o futuro – com os impactos continuados da pandemia a somar aos da guerra – garante uma trajetória assim tão segura para as finanças portuguesas.
As reuniões bilaterais e a troca de Pessoa por Saramago
Medina aproveitou esta primeira incursão pela Europa para manter a rede de contactos que já existia e ter várias reuniões bilaterais, nomeadamente com italiano Paolo Gentiloni, comissário europeu para a economia, com quem aproveitou para falar de questões orçamentais.
O socialista também se encontrou com Nadia Calviño, vice-primeira-ministra espanhola com a pasta dos Assuntos Económicos e Transição Digital – a homóloga geograficamente mais próxima e com quem Portugal partilha interesses vários, nomeadamente a proposta avançada por Espanha (e Países Baixos) de revisão das regras de fundo para que sejam mais flexíveis e adaptadas à realidade de cada Estado-membro — ideia que Portugal apoia.
O antigo autarca teve ainda tempo de se encontrar com o presidente do Eurogrupo, o irlandês Paschal Donohoe, para se conhecerem e, segundo uma responsável europeia, apresentar as “prioridades políticas do novo Governo” – e, mais uma vez, assegurar a “continuidade em relação ao representante anterior”.
O segundo momento com Donohoe teve menos a ver com Finanças e mais a ver com Cultura – ou pelo menos a intenção era essa. A gafe foi gravada pelas câmaras da RTP, que registou os dois responsáveis numa conversa em que Donohe contava os pormenores da sua última visita a Lisboa, guiado pelo “vosso governador [do Banco de Portugal, Mário Centeno”. “Levou-me ao museu de [Fernando] Pessoa e conheci a viúva dele. Foi um dia fantástico. Foi tão emocionante para mim conhecer a viúva de Pessoa como para o meu filho conhecer o Ronaldo!”.
Muitos risos, algo constrangidos: a viúva não poderia, naturalmente, ser de Fernando Pessoa; a referência era, na verdade, à viúva de José Saramago, a escritora e jornalista Pilar del Río. Donohe será, de resto, fã de Saramago, cujos livros leu recentemente; e Medina não contrariou o presidente do Eurogrupo, preferindo reagir à gafe com uns risos diplomáticos.
Preparação turbo (e o dilema das sanções contra a Rússia)
Gafes à parte, do lado dos responsáveis europeus a garantia é que o contacto com o presidente do Eurogrupo será, daqui para a frente, próximo, notando o caráter “participativo” de Medina, que interveio em todos os pontos discutidos durante a reunião do Eurogrupo.
Com pouco tempo de Governo, a preparação foi feita em modo turbo: a última semana no Ministério ainda em construção das Finanças foi passada, de forma quase permanente, a preparar os dossiês que seriam abordados na viagem a Luxemburgo, sempre em articulação com o gabinete de António Costa.
Foi isso mesmo que Medina quis mostrar nas reuniões dominadas pelo tema da guerra na Ucrânia, mas que incluíram também temas laterais, como os custos da Habitação (pasta que Medina, pela experiência como autarca em Lisboa, já dominaria com mais à vontade).
Quanto à guerra, alguma cautela: o ministro saiu da reunião a apoiar uma resposta articulada na Europa – imitando, como António Costa já tinha defendido, o modelo e os programas criados durante a pandemia – mas a avisar para o impacto das sanções aplicadas à Rússia, que saíram esta terça-feira reforçadas do encontro do Ecofin (que inclui os responsáveis das Finanças da Europa dos 27, e não só da zona euro).
A ideia no Governo passará, de resto, por garantir que, embora Portugal apoie as sanções, não assume a posição mais destacada na defesa das mesmas – até porque não será a economia mais afetada por elas. Ainda no papel de ministro, há duas semanas, Augusto Santos Silva garantia o mesmo: Portugal estará numa posição “relativamente protegida” quanto aos impactos da guerra. Pelo menos por agora.
O “momento menos feliz” da estreia
Das reuniões saíram, assim, posições genericamente coincidentes quanto aos impactos da guerra e o reforço das sanções; a garantia de que Portugal entregará o novo Orçamento do Estado até ao fim de abril, mas ainda sem data mais concreta; e o networking de Medina, que se lança assim como o novo protetor do rigor financeiro português.
Com uma nota negativa: da primeira reunião do Ecofin saiu a confirmação do bloqueio polaco – era necessária unanimidade – para avançar com a taxa mínima de imposto de 15% para empresas multinacionais.
À saída, Medina assumiu o “momento menos feliz”, com a rejeição de uma proposta que reunia um consenso alargado para tentar combater a evasão fiscal e evitar que as empresas evitem pagar o imposto e fiquem em melhores condições de concorrência.
A proposta avançada por França e apoiada por Portugal não deverá, ainda assim, cair – mas esta investida falhou. É um dossiê a juntar ao caderno de encargos que Medina, a trabalhar para ser o novo “Ronaldo das Finanças” português, terá em mãos durante os próximos quatro anos.