Assim que se ficou a conhecer o primeiro esboço da estratégia para a recuperação económica preparada pelo consultor do Governo, as atenções centraram-se nas infraestruturas propostas por António Costa Silva. A estratégia volta a pôr em cima da mesa duas das obras públicas mais polémicas, o TGV (comboio de alta velocidade) e um novo aeroporto de raiz para Lisboa. Estes investimentos foram aprovados pelo Governo de José Sócrates (os projetos vinham de trás e incluíam a terceira travessia ferroviária Chelas/Barreiro), mas foram colocados na gaveta quando Portugal entrou em período de ajustamento económico e financeiro.
O TGV e um “grande aeroporto” para a área metropolitana de Lisboa reaparecem agora para ultrapassar o “confinamento geográfico” de Portugal e para reforçar a coesão territorial, mas num contexto totalmente distinto, como parte de uma resposta a uma crise “inédita” que conta com um envelope financeiro reforçado de Bruxelas e com o alívio das restrições orçamentais do passado.
“Nós não vamos sobreviver no século XXI se não apostarmos nos sistemas que nos ligam ao mundo e é por isso que a ferrovia é cada vez mais importante e que a ligação de alta velocidade entre Porto e Lisboa é tão importante”. Neste contexto, em Portugal, pela sua própria geografia, “o aeroporto é indispensável e a TAP é indispensável”, salientou o consultor do Governo, afirmando que “não estamos na idade das cavernas” mas “num mundo global que vai ser ajustado”.
Se o plano recupera a ligação ferroviária entre Lisboa e Porto – já inscrito pelo Governo no Programa Nacional de Investimentos, e cujo horizonte temporal é o mesmo: 10 anos – já no caso de um grande aeroporto para a área metropolitana de Lisboa, a proposta de Costa Silva parece afastar-se da solução defendida pelo Executivo. Uma solução que já se encontra já em fase de implementação, com a declaração de impacte ambiental emitida este ano, mas cuja execução não está totalmente garantida.
Ao contrário do detalhe com que são desenvolvidos outras infraestruturas, o plano gizado por Costa Silva é especialmente vago no que se refere a uma solução aeroportuária para Lisboa. “Construir o Aeroporto para a grande Área Metropolitana de Lisboa, tendo em conta que as ligações aéreas são fundamentais na performance da economia portuguesa, e isso tem a ver não só com o turismo, que é um setor crucial da economia, mas também com muitas outras fileiras económicas.”
Construir um aeroporto para Lisboa ou uma solução dual com Montijo e Portela?
A referência a um “aeroporto” para a Grande Lisboa parece à partida chocar com a estratégia de desenvolver uma estrutura complementar na base aérea do Montijo, de apoio à Portela (Humberto Delgado): dois aeroportos ou uma “solução dual aeroportuária”, como a descreveu horas depois no Parlamento o ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos.
Durante o debate que se seguiu à apresentação da sua visão para a década, na terça-feira de manhã, no CCB, o consultor destacou a necessidade de avançar para a construção de um “grande aeroporto” para a área metropolitana. E isso parece encaixar melhor na solução estudada para Alcochete do que no modelo da Portela mais um. O consultor sublinhou que as ligações aéreas “são um fator crucial que condiciona a competitividade da economia portuguesa”. Questionado pelo Observador, já depois da sessão pública, sobre se esta proposta é concretizada pela solução aeroportuária em curso, António Costa Silva não quis elaborar mais sobre o tema.
A pressão para avançar de imediato com a construção do aeroporto no Montijo abrandou devido à profunda crise da aviação comercial, que “comprou algum tempo” — a rapidez de execução e um investimento totalmente privado sem o esforço do Estado são as grandes vantagens apontadas a esta solução. Mesmo no atual contexto de incerteza sobre a aviação e o turismo, o Governo mantém a decisão de avançar com o projeto, que é também o pretendido pela concessionária ANA e que é considerado estratégico. No entanto, o quadro legal em vigor – que obriga a obter o parecer favorável de todos os municípios afetados pela obra – pode deitar tudo a perder, dada a objeção das autarquias comunistas da Moita e do Seixal. Por outro lado, também a janela de oportunidade para lançar o projeto de Alcochete sem perder demasiado tempo pode fechar-se no final do ano, com a caducidade da declaração de impacte ambiental emitida há 10 anos.
Ligação Lisboa/Porto. Alta velocidade ou velocidade alta? Não interessa, diz consultor
O plano Costa Silva está mais alinhado com o Executivo em matéria de alta velocidade ferroviária. Ou velocidade alta, como fez questão de sublinhar o consultor na apresentação. “Não quero saber se é alta velocidade ou velocidade alta”, mas deve ser feita, até “por uma razão muito simples. Os voos até 600 km (distância entre Lisboa e Madrid e o dobro da distância entre a capital e o Porto) vão ser proibidos (presume-se que pela União Europeia)”. E os países que não tiverem uma ligação eficaz e rápida por via ferroviária “vão sofrer no futuro” e isso vai implicar um “grande ajustamento para a aviação internacional”. Por isso, “é fulcral não abdicarmos deste vetor estratégico” que já estava aliás no plano de investimentos do Governo para 2030.
A dicotomia alta velocidade, velocidade alta não se trata apenas de um jogo de palavras. A primeira remete-nos para uma linha nova, construída de raiz, com velocidades de traçado mais elevadas, na casa dos 300 km/hora, e bitola europeia, características definidas na diretiva europeia do TGV e que eram adotadas no projeto do tempo de José Sócrates. Estas características tornavam o investimento mais caro e demorado, adiando a entrada em operação do serviço. A velocidade alta é um conceito mais lato que abrange linhas de alta prestação, em termos de qualidade e fiabilidade do serviço e tempo de percurso mais reduzidos que o atual, mas que não chega aos níveis do TGV clássico.
O que António Costa Silva propõe é um eixo ferroviário de alta velocidade (sem dizer qual) para passageiros entre Lisboa e Porto que seria feito de forma faseada, começando pela construção de um troço entre Soure e o Porto, onde existem mais constrangimentos de circulação (integrado na atual linha do Norte).
Parece uma versão simplificada do projeto que consta do Programa Nacional de Investimentos para 2030 e que prevê um novo canal de altas prestações em via dupla entre Cacia e Gaia e a uma nova via dupla de altas prestações no troço Soure-Coimbra-Mealhada. O projeto do Governo, que inclui ainda intervenções nos troços da Linha do Norte no Vale de Santarém e entre Alverca e Azambuja, pretende reduzir o tempo de percurso para 2 horas e tem um investimento estimado de 1.500 milhões de euros.
Contas foram feitas, mas prioridades, valores e calendário são decisão do Governo
Mas nem só de infraestruturas emblemáticas vive a visão estratégica para Portugal. O plano que irá entrar em discussão pública toca em várias camadas da realidade nacional e a sua ambição vai para além da economia ou da retoma da crise provocada pela pandemia. Pretende ser uma oportunidade para repensar aspetos estruturais do modelo económico e social de décadas e ultrapassar constrangimentos históricos, como o da periferia geográfica, passando a encará-los como vantagens potenciais em vez de insuficiências.
O ministro do Estado e da Economia, Siza Vieira, sublinhou que o plano foi desenhado através de “um exercício livre e não condicionado” e pretende servir de elo de ligação de vários instrumentos e planos isolados já apresentados ou em execução. Tendo como pano de fundo os recursos financeiros garantidos para Portugal no quadro da União Europeia, o plano de Costa Silva é o ponto de partida para investir nas “fundações do país que queremos ser na próxima década”.
Já sobre valores de investimento, o plano é omisso. António Costa Silva garantiu no debate desta terça-feira no Centro Cultural de Belém que fez as contas todas aos custos e ganhos, mas preferiu não as revelar. O consultor afastou-se da operacionalização do plano, remetendo para o Governo a competência para definir as prioridades, quantificar os investimentos e estabelecer os calendários de execução.
Na plateia estavam praticamente todos os membros do Executivo — António Costa ficou retido no Conselho Europeu em Bruxelas — que colaboraram na elaboração do plano, mas o consultor destacou com uma referência especial o ministro do Ambiente e da Transição Energética, João Matos Fernandes, que tem a tutela política de muitos dos temas tratados no documento.
Administração pública é um condicionante e tem de mudar para responder a exigências
E é na parte da execução que surge um dos principais alertas deixados pelo consultor, e que foi discutido com o primeiro-ministro António Costa, mas também com a ministra da pasta, Alexandra Leitão: a administração pública é apontada como uma das condicionantes à capacidade para executar os projetos que vierem a ser adotados e que vão exigir muito mais dos serviços do Estado. Destacando que – mesmo nos melhores anos – Portugal consegue executar até três mil milhões de euros por ano, como conseguirá a administração pública responder a valores muito mais altos?
O gestor – que, enquanto presidente da Partex, tem experiência da interação com vários serviços do Estado – afirma que a administração pública portuguesa é muito fragmentada e tem “resquícios” de uma “herança napoleónica” que funciona muito pela apresentação de pareceres por cada um dos serviços envolvidos numa decisão. Depois é preciso concertar esses pareceres, o que faz demorar as decisões. Para o consultor, é preciso orientar os serviços do Estado para os resultados, o que passa por conciliar posições antes de decidir. O Simplex foi um contributo importante, mas é preciso apostar mais na digitalização e no rejuvenescimento dos quadros.
A capacidade de execução foi um dos temas mais levantados no debate que juntou vários académicos, unânimes a elogiar o documento, por ser completo e integrar várias valências.
“O que mais me surpreendeu foi a capacidade de integrar, de ver onde estamos e onde queremos ir. Ele vale por um todo”, afirmou Paulo Pinho, professor da Faculdade de Engenharia do Porto. Mas apesar de o classificar como um “documento notável”, assinala também que tem de ser lido com cuidado.
O verde, o azul, as terras estranhas e o softpower
O plano Costa Silva relança vários projetos em discussão, alguns já aprovados, e integra prioridades e políticas, planos e roteiros que foram preparados e executados de forma isolada — desde os cuidados de saúde, passando pela qualificação e o combate à exclusão social e pelos programas de coesão territorial e valorização do interior, pela digitalização e pelo 5G, mas também pela descarbonização da economia, a economia circular e pelas estratégias para o lítio e para o hidrogénio verde e ainda economia azul (tendo como referência o mar) e com vários projetos inovadores para os Açores.
A reindustrialização surge muito ligada à exploração de minérios em terra e no mar e a energia renovável e à descarbonização, como o projeto de produção de hidrogénio verde. Estas são linhas transversais que percorrem vários eixos do plano: desde a descarbonização da indústria até à eletrificação da mobilidade (que não se faz sem o armazenamento em baterias, que por sua vez não se fazem sem o lítio, para além de outros minerais que são fundamentais para as indústrias tecnológicas de precisão), passando pela coesão territorial e revalorização do interior e pelas cidades mais inteligentes.
Partindo do pressuposto de que Portugal tem muitos recursos minerais, o plano aposta não só na exploração de minérios já conhecidos, como o lítio, mas também o nióbio, o tântalo e as terras raras (em terra), e o cobalto, níquel, manganês e depósitos de sulfuretos polimetálicos (no mar). A reativação da indústria mineira surge associada a uma economia eco-eficiente e rodeada de cuidados sobre a sustentabilidade ambiental e a preservação de habitats, mas será provavelmente um dos pontos que mais discussão irá suscitar pela forte oposição local a estes projetos.
Numa apresentação longa em que citou poetas e filósofos (incluindo o húngaro Karl Polanyi, para salientar a importância do Estado na economia) e contou episódios de conflitos internacionais relativamente pouco conhecidos para ilustrar a importância de certas matérias-primas ou a pressão criada pelo esgotamento de recursos, António Costa Silva apelou ainda para a promoção de Portugal como um país de softpower (poder de influenciar sem ter muita força), tirando partido da riqueza cultural e da presença em quatro continentes da língua portuguesa. E da capacidade de mobilização nacional quando está em causa a eleição de um português para um cargo internacional de prestígio.