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Rui Pinto colocou como condição para a sua colaboração com o Ministério Público (MP) e a Polícia Judiciária (PJ) a alteração da medida de coação de prisão preventiva em que se encontrava no final de março. Nove dias depois, o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa autorizou a sua saída do Estabelecimento Prisional da PJ para a situação de Obrigação de Permanência em Habitação num apartamento escolhido pela própria Judiciária.
A sua segurança foi igualmente reforçada depois de informar formalmente o MP de que tinha sido ameaçado de morte por inúmeros benfiquistas na altura em que comunicação social começou a noticiar que era ele o autor do site “Mercado do Benfica” e do “Fooball Leaks”. Mais: o hacker recebeu informação de que um grupo de ex-militares teria alegadamente sido contratado para o assassinar ou raptar o seu pai a troco de 20 mil euros.
Tudo isto faz parte dos autos do processo criminal que tinha Rui Pinto como arguido e que, tal como o Observador noticiou a 30 de julho, está em suspensão provisória, após proposta do MP e aprovação do juiz Carlos Alexandre para o próximo ano e meio. Ou seja, desde que o ex-hacker continue a colaborar com a Justiça e não volte a praticar qualquer crime de acesso indevido, os autos serão definitivamente arquivados em 2022.
Rui Pinto começou a colaborar a 30 de março de 2020
Os autos consultados esta terça-feira pelo Observador revelam que o inquérito tutelado pelo procurador Carlos Casimiro resultou da junção de cinco queixas apresentadas contra desconhecidos. Uma delas foi apresentada por Joana Marques Vidal em 2016 enquanto procuradora-geral da República por alegado acesso indevido à sua caixa de correio eletrónico pessoal, enquanto que as restantes foram apresentadas pelas seguintes entidades:
- Benfica Estádio, SA — que se queixou por as caixas de correio de diversos funcionários do Benfica terem sido acedidas ilegalmente e os respetivos conteúdos publicados em sites como o “Mercado do Benfica” ou o “Football Leaks”
- FC Porto, SAD — por acesso ilegítimo ao email do seu administrador Fernando Gomes (ex-presidente da Câmara do Porto). Foram 13 acessos que terão ocorrido a 14 de dezembro de 2016.
- Centro de Gestão da Rede Informática do Governo — organismo tutelado pela Presidência do Conselho de Ministros.
- Instituto de Gestão Financeira da Justiça — entidade tutelada pelo Ministério da Justiça que já tinha sido invadida no âmbito do processo e-toupeira.
Inicialmente investigados em processos autónomos, sendo que alguns deles estavam a ser investigados pela unidade do Departamento Central de Investigação de Ação Penal (DCIAP) que coordena os inquéritos sobre o mundo do futebol, as diligências de investigação obrigaram a uma colaboração estreita com diferentes jurisdições. Por exemplo, no caso da queixa apresentada pelo Benfica, o DCIAP esteve em estreita colaboração com as autoridades dos Estados Unidos para identificar o IP que tinha criado o site “Mercado de Benfica” na plataforma norte-americana tumblr, acontecendo o mesmo com a plataforma WordPress.
O inquérito que resultou da junção das cinco queixas acabou por ser tutelado pelo procurador Carlos Casimiro — que a 30 de março deste ano chamou Rui Pinto para interrogatório como arguido. E foi neste interrogatório que o ex-hacker mostrou arrependimento e se mostrou disponível para começar a colaborar com as autoridades, dando mesmo provas da sua boa fé ao desencriptar [levantar o muro que impede o acesso] um dos vários discos que lhe foram apreendidos pelas autoridades húngaras e que forma copiados e enviados para a PJ.
A condição para colaborar: sair da prisão
No auto do interrogatório de Rui Pinto pode ler-se que o arguido afirmou naquele dia 30 de março que pretendia “colaborar com a realização da justiça contribuindo para a descoberta e perseguição de crimes graves”, a começar, desde logo, “através da desencriptação de uma cópia de um disco” dos 12 que lhe foram apreendidos com 23 terabytes de informação. “Mais declara que é sua intenção prosseguir a sua colaboração através da desencriptação dos restantes discos”, concluiu.
Contudo, tal colaboração tinha uma condição clara: “Que seja alterada a medida de coação a que está sujeito [prisão preventiva]” no processo onde está a ser julgado já que tal situação “obsta à sua livre e completa colaboração.”
Isto é, Rui Pinto exigiu ao Ministério Público que promovesse a sua libertação junto da juíza de instrução Cláudia Pina. Extraditado para Portugal e preso preventivamente desde março de 2019, a defesa do ex-hacker, a cargo dos advogados Francisco e Luísa Teixeira da Mota, estava a tentar libertá-lo desde o início.
Foi precisamente por promoção dos seus advogados, e no âmbito da revisão trimestral das medidas de coação, que a juíza Cláudia Pina autorizou a 8 de abril a passagem de Rui Pinto para a situação de Obrigação de Permanência na Habitação tendo por base um conjunto de informação da PJ que atestavam a colaboração do ex-hacker na investigação de outros processos que visam o mundo do futebol. A magistrada do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa entendeu que já não se justificavam os perigos que tinham levado à sua prisão preventiva: perigo de fuga, destruição da prova e continuação da atividade criminosa.
As ameaças de morte
No final de abril, e já depois de estar a morar num apartamento disponibilizado pela PJ, Rui Pinto voltou aos autos para declarar uma aparente consequência da sua colaboração com a Justiça: estava a ser ameaçado de morte.
De acordo com o auto de interrogatório, Rui Pinto declarou: “Tenho receio pela minha vida quando regressar à liberdade, dadas as ameaças de morte que me foram dirigidas quando me encontrava na Hungria. São mensagens enviadas via Facebook e WhatsApp”. Tudo terá acontecido depois de a revista Sábado ter noticiado, em setembro de 2018, que Rui Pinto iria passar a colaborar com a Justiça — isto numa altura em que ainda não sido sido detido pelas autoridades húngaras.
Dos autos consultados pelo Observador constam capturas de ecrã de inúmeras mensagens recebidas via Messenger do Facebook em que utilizadores daquele rede social perfeitamente identificados em termos de nome e imagem ameaçaram Rui Pinto:
- “Espero que morras”; “Estás fodido. Se te apanho primeiro, já eras”; “És um homem morto” ;“As coisas não vão acabar para esses lados”; “Tanto benfiquista e ainda ninguém te deu um tiro nos cornos. Mais dia menos dia vais pagalas [SIC]”, são apenas alguns dos exemplos das mensagens que a defesa de Rui Pinto juntou aos autos.
A esmagadora maioria dos utilizadores estava identificado como adeptos do Sport Lisboa e Benfica.
Mais: foram igualmente juntos print screens de uma conversa via Whatsapp que Rui Pinto teve com uma pessoa que lhe será próxima, mas que não está identificada, sobre um grupo de ex-militares que teriam sido contratados para raptar o pai ou atentar contra a sua integridade física.
Todos ex-militares e lutadores. (…) Mano, eles têm papéis claros E não aceitam trabalhos só porque sim. (…) Receberam 20 mil euros para te irem buscar ou vão buscar o teu pai mas calma”, escreveu o interlocutor de Rui Pinto.
O ex-hacker, por seu lado, queria saber a origem dessa ameaças. “É o Benfica ou o CM?” — sem se perceber quem seria este CM.
Estas ameaças por parte de utilizadores identificados deram lugar a novas investigações por ameaças à integridade física por parte do Ministério Público: foi extraída uma certidão ao processo principal, para que seja aberta uma nova investigação. E a segurança de Rui Pinto foi reforçada.
Ao que o Observador apurou, a PJ tem uma maior preocupação com as ameaças recebidas por Rui Pinto de elementos ligados ao Grupo Doyen — um grupo económico que tem ligações próximas com presidente cazaque Nursultan Nazarbayev, o líder turco Recep Tayyip Erdoğan, a máfia russa e fez negócios com Donald Trump. Esta investigação do site The Black Sea, realizada com documentação que foi libertada por Rui Pinto, atesta isso mesmo.
As condições do MP para propor a suspensão do processo
Certo é que a 13 de julho, o procurador Carlos Casimiro promoveu a realização de uma conferência com o arguido — uma diligência processual obrigatória de modo a que ficasse expressa a aceitação de Rui Pinto dos termos da suspensão provisória do processo. Desta vez, foi o MP que colocou condições para suspender o processo:
- o arguido tinha de colocar-se à disposição do MP e da PJ durante o ano e meio que vai durar a suspensão provisória, “colaborando a nível nacional e internacional, cedendo a informação de que disponha e comentando os dados que conheça sobre matérias com relevância criminal, designadamente crimes em investigação ou ainda não conhecidos”;
- “Abster-se de comportamentos ilícitos”, nomeadamente acesso não autorizado ou intrusão em sistemas informáticos;
- “Coibir-se de ceder as passwords referentes aos contentores cifrados existentes nos dispositivos apreendidos”;
- E não praticar qualquer ilícito criminal durante o prazo de suspensão provisória de processo.
Rui Pinto deixa prisão domiciliária. Juíza considera que o seu comportamento mudou completamente
Tendo em conta que não existiam antecedentes criminais nem qualquer outra suspensão provisória por crime da mesma natureza, o procurador Carlos Casimiro manifestou intenção de promover a suspensão provisória do processo. Para tal, contudo, era necessário a aceitação dos termos por parte de Rui Pinto. O que veio a acontecer.
Não sem antes o ex-hacker declarar nos autos que “pretendia descobrir crimes graves, cometidos por terceiros, para os denunciar publicamente” e lamentar que, “com a sua conduta, tenha praticado crimes no acesso a esta informação”.
As razões do MP para a suspensão: culpa diminuída e o movimento dadaísta
Poucos dias depois, o procurador Carlos Casimiro avançou para uma proposta formal ao juiz Carlos Alexandre, titular dos autos no Tribunal Central de Instrução Criminal. No despacho consultado pelo Observador, o procurador expõe quatro razões para requerer a suspensão provisória do processo.
Em primeiro lugar, o procurador do DCIAP entende que a “conduta do arguido [Rui Pinto] apresenta uma culpa diminuída” devido aos motivos que o levaram a invadir os sistemas informáticos: a “procura de provas da prática de crimes graves para os divulgar publicamente”.
Por outro lado, Rui Pinto mostrou “arrependimento” por ter acabado por “praticar ilícitos penais para obter os dados que procurava”. Contudo, acrescentou o magistrado, essa ação desconforme com o direito “não merece um juízo de censura muito forte”.
Isto porque o procurador Carlos Casimiro entende que Rui Pinto “terá agido sem refletir devidamente nas consequências dos seus atos, apesar de ter capacidade para o fazer, enquadrando-se numa perspetiva dadaísta que valorizava os dados a que acedia em si mesmos.” Isto é, e recorrendo a uma das prerrogativas do movimento artístico do Dadaísmo do início do séc. XX, Rui Pinto terá tido uma perspetiva de negação de todas as regras para atingir o seu objetivo de encontrar provas de irregularidades graves.
Concluindo: a suspensão provisória do processo justifica-se como medida adequada, tendo em conta o “grau de culpa de baixa intensidade” e a “condição social” de Rui Pinto que se repercute “na sua capacidade para compreender com rigor à data dos factos, a censurabilidade do comportamento indiciado”, lê-se no despacho de Carlos Casimiro.
O juiz Carlos Alexandre acabou por concordar com esta apreciação de Carlos Casimiro, enfatizando, contudo, que a suspensão provisória do processo é um poder do titular da ação penal (o MP) — como foi decidido na altura da Operação Furacão pelo Tribunal da Relação de Lisboa. “Se o detentor da ação penal diz que é suficiente, e se é ele o titular de tal ação, não nos sendo dado a assinalar a existência de um grua de culpa elevado neste caso (…) somos levados a acolher a proposta de suspensão provisória do processo”, lê-se no despacho do juiz.
Além da suspensão provisória do processo decretada em julho, Rui Pinto veio a ainda a ser libertado no início de agosto de prisão domiciliária — um mês antes de começar a ser julgado no Tribunal Central Criminal de Lisboa.
Rui Pinto é acusado de 90 crimes por ter acedido aos sistemas informáticos e caixas de emails de pessoas ligadas ao Sporting, à Doyen, à sociedade de advogados PLMJ, à Federação Portuguesa de Futebol, à Ordem dos Advogados e à PGR. Entre os visados estão Jorge Jesus, Bruno de Carvalho, o então diretor do DCIAP Amadeu Guerra ou o advogado José Miguel Júdice. Dos 90 crimes imputados a Rui Pinto, 68 são de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo e ainda sabotagem informática à SAD do Sporting e tentativa de extorsão ao fundo de investimento Doyen.