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Como Salgado usou o 'saco azul' para implementar um esquema de financiamento fraudulento do GES

Salgado terá usado o 'saco azul' para pagar a funcionários do BES que terão implementado esquemas de financiamento fraudulento do GES à custa dos clientes e do próprio banco.

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Seria impensável há uns anos realizar uma pesquisa no Google em que as palavras-chave fossem “Ricardo Salgado”, “Banco Espírito Santo” e “burla” — mais ainda se acrescentássemos “saco azul” e “corrupção no sector privado”. Certo é, contudo, que todas estas palavras são hoje uma espécie de tags para descrever boa parte do principal processo do chamado caso “Universo Espírito Santo”.

No centro da investigação está o alegado sistema fraudulento de financiamento do Grupo Espírito Santo (GES), que durou entre 2001 e 2014 e atingiu proporções gigantescas. Quer um número? Só nos últimos anos da existência do BES, e até ao final de 2013, calcula-se que o banco e diversas sociedades do GES tenham emitido cerca de 8,9 mil milhões de euros em títulos de dívida. Uma boa parte dessas emissões foi subscrita pelos diferentes bancos da família Espírito Santo e pelos seus clientes institucionais e particulares quando o GES já estava em dificuldades ou com diversas sociedades tecnicamente falidas.

É comum pensar-se que tais esquemas, já parcialmente denunciados nas três acusações contra-ordenacionais que o Banco de Portugal deduziu contra Ricardo Salgado e outros ex-administradores, foram implementados única e exclusivamente a partir da Suíça através da sociedade Eurofin — sociedade suíça fundada no final do século passado por ex-funcionários do GES que está no centro do caso “Universo Espírito Santo” por ser a principal contraparte das emissões de dívida emitidas pelo BES e pelo GES.

Não é bem assim. De acordo com os dados reunidos pelo Observador, a fraude que o Ministério Público (MP) e o Banco de Portugal imputam à gestão de Ricardo Salgado terá sido implementada e controlada a partir da sala do Departamento Financeiro, Mercados e Estudos (DFME) do BES, na Av. da Liberdade, em Lisboa. O principal indício disso mesmo são precisamente os mapas de liquidez das sociedades veículo usadas pela Eurofin nesses esquemas que foram encontrados nos computadores dos principais responsáveis do DFME nas buscas realizadas à sede do banco, assim como toda a correspondência trocada entre esse departamento do BES e a Eurofin.

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Daí que, entre os seis crimes (corrupção activa no sector privado, burla qualificada, falsificação de documento, falsificação informática, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais) que são imputados a Ricardo Salgado, e cujos indícios já foram considerados como “avassaladores” pelo Tribunal da Relação de Lisboa, o crime de burla qualificada seja considerado central no processo principal dos sete inquéritos do chamado caso “Universo Espírito Santo”. Aliás, não é por acaso que o procurador José Ranito fez questão de escrever no despacho de indiciação de Ricardo Salgado que o ex-líder executivo do BES é suspeito da prática de “inúmeros crimes de burla qualificada” que prejudicaram os clientes do BES e o próprio banco. No dia 28 de setembro, no âmbito de novas buscas judiciais neste caso, a Procuradoria-Geral da República informou que já existem mais de 220 queixas de clientes alegadamente lesados pela gestão da administração liderada por Salgado.

Só nos últimos anos da existência do BES, e até ao final de 2013, calcula-se que o banco e diversas sociedades do GES tenham emitido cerca de 8,9 mil milhões de euros de dívida e que uma boa parte da mesma tenha sido comprada pelo banco da família Espírito Santo e pelos seus clientes institucionais e particulares quando o GES já estava em dificuldades ou com diversas sociedades tecnicamente falidas. Daí que Ricardo Salgado seja suspeito de "inúmeros crimes de burla qualificada", segundo o MP.

Salgado, contudo, não terá actuado sozinho. A equipa do procurador Ranito tem indícios de que, com a ajuda dos fundos da Espírito Santo (ES) Enterprises (sociedade offshore com sede nas Ilhas Virgens Britânicas vulgarmente conhecido como o ‘saco azul’ do GES), o ex-banqueiro terá remunerado os responsáveis mais importantes do DFME do BES através daquela offshore para o ajudarem a implementar sucessivas operações de emissão de dívida que alegadamente teriam um único objetivo: financiar o GES à custa dos clientes do BES e do próprio banco.

Apesar de Ricardo Salgado ter argumentado em sede de interrogatório que tais transferências da ES Enterprises correspondem a “remunerações complementares”, certo é, contudo, que parte das transferências realizadas pela ES Enterprises tiveram como destinatários um número muito significativo de familiares dos funcionários do BES alegadamente premiados. Este é um pormenor que leva o procurador José Ranito a ter a convicção de que terá existido um propósito de ocultar os últimos beneficiários desses fundos.

Os pagamentos do saco azul

Ao que o Observador apurou, há pelo menos 18 funcionários do BES, do DFME e de outros departamentos que terão recebido somas avultadas do ‘saco azul’ do GES. Esse número, contudo, deverá ser superior, pois, tal como o Observador noticiou em primeira mão, o pagamento de prémios a administradores e a funcionários do BES, nomeadamente do DFME, via ES Enterprises, era uma prática antiga no banco liderado por Ricardo Salgado.

Trata-se de uma lista que o Ministério Público da Suíça apreendeu nos escritórios da Espírito Santo (ES) Services, localizados em Lausane, na sequência de uma carta rogatória expedida pelas autoridades portuguesas. A lista já está, desde o ano passado, nas mãos dos procuradores do DCIAP, tendo Ricardo Salgado sido confrontado com a mesma durante os interrogatórios a que foi sujeito em julho de 2015. A ES Services era a empresa do GES que tratava da contabilidade de diversas sociedades do GES, inclusive da famosa ES Enterprises.

Entre os funcionários do BES que estão nessa lista encontram-se Isabel Almeida, ex-diretora-geral do DFME, e António Soares, ex-responsável pela sala de mercados do DFME e ex-chief financial officer do BES Vida. Só estes dois altos funcionários do BES terão recebido, ao que o Observador apurou, cerca de 1,2 milhões de euros em 2009 e 2010.

No caso de Isabel Almeida, os pagamentos realizados pelo ‘saco azul’ do GES foram distribuídos da seguinte forma:

  • Cerca de 300 mil euros em 2009;
  • Cerca de 500 mil euros no ano seguinte.

Verificou-se, assim, um aumento de cerca de 60% na remuneração complementar.

Já António Soares terá recebido os seguintes montantes:

  • 120 mil euros em 2009;
  • 250 mil euros no ano seguinte.

António Soares teve, assim, um acréscimo de 108% de um ano para o outro.

isabel almeida, bes,

Isabel Almeida chegou a ser indicada como administradora do BES mas a lista liderada por Morais Pires foi chumbada pelo Banco de Portugal

Foram estes indícios que fizeram com que Isabel Almeida e António Soares fossem constituídos arguidos por o MP suspeitar de que terão recebido dinheiro do ‘saco azul’ do GES, por alegada solicitação de Ricardo Salgado. Tal como Salgado, Almeida e Soares terão sido igualmente constituídos arguidos pelos crimes de burla qualificada, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais.

Recorde-se que António Soares, juntamente com Pedro Serra e Nuno Escudeiro (ambos ex-funcionários do DFME), viu recentemente o Tribunal da Relação de Lisboa ordenar a sua condenação no âmbito de um caso de insider trading relacionado com a compra de ações da EDP durante a Oferta Pública de Subscrição (OPS) da subsidiária da EDP Renováveis em 2008. Amílcar Morais Pires e José Maria Ricciardi chegaram a ser arguidos no mesmo caso mas não foram acusados pelo Ministério Público, enquanto Ricardo Salgado sempre foi ouvido como testemunha.

Ricardo Salgado é igualmente suspeito de ter ordenado pagamentos a, pelo menos, 18 altos funcionários do BES para execução de um sistema de financiamento fradulento do Grupo Espírito Santo (GES). São nomes que fazem parte de uma lista de pagamentos do 'saco azul' do GES que o Ministério Público da Suíça apreendeu nos escritórios da Espírito Santo Services e enviou para Portugal. Só dois desses altos funcionários terão recebido cerca de 1,2 milhões de euros em 2009 e em 2010.

Também Cláudia Boal Faria, ex-diretora do Departamento de Gestão de Poupança do BES, e Pedro Costa, ex-funcionário do DFME e ex-administrador executivo da Espírito Santo Activos Financeiros (ESAF), foram constituídos arguidos por terem alegadamente colaborado com Ricardo Salgado na implementação de diferentes esquemas de financiamento fraudulento do GES. Destes dois ex-colaboradores do BES, o Observador tem a informação de que Cláudia Faria terá recebido fundos do ‘saco azul’ do GES.

Os nomes de Cláudia Faria e do seu marido Pedro Costa tornaram-se conhecidos da opinião pública quando, na ressaca do interrogatório realizado a Ricardo Salgado a 24 de julho de 2015, diversos órgãos de comunicação social, como o Expresso, divulgaram, citando fonte oficial da Procuradoria-Geral da República, os seus nomes como novos arguidos do caso “Universo Espírito Santo”.

Amílcar Morais Pires, braço direito de Ricardo Salgado e por este apontado em 2014 como seu sucessor à frente do BES, foi igualmente constituído arguido nos processos do “Universo Espírito Santo” pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) no final de setembro de 2015. O ex-chief financial officer era o administrador executivo do BES que tutelava o DFME, sendo Isabel Almeida uma pessoa da sua total confiança. Aliás, caso Morais Pires não tivesse sido chumbado pelo Banco de Portugal como sucessor de Salgado, Isabel Almeida teria sido administradora do BES.

Como funcionava o ‘saco azul’ para os funcionários

Confrontado pelo MP a 24 de julho de 2015 com os pormenores desses pagamentos, Ricardo Salgado terá caracterizado os mesmos como prémios ou “remunerações complementares” que eram pagos anualmente ou por tranches. Dependia do funcionário em causa.

No mesmo interrogatório, Salgado confirmou que os pagamentos aos funcionários do DFME duravam desde 2007, tendo referido os nomes de Amílcar Morais Pires e de Isabel Almeida como sendo os responsáveis pela atribuição de tais prémios — informação que o MP confirmou através da documentação da ES Services enviada pelas autoridades suíças.

Salgado terá confirmado que os pagamentos do 'saco azul' do GES aos funcionários do DFME duravam desde 2007, tendo referido os nomes de Amílcar Morais Pires e de Isabel Almeida como sendo os responsáveis pela atribuição de tais prémios.

O ex-presidente executivo do BES garantiu que não tinha nada a ver com tais operações, mas sempre acrescentou que os pagamentos da ES Enterprises estava dependente da contribuição dos funcionários para as sociedades do BES e do GES no exterior. E caracterizou a ES Enterprises, como já tinha feito na Comissão Parlamentar de Inquérito ao caso BES, como um centro operacional de custos relativa a serviços partilhados do GES — justificação que não colheu junto da equipa do procurador José Ranito precisamente por causa dos pagamentos realizados a funcionários do BES, GES e a Zeinal Bava, ex-presidente executivo da Portugal Telecom.

A execução das transferências pertencia ao suíço Jean-Luc Schneider, quadro da Espírito Santo Financière (ESFIL) que era o operacional do ‘saco azul’. Ao contrário das transferências para os membros da própria família Espírito Santo ou para Zeinal Bava, e tal como o Observador já noticiou aqui e aqui, Schneider só transferia os montantes (anuais ou por tranches) após a respectiva solicitação de um quadro da Espírito Santo Financial Group (ESFG).

Salgado diz que é tudo falso

O Observador confrontou Ricardo Salgado por escrito com toda a informação relatada neste trabalho, tendo recebido a seguinte resposta da sua defesa, assegurada pelo advogado Francisco Proença Carvalho:

“As falsidades e teorias especulativas que o Observador pretende veicular evidenciam o esforço reiterado de certos interessados em obter uma pré-condenação sumária do Dr. Ricardo Salgado na opinião pública, sem regras e contraditório. O Dr. Ricardo Salgado não praticou qualquer crime. Se e quando necessário, o Dr. Ricardo Salgado demonstrará a falsidade das especulações veiculadas através do Observador”, lê-se na resposta enviada pela assessoria de imprensa de Salgado.

As mesmas perguntas foram igualmente enviadas aos advogados de Amílcar Morais Pires, Isabel Almeida e António Soares.

Raúl Soares da Veiga, advogado de Morais Pires, afirmou que “de momento, não há declarações a prestar”.

Francisco Navarro, por seu lado, declarou por escrito que a sua constituinte, Isabel Almeida, “não faz comentários sobre processos judiciais que se encontram em segredo de justiça”.

Já Rogério Alves, advogado de António Soares, não respondeu em tempo útil às perguntas enviadas.

O Observador tentou obter os contactos de Cláudia Boal Faria e de Pedro Costa, assim como dos seus advogados, para enviar as mesmas perguntas que enviou para os restantes visados. Apesar de diversas tentativas, inclusivé junto do Novo Banco, não foi possível obter tais contactos.

"As falsidades e teorias especulativas que o Observador pretende veicular evidenciam o esforço reiterado de certos interessados em obter uma pré-condenação sumária do Dr. Ricardo Salgado na opinião pública, sem regras e contraditório. O Dr. Ricardo Salgado não praticou qualquer crime", lê-se na resposta enviada pela defesa do ex-líder executivo do BES.

Centro de controlo? Av. da Liberdade, Lisboa

Os pagamentos do ‘saco azul’ do GES aos altos funcionários do DFME do BES estão interligados, como já se escreveu, com a implementação de alegados esquemas fraudulentos de financiamento do GES e do BES.

A ligação foi feita pela equipa do procurador Ranito a partir do momento em que foram descobertos nos computadores dos principais responsáveis do DFME os mapas de liquidez das sociedades veículo usadas pela Eurofin. Os mapas de liquidez foram ainda explicados ao DCIAP por um funcionário do DFME chamado Pedro Vaz Pinto. Encarado pelo MP como uma testemunha fundamental, Vaz Pinto confirmou a existência desse canal de comunicação aberto com a Eurofin desde 2010 e acrescentou que os mapas eram entegues diretamente a Isabel Almeida e a António Soares para procederem à angariação da liquidez necessária aos veículos da Eurofin.

Os mapas de liquidez das sociedades veículo da Eurofin desobertos no DFME eram fundamentais. Sempre que havia uma urgência de liquidez assinalada nos mapas, o DFME promovia novas emissões de dívida através das próprias sociedades veículo do Credit Suisse e da Eurofin por si geridas. Em todas estas atividades de geração de liquidez para o GES existe um elo comum: quem pagava a conta final eram os clientes do BES ou o próprio banco.

Tais mapas de liquidez eram fundamentais para que o DFME liderado por Isabel Almeida pudesse ir controlando as necessidades das sociedades veículo usadas pela Eurofin para subscrever as emissões de dívida do BES e do GES. Sempre que havia uma urgência de liquidez assinalada nos mapas, o DFME propunha ao conselho de administração do BES a emissão de novas linhas de dívida ou promovia emissões de dívida através das sociedades veículo utilizadas. Em todas estas atividades de geração de liquidez para o GES existe um elo comum: quem pagava a conta final eram sempre os clientes do BES ou o próprio banco.

Ricardo Salgado negou veementemente durante os seus interrogatórios ter tido algum conhecimento sobre tais mapas de liquidez e tentou desvalorizar a proximidade existente entre o BES e a Eurofin.

Ao que o Observador apurou, o MP não tem dúvidas de que esses indícios comprovam que todo o esquema global de fraude foi feito e controlado em Lisboa, tendo Ricardo Salgado, Amílcar Morais Pires e Isabel Almeida como uma espécie de controllers que zelavam pelo cumprimento dos objetivos. E Cláudia Faria e Pedro Costa como executores de alguns dos esquemas de financiamento.

Os esquemas de financiamento

A equipa liderada pelo procurador José Ranito não tem dúvidas de que os ciclos de emissão e colocação de dívida nos clientes do BES fazia com que “os clientes sucessores servissem a dívida e os encargos dos investimentos dos antecedentes, num ciclo de acumulação de passivo sem geração de riqueza”, lê-se num acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de novembro de 2015 a que o Observador teve acesso — e onde está exposta a indiciação do Ministério Público apresentada contra Ricardo Salgado em julho de 2015 aquando da sua constituição como arguido. Indiciação essa que já foi parcialmente noticiada pela revista Sábado.

Traduzindo: as sucessivas emissões de dívida, emitidas com juros mais atraentes do que os depósitos a prazo, tinham como objetivo financiar o pagamento da dívida emitida anteriormente. Uma ideia que é atribuída pelo MP a Ricardo Salgado.

As sucessivas emissões de dívida, emitidas com juros mais atraentes do que os depósitos a prazo, tinham como objetivo financiar o pagamento da dívida emitida anteriormente. Uma ideia que é atribuída a Ricardo Salgado e que teria, segundo o MP, o objetivo de fomentar um "ciclo de acumulação de passivo sem geração de riqueza”.

Antes de pormenorizarmos como funcionavam os esquemas de financiamento fraudulento, é fundamental explicar as empresas envolvidas e contexto de cada uma delas:

O que é um Special Purpose Vehicle?

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Conhecido pela sigla inglesa SPV, refere-se a empresas com personalidade jurídica que também são reconhecidas como sociedade veículo. Isto é, trata-se de sociedades que são criadas apenas e só para um determinado propósito; não têm uma atividade geral.

  • Euroaforro, Poupança Plus e Top Renda, sociedades criadas no centro offshore da ilha de Jersey, foram criadas pelo Credit Suisse nos primeiros anos da década de 2000 com o enquadramento de Special Purpose Vehicle (SPV). Apesar de terem sido criados pelo Credit Suisse, e de serem administrativamente geridos por entidades ligadas a um ex-funcionário do GES (Karl Sanne), a sua gestão era assegurada, segundo o Ministério Público, por elementos do DFME;
  • A Eurofin, por seu lado, tinha sido igualmente fundada por ex-funcionários do GES e aparece em boa parte das emissões de dívida como compradora e revendedora dos títulos de dívida aos clientes do BES. Por seu lado, a Eurofin também usou algumas das suas sociedades veículo para ajudar Ricargo Salgado, nomeadamente a Zyrcan Hartan Corporation, Martz Brenan, Jarvis, Kynsa, Solaris, AA Iberian e EG Premium. Tal como no caso dos SPV do Credit Suisse, era o DFME do BES quem geria materialmente estas sociedades localizadas igualmente em diferentes centros internacionais offshore, como as Ilhas Virgens Britânicas. Por exemplo, foram estes veículos da Eurofin que receberam os titulos Lehman Brothers que o BES possuía depois da falência do banco de investimento norte-americano e que ‘manchavam’ as contas do banco.

Os nomes destas sociedades e as suas ações já tinham sido divulgadas pelo jornal norte-americano Wall Street Journal em agosto de 2014, mas sem que o papel do DFME do BES seja mencionado, como pode verificar aqui.

O que faziam estas 10 sociedades veículo, nomeadamente os 3 SPV criados pelo Credit Suisse?

  • Emitiam títulos de dívida como ações preferenciais que foram adquiridos por clientes do BES por via de séries comerciais (SCAP) ou operações sobre títulos (OST);

O que recebiam?

  • Fluxos de dinheiro provenientes de clientes institucionais do BES e da captação de poupanças de clientes particulares na área de retalho da área financeira, desde julho de 2002 e até julho de 2014;

Por ordem do DFME, seguindo alegadas instruções de Ricardo Salgado, foram igualmente acomodados no balanço destas sociedades títulos de dívida problemáticos emitidos por entidades do GES e por entidades do universo Eurofin (EG Premium, Zyrcan, Martz Brenan) desde pelo menos 2002.

Há dois períodos claros a definir nos esquemas de financiamento que estão a ser investigados pelo Ministério Público:

  1. Entre 2001 e 2009 — em que os clientes são os grandes financiadores
  2. E depois de 2009 — em que o balanço do BES também foi utilizado

No primeiro caso, podemos dar um exemplo prático e genérico do circuito de uma emissão de dívida dos SPV Euroaforro, Poupança Plus e Top Renda até 2009:

  • SPV emitiam títulos de dívida;
  • Os clientes do BES compravam os mesmos, sendo que as taxas de juro propostas eram sempre superiores às dos depósitos e apresentados como de margem garantida;
  • Na maturidade era o Eurofin quem pagava o juro contratualizado; (uma nota breve: a partir de dezembro de 2013, estes títulos de dívida passaram a ser adquiridos à Eurofin pela ESAF, que revendeu os mesmos a clientes do BES através de um fundo do Luxemburgo);
  • Para pagar esse juro, o Eurofin recebia fundos de entidades da área não financeira do GES;
  • Esses fundos da área não financeira, por sua vez, eram obtidos através de novas emissões de dívida que eram recolocadas nos clientes do BES com taxas de juros mais atraentes do que os depósitos

Conclusão: Este ciclo de colocação de dívida nos clientes fazia com que, na óptica do Ministério Público, os clientes sucessores servissem a dívida e os encargos dos investimentos dos antecedentes, num ciclo de acumulação de passivo sem geração de riqueza.

Tal como o Observador já noticiou, Ricardo Salgado afirmou em sede de interrogatório no DCIAP que a Espírito Santo (ES) Resources, uma das principais empresas da área não financeira do GES, ‘colocou nas mãos’ da Eurofin um valor total de cerca de 4 mil milhões de euros. A ES Resources tinha sede no centro offshore das Bahamas e, por exemplo, detinha a Escom e outros activos em África e na América do Sul, chegando igualmente a ser acionista da Eurofin com uma participação de cerca de 23% do capital.

Clientes prejudicados através da ESAF

Foi em dezembro de 2013 que o governador Carlos Costa impôs à família Espírio Santo a execução do famoso plano (falhado) de ring fencing para resguardar o BES e a Espírito Santo Financial Group (subholding da área financeira) dos buracos dramáticos que existiam na área não financeira do BES, nomeadamente na Espírito Santo International (ESI). Mas, como o Observador explicou aqui, enquanto o regulador tentava separar as águas, a equipa de Ricardo Salgado alegadamente não parava de contaminar o BES ao vender a dívida da ESI aos seus clientes de retalho e institucionais.

Um dos melhores exemplos disso mesmo foi a utilização dos fundos de investimento da Espírito Santo Activos Financeiros (ESAF), o ES Rendimento e o ES Liquidez, para a compra de dívida da ESI. O jornal Público deu o exclusivo em setembro de 2013 — dois meses antes de começarem a soar as campainhas vermelhas no Banco de Portugal. Uma auditoria da KPMG tinha detectado um excesso de investimento daqueles dois fundos da ESAF em dívida de sociedades do GES. Isto é, os clientes do BES que subscreveram aqueles dois fundos tinham financiado a família Espírito Santo em mais de 2,2 mil milhões de euros desde 2008.

Obviamente que as emissões de dívida da ESI nunca seriam possíveis se as contas fossem verdadeiras. O que não acontecia porque, de acordo com o Banco de Portugal e com o MP, Ricardo Salgado tinha passado a solicitar desde 2009 ao contabilista Francisco Machado da Cruz que alterasse as contas da sociedade, escondendo um passivo cujo valor total ultrapassou os 3,5 mil milhões de euros.

A equipa do procurador José Ranito fez outras contas, com base na informação que lhe foi prestada pelo Banco de Portugal e concluiu que, entre dezembro de 2011 e dezembro de 2013, os clientes do BES investiram os seguintes montantes nas várias operações de emissão de dívida da ESI:

  • Fundos ES Rendimento e ES Liquidez, geridos pela ESAF e subscritos por clientes do BES, compraram títulos de dívida da ESI no valor de 1.035 milhões de euros. (Uma pequena nota relevante: aqueles dois fundos da ESAF tinham carteiras que eram compostas em 83% por títulos de empresas do GES até novembro de 2013, altura em que a lei impôs uma redução dos investimentos com partes relacionadas até um tecto de 20% do total da carteira);
  • Clientes institucionais do BES investiram um total de 2.611 milhões de euros em dívida (notes) da ESI;
  • Clientes de retalho do BES pagaram cerca de 1.400 milhões de euros por títulos de dívida da ESI.

Obviamente que tal nunca seria possível se as contas da ESI fossem verdadeiras e mostrassem os buracos que continham. O que não acontecia porque, de acordo com o Banco de Portugal e com o MP, Ricardo Salgado teria passado a solicitar desde 2009 ao contabilista Francisco Machado da Cruz que alterasse as contas da sociedade — alegação que Salgado refuta desde sempre. Machado da Cruz, contudo, terá elaborado novos registos e ordenou a Pierre Butty, quadro da Espírito Santo Services, que alterasse os valores reais inscritos nos registos de contabilidade daquela empresa de serviços de partilhados através do programa “Canon Therefore”.

Assim, terão sido ocultados os seguintes prejuízos:

Estes investimentos da ESAF também não seriam possíveis se o processo de notação de rating da ESI realizado no BES tivesse por base a contabilidade verdadeira da sociedade. E aqui, de acordo com os indícios recolhidos pelo MP, Ricardo Salgado terá voltado a protagonizar um episódio relevante ao ordenar a Carlos Calvário, ex-diretor do Departamento de Risco Global do BES, a realização de um processo de notação da ESI mas com base em demonstrações oficiais de contas que não eram verdadeiras e que o próprio Salgado terá disponibilizado a Calvário.

O BES Vida e o triplo do preço

O financiamento da Eurofin, como já vimos, era essencial para continuar a servir como intermediário nas operações entre o BES e os seus clientes. Era por isso essencial, de acordo com o MP, gerar mais valias para financiar a Eurofin.

Eis um exemplo de um esquema de financiamento que terá ocorrido entre 2009 e 2013:

  • DFME ordena emissão de dívida BES pela sucursal de Londres com maturidades longas;
  • BES Vida (seguradora do BES) compra dívida em mercado primário para as carteiras geridas pelo DFME;
  • BES Vida, que tinha o arguido António Soares como chief financial officer, revende títulos à Eurofin pelo mesmo preço que comprou;
  • A Eurofin recoloca a mesma dívida, mas com um valor superior ao que comprou, nos clientes do BES através de produtos de poupança estruturados geridos pelo Departamento de Gestão de Poupança do BES geridos por Cláudia Faria;
  • A Eurofin reteve a mais valia da operação, diretamente ou através dos veículos por si detidos ou geridos.
  • Essa mais-valia vai servir para financiar a emissão de mais dívida do GES. Daí o MP ter a convicção que a dívida do GES é feita à custa do BES. Não só porque são os clientes que compram os titulos de divida, como também acabam por financiar os lucros obtidos pela Eurofin.

A partir de dezembro de 2013, com a pressão do Banco de Portugal a intensificar-se e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários a obrigar os fundos da ESAF a diminuirem a exposição ao GES, a importância da Eurofin aumentou ainda mais.

Mais um exemplo de um novo esquema:

  • DFME ordena emissão de dívida BES pela sucursal de Londres com maturidades longas (+ de 30 anos);
  • Eurofin compra titulos de dívida e revende à ESAF, que tinha o arguido Pedro Costa como administrador executivo. Na prática, o BES continuava a comprar dívida do GES, contrariando recomendações do Banco de Portugal;
  • ESAF coloca a dívida num fundo no Luxemburgo que, por sua vez, recoloca esses títulos para venda na plataforma BES Ordens;
  • Os títulos são colocados nos clientes de gestão discricionária de carteiras com uma particularidade: os clientes adquirem os títulos pelo triplo do preço pago pela Eurofin à ESAF.

Outro pormenor: de acordo com a equipa do procurador José Ranito, todos os preços de colocação de dívida foram apurados de acordo com os cálculos feitos por um funcionário do DFME, seguindo alegadas instruções acordadas entre Ricardo Salgado, Amílcar Morais Pires e Isabel Almeida. O objetivo era simples: angariar fundos para limpar o passivo das SPV geridas pelo DFME que iam ficando com o lixo da dívida do GES.

Como o BES foi prejudicado

E para tal usou-se o balanço do BES. Um exemplo disso mesmo ocorreu nos primeiros meses de 2014, em que o desespero da equipa de gestão liderada por Ricardo Salgado já era total. O que aconteceu?

O que são obrigações com cupão zero?

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São títulos de dívida sem juros, por não terem cupão — onde costuma ser fixado o juro a pagar pelo emitente. As obrigações cupão zero são emitidas a desconto face ao seu valor facial, podendo ser adquiridas a um valor abaixo do seu valor nominal. A diferença entre o valor facial e o de desconto representa os juros ganhos pelo investidor.

  • A Sucursal do BES Luxemburgo emitiu 13 séries de dívida BES, de cupão zero, com maturidade até 2045. Valor: 5000 milhões de euros;
  • ESAF adquire títulos pelo valor de 468 milhões de euros e revende pelo mesmo preço à Eurofin. Juro implicito de cerca de 8%;
  • Eurofin recoloca os títulos em clientes de gestão discricionária do BES (e com ações preferenciais nos 3 SPV do Credit Suisse: Euroaforro, Poupança Plus e Top Renda) por cerca de 1.300 milhões. Isto é, os clientes que ja tinham ações preferenciais de sociedades veículo onde estava acomodada parte da dívida/lixo do GES, foram duplamente penalizados.

Eis uma infografia que demonstra o que deveria ter acontecido (caminho directo) e o que aconteceu (caminho sinuoso):

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Infografia de Andreia Reisinho Costa e David Almas

Qual foi a consequência:

  • BES terá sido prejudicado em cerca de 800 milhões de euros porque, de acordo com o MP, terá suportado a geração de liquidez que beneficiou a Eurofin sem que tenha sido estabelecido um crédito a que o banco teria direito, lê-se no acórdão da Relação de Lisboa de novembro último.
  • Isso permitiu igualmente que o veículo Martz Brennan (do Eurofin mas gerido pelo DFME) eliminasse cerca de 177 milhões de euros que detinha da Espírito Santo Turismo;
  • Permitiu ainda que fosse abatida dívida da ESI no valor de 362 milhões de euros (valor de dezembro de 2013) colocadas nos SPV do Credit Suisse (Euroaforro, Poupança Plus e Top Renda).

O último acto em Lisboa

Em maio de 2014 estávamos, sem ninguém saber, perante os derradeiros momentos de Ricardo Salgado à frente do BES. O seu último acto significativo enquanto banqueiro foi a operação de aumento de capital social do BES. Obrigado pela CMVM a publicar um prospecto em que a saúde periclitante do BES e do GES (com destaque para as informações sobre irregularidades na ESI) ficou exposta aos olhos do mundo, o banco liderado por Salgado foi autorizado a proceder a um aumento de capital até 1045 milhões de euros.

A operação foi, aparentemente, um êxito, já que a procura superou a oferta — facto que, ainda hoje, Ricardo Salgado usa como um trunfo.

Há, contudo, fortes indícios de que o BES tenha financiado uma parte dessa operação. Confuso? Sim, pode ser confuso perceber que o BES emprestou dinheiro a uma entidade da família Espírito Santo para acorrer ao aumento de capital do próprio banco. Mas terá sido isso que aconteceu.

A operação de aumento de capital social anunciada em maio de 2014 foi, aparentemente, um êxito, já que a procura superou a oferta -- facto que, ainda hoje, Ricardo Salgado usa como um trunfo. Há, contudo, fortes indícios de que o BES tenha financiado uma parte de essa operação. Confuso? Sim, pode ser confuso perceber que o BES emprestou 152 milhões de euros a uma entidade da família Espírito Santo para acorrer ao aumento de capital do próprio banco. Mas terá sido isso que aconteceu.

Em maio de 2014, a Espírito Santo Financial Group (ESFG), holding da área financeira, recebeu um financiameno de 152 milhões de euros do BES para acorrer ao aumento de capital social.

O problema é que Ricardo Salgado terá convencido os responsáveis que aprovaram este empréstimo no BES de que a ESFG tinha garantias robustas (aparentemente, as próprias ações do BES detidas pela ESFG) quando, na realidade, diversos ónus já incidiam sobre esses títulos, o que impossibilitava a aceitação como garantia de pagamento.

Resumindo e concluindo, eis a conta final de todos estes supostos esquemas no que à responsabilidade criminal diz respeito:

Rectificação: Ricardo Salgado foi ouvido como testemunha no caso de insider trading relacionado com a compra de ações da EDP durante a Oferta Pública de Subscrição (OPS) da subsidiária da EDP Renováveis em 2008. Ao contrário do que o Observador escreveu, Salgado não foi constituído arguido neste caso — inquérito já encerrado e que nada tem a ver com o caso BES.

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