O Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) tem vindo a reconstituir os fluxos financeiros com origem em empresas offshore secretas que o Grupo Espírito Santo (GES) escondeu das diferentes entidades de supervisão europeias com quem estava obrigado a colaborar. Os autos dos inquéritos ao chamado Universo Espírito Santo contêm, ao que o Observador apurou junto de diversas fontes judiciais e da família Espírito Santo, um conjunto alargado e extenso de documentação que tem vindo a ser apreendida desde 2014 a diversos responsáveis do Banco Espírito Santo (BES) e do GES.

Não existe um documento único, simples e claro que descreva uma folha de pagamentos e identifique os destinatários do dinheiro, mas o cruzamento de informação já permitiu identificar um número significativo de destinatários de parte dos 300 milhões de euros transferidos pelas sociedades do GES sedeadas em diversos paraísos fiscais, sendo que a documentação já recolhida abrange um período entre 2004 e 2014 e permite ao DCIAP investigar indícios da alegada prática dos crimes de corrupção, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais.

O DCIAP tem como certo, ao que o Observador apurou, que o GES utilizou três sociedades offshore para executar pagamentos:

  1. A ES Enterprises I
  2. A ES Enterprises II
  3. A ES Services

De acordo com informações recolhidas pelo Observador junto de fontes da família Espírito Santo, existem quatro grupos de destinatários:

1. Membros da família Espírito Santo, administradores e altos quadros do BES e do GES

Ricardo Salgado sempre negou que a ES Enterprises servisse para pagamentos alegadamente ilícitos, esclarecendo na Comissão Parlamentar de Inquérito ao caso BES que a sociedade existia para pagar serviços partilhados do grupo. Certo é que fontes próximas de Salgado terão garantido, segundo notícia do Público, que aquela empresa serviria para pagar “bónus a colaboradores do GES que trabalhavam em várias sociedades”. Em reação ao Observador, o ex-presidente executivo respondeu através da sua assessoria de imprensa: “O dr. Ricardo Salgado não comenta processos em segredo de justiça”.

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Ao que o Observador apurou, terá sido precisamente essa a primeira utilização da ES Enterprises: pagar remunerações extra, e sem qualquer evidência fiscal, a administradores do BES e do GES, bem como a altos quadros de ambas as instituições. Por exemplo, alguns dos diretores do importante Departamento Financeiro, de Mercados e Estudos do BES terão recebido pagamentos “extra” através da ES Enterprises. Era uma espécie de ‘bónus’ pago em território internacional que fugia ao radar do fisco e beneficiava igualmente diversos membros dos cinco clãs da família Espírito Santo.

Neste último caso, a ES Enterprises terá servido para pagar 5 milhões de euros aos cinco clãs Espírito Santo (liderados por Ricardo Salgado, José Manuel Espírito Santo, Manuel Fernando Moniz Galvão Espírito Santo, António Ricciardi e Mosqueira Amaral) que tiveram origem na comissão que a German Submarine Consortium pagou à ESCOM no contexto da venda de dois submarinos a Portugal. Este é apenas um exemplo de várias situações semelhantes que já foram detetadas pelas autoridades.

2. Titulares de órgãos sociais de empresas participadas pelo BES e pelo GES

Era prática comum, igualmente, os offshores secretos do GES transferirem fundos para membros do conselho de administração e titulares de órgão sociais de sociedades participadas pelo BES e pelo GES. Uma dessas sociedades é a Portugal Telecom, verificando-se a referenciação de diversos responsáveis daquela sociedade como tendo recebido alegados pagamentos da ES Enterprises I e II.

A excessiva proximidade e dependência entre a PT e o BES, maior acionista particular português daquela operadora, sempre foi muito criticada — e acabou por levar à sua queda. Os cerca de 900 milhões de euros que a administração da PT decidiu investir em dívida do GES (Rio Forte), numa altura em que o grupo da família Espírito Santo estava em desespero financeiro e numa situação de iminente insolvência, é o maior exemplo dessa dependência da PT face à família Espírito Santo. A relação causa/efeito entre os fundos que terão sido transferidos para os responsáveis da PT e este investimento decidido pela administração da tecnológica é algo que, ao que Observador apurou, ainda não está consolidado em termos de prova. Tanto mais que os pagamentos realizados pela ES Enterprises a gestores da PT e de outras empresas são regulares e iniciaram-se na década passada.

3. Titulares de cargos políticos em Portugal

Como alegada contrapartida pela adjudicação de obras ou contratos públicos em que o BES e o GES eram parte interessada, terão ocorrido pagamentos a titulares de cargos políticos e públicos portugueses. Tais alegadas contrapartidas terão sido pagas a políticos de diferentes partidos e a titulares de cargos públicos diversificados.

Os interesses económicos do BES e do GES atravessaram praticamente todos os setores económicos essenciais de Portugal e uma boa parte dos principais contratos públicos adjudicados pelos diversos governos desde o final dos anos 90. Será por isso uma tarefa complexa estabelecer uma causa/efeito entre os pagamentos realizados e uma adjudicação concreta de um determinado contrato público a sociedades onde o BES e o GES tinham interesses económicos.

Um caso em que já existirão indícios concretos prende-se com José Sócrates. Os Panama Papers vieram confirmar a suspeita do Ministério Público (MP) de que a ES Enterprises será a origem dos cerca de 12,5 milhões de euros que Hélder Bataglia, líder da ESCOM, transferiu para as contas do empresário Joaquim Barroca (movimentadas por Carlos Santos Silva) e para o amigo de José Sócrates na Suíça. Segundo o MP, essas transferências tinham o ex-primeiro-ministro como destinatário.

4. Titulares de cargos políticos na Venezuela

Existem ainda indícios de pagamentos de alegadas contrapartidas a responsáveis políticos e de empresas públicas da Venezuela. A ligação entre a Venezuela e o BES e o GES é antiga e foi reforçada de forma muito significativa a partir do momento em que Hugo Chávez se tornou Presidente. Foi nessa altura que Ricardo Salgado terá solicitado a Hélder Bataglia, líder da ESCOM, que estabelecesse os primeiros contactos com o regime de Chávez — o que foi conseguido com grande eficácia.

Não só o Estado venezuelano passou a ser cliente do BES e investidor no GES, como a empresa pública PDVSA – Petróleos da Venezuela abriu uma conta no banco da família Espírito Santo por onde passava uma parte das receitas das vendas daquela petrolífera. Segundo o Diário Económico, a PDVSA tinha mais de 2 mil milhões de euros em depósitos no BES.

A Espírito Santo International, uma das holdings do GES que está em processo de insolvência, recebeu mais de 5 mil milhões de euros de investimentos entre 2001 e 2013, segundo o Sol. Tal como foram entidades venezuelanas que, na hora de maior desespero de Ricardo Salgado para salvar o grupo da sua família, acudiram ao ex-homem forte do GES e emprestaram fundos essenciais mas acabaram por perder mais de 700 milhões de euros.

Segundo o Económico, os venezuelanos chegaram a prometer a Ricardo Salgado que a PDVSA entregaria mais de 3,5 mil milhões de euros de ativos para a ESAF – Espírito Santo Ativos Financeiros gerir — o que não veio a verificar-se. Também o Wall Street Journal noticiou em 2014 que o banco de investimento Goldman Sachs emprestou mais de 834 milhões de dólares (739 milhões de euros, ao câmbio atual) ao BES para financiar a construção de uma refinaria na costa venezuelana (Puerto la Cruz) — refinaria essa que teria sido adjudicada pela PDVSA a uma empresa chinesa chamada Wison Engineering Services Company. Não só o Goldman Sachs perdeu o seu investimento, como a Wison foi ‘apanhada’ pelas autoridades chinesas em investigações relacionadas com alegadas práticas de corrupção. Todos estes exemplos atestam a proximidade que o BES e o GES liderados por Ricardo Salgado tinham com o regime venezuelano.

Acrescentada reação de Ricardo Salgado enviada pela sua assessoria de imprensa