A pouca antecipação das autoridades públicas aos mais que expectáveis festejos desta noite fazia temer complicações. Só por volta das 16h30 desta terça-feira, quando milhares de adeptos do Sporting já se concentravam nas imediações do Estádio José Alvalade, é que a PSP deu uma conferência de imprensa para explicar os detalhes da operação de segurança montada para as horas seguintes ao jogo, para anunciar o percurso do autocarro por Lisboa, para especificar que não haveria roulottes nem venda de álcool na rua, para assinalar quais as estradas que estariam cortadas durante os festejos e para insistir que a tolerância seria zero: se alguém fosse apanhado a consumir álcool e se recusasse a parar, seria detido.
Duas horas e meia depois, e uma hora antes do jogo, quando uma multidão ainda maior já enchia o recinto em torno do estádio, antecipando a festa de um Campeonato que seria ganho ao fim de um jejum de 19 anos, a Direção-Geral da Saúde veio dizer que a concentração de adeptos representaria um “risco acrescido” para a saúde pública. Quando as autoridades públicas se pronunciaram sobre o modo como deveria ser vivida a noite caso o Sporting se sagrasse campeão, a maioria das pessoas que haveriam de protagonizar a festa já se encontrava na rua. Em Alvalade e não só.
Não poderia, portanto, surpreender que o jogo decisivo do título tenha ficado marcado por um contraste fundamental: no interior do estádio, só as bancadas vazias, os jornalistas e um punhado de convidados, sobretudo dirigentes e familiares dos jogadores, testemunharam o Sporting vencer o Boavista por 1-0 (golo de Paulinho aos 36 minutos); à porta do Estádio José Alvalade, por seu turno, cerca de 20 mil pessoas assistiam ao jogo através de meios rudimentares, incluindo um ecrã gigante instalado num camião da claque Juventude Leonina.
[Vídeo. Como a aguardada festa verde foi manchada pela violência:]
Quando a festa começou nas imediações do estádio, ao início da tarde, ainda eram escassas as informações sobre o que iria acontecer em termos logísticos — as autoridades só as dariam quando o ajuntamento de milhares de adeptos em Alvalade já levava algumas horas. Ao longo dos últimos dias, o Observador tinha procurado recolher informações sobre o planeamento dos festejos para publicar um explicador sobre o assunto, mas a conclusão aparente era simples: até ao dia do próprio jogo, pouco parecia estar planeado. Ou melhor: tudo parecia estar centrado no depois, caso houvesse festa, sem que se soubesse praticamente nada das instruções no durante.
Na quinta-feira passada, depois de o Governo não ter sido capaz de responder a perguntas sobre os festejos numa conferência de imprensa do Conselho de Ministros, o secretário de Estado do Desporto e da Juventude, João Paulo Rebelo, dissera ao Canal 11 que tudo estava a ser preparado em articulação com a autarquia, o Sporting, as forças de segurança e o Ministério da Administração Interna. Porém, Rebelo não avançou detalhes. Ao Observador, as várias entidades remeteram explicações para mais tarde ou para outras entidades — e asseguraram que tudo seria feito respeitando as regras da DGS. Para o dia do próprio jogo ficou marcada a tal conferência de imprensa da polícia (agendada para o meio-dia, atrasou várias horas) e só depois desse pronunciamento público, já com milhares de adeptos na rua, a DGS veio alertar para o risco sanitário.
Se da parte das autoridades o planeamento aparentava ser escasso até ao dia do próprio jogo, o mesmo não se pode dizer das claques que organizaram os festejos na proximidade do estádio. Na segunda-feira, por exemplo, a Juventude Leonina anunciou nas redes sociais o plano para o dia do jogo: concentração a partir das 14h junto ao estádio, ecrã gigante para ver a partida e até a atuação de DJs. Na publicação, a claque do Sporting alertou que “o cumprimento das regras da DGS é obrigatório”, incluindo “o uso de máscara”. No mesmo dia, a organização sportinguista explicou publicamente que os detalhes do evento tinham sido comunicados “ao Gabinete de Apoio do Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, à DGS, às Forças de Segurança e demais instituições envolvidas”. “Tendo em conta a previsão de elevada adesão ao evento, vimos por este meio apelar ao bom senso de todos”, acrescentou a claque.
Apesar da pandemia, a noite era de festejos esperados e anunciados, mas só a quatro horas do próprio jogo as autoridades apresentaram o plano de segurança para a noite.
A noite da celebração da vitória sportinguista, que deveria ser de festa, acabaria por ficar marcada por duros confrontos entre adeptos e forças de segurança, incluindo duas violentas cargas policiais em que foram disparadas balas de borracha sobre os apoiantes do Sporting (também atingidos com bastonadas) em resposta ao arremesso de garrafas e outros objetos contra os agentes da polícia.
A primeira carga aconteceu no exterior do Estádio José Alvalade, ainda durante a primeira parte do jogo, poucos minutos depois do golo do Sporting. De acordo com informações recolhidas pelos repórteres do Observador no local, na origem do momento que rompeu com a tranquilidade que vinha marcando a presença dos adeptos no estádio ao longo da tarde esteve a necessidade de abrir caminho entre a multidão para permitir a passagem de duas ambulâncias. Os dois veículos de socorro chegavam ao estádio a partir da zona norte e encaminhavam-se para o local onde se concentravam as claques, tendo de passar pelo interior de um túnel onde estavam várias centenas de adeptos. Quando os primeiros batedores da polícia tentaram abrir caminho por entre aquela via, que antes não tinha sido cortada, foram recebidos com o arremesso de objetos, incluindo garrafas. Esse primeiro confronto obrigou à chamada das equipas de intervenção, que carregaram sobre os adeptos para libertar a via e dispararam balas de borracha sobre quem ali ficara (atingindo, inclusivamente, um repórter da TVI que não ficou ferido).
Os ânimos acabariam por acalmar no exterior de Alvalade (embora sem possibilidade de continuar a ver o encontro), mas o jogo terminaria já sob esta nuvem de violência que se vivia a escassos metros do relvado. A PSP chegou até a ponderar, face à primeira vaga de confrontos, a possibilidade do autocarro panorâmico com jogadores e equipa técnica do Sporting não sair de Alvalade rumo ao Marquês de Pombal — o que acabou por não se confirmar. “Está em estudo essa hipótese. Vamos analisar”, dizia à RTP o comissário da PSP Artur Serafim.
A festa no relvado, as declarações e a partida de Alvalade
Fora do tumulto que se vira no exterior de Alvalade, no relvado o golo de Paulinho mostrava-se suficiente para o Sporting se sagrar campeão nacional 19 anos depois de João Pinto, Mário Jardel e companhia infernizarem os adversários país fora.
No relvado, apesar das bancadas despidas, os jogadores e a equipa técnica festejavam . Emocionado, o capitão Coates — que levantaria a taça mais tarde — diria à televisão do clube: “Lembro-me que a primeira vez que cheguei aqui disse que vinha para ser campeão. Talvez tenha demorado mais tempo do que imaginava, mas era um sonho e lutei sempre para isto. É um sentimento inexplicável. Passem dias, meses ou anos, vou recordar sempre”.
Líder dá a vez a líder e a seguir falava o treinador que comandou o grupo até ao título de campeão: Rúben Amorim, o treinador que formalmente ainda não é treinador mas que fora da papelada burocrática fez o que tantos formalmente preparados não tinham conseguido. De camisola do clube vestida, ele que cresceu com o rival Benfica no coração antes de assumir as cores do leão, falou na flash interview de um dos segredos do sucesso: “Juntou-se um grupo em que não havia vedetas”. Amorim quis até falar em anti-vedetas por excelência: “o Vitorino” (Antunes) que “dá tudo” e o “João Pereira” que só foi titular neste Sporting uma única vez.
Nem tudo no dia-a-dia de um clube é, porém, quantificável, nem tudo se resume a talento, um grupo de jogadores se faz só de jogaços de encher o olho. “São jogadores com títulos que não tiveram tanto tempo [de jogo] mas que foram sempre muito importantes. E foram importantes porque sabiam que quando fosse preciso estavam lá dentro”, voltava a dizer Rúben Amorim, que na sua carreira foi muitas vezes tudo menos uma estrela e que, não tendo jogado sempre como titular nas suas épocas no Benfica, conhece bem o contributo que quem joga menos pode dar ou não dar nos treinos.
Os jogadores ainda se abraçavam, ainda cantavam agarrados aos telemóveis e às transmissões em direto nas redes sociais, quando Amorim explicou um dos trunfos que fez este grupo ser feliz: fazer de fraquezas forças, saber sofrer porque “sofrer também faz parte da nossa identidade”. Mas era preciso sair e voltar a entrar no relvado: um a um, os jogadores eram chamados nas colunas pelo speaker para um palanque no centro do terreno e muitos apareciam de cabelo já pintado de verde. E Paulinho, não o avançado que marcou o golo do título mas o roupeiro de equipamentos, agitava bandeiras com entusiasmo.
PAULINHO ????????#EUSOUCAMPEÃO pic.twitter.com/vlSKF9FMgZ
— Sporting CP ???? (@SportingCP) May 11, 2021
Ao som de “We Are The Champions”, dos Queen, o capitão Sebastián Coates levantava a desejada taça de campeão nacional, que os colegas reclamariam para si. O jovem Tiago Tomás, que estava “na barriga da mãe” (disse-o ele) na última vez que o Sporting foi campeão, diria aos jornalistas que este era “o melhor dia” da sua vida. E até os pais falariam, orgulhosos do filho. O presidente Frederico Varandas quase nada diria, alertando que “a noite é deles” (dos jogadores).
O jovem prodígio Nuno Mendes, “muito feliz” e com “o coração a palpitar”, fintaria as questões sobre o futuro e sobre se continuará no Sporting no próximo ano dizendo: “Agora é festejar, não estou a pensar nisso. É acabar o campeonato e depois logo se vê”. O mais experiente João Mário, que elogiaria o grupo de trabalho (“espetacular, o melhor com que trabalhei”), manifestava vontade de ficar embora esteja ainda emprestado pelo Inter de Milão: “Vamos ver. Hoje é dia de festejar. Vou falar com o presidente e com todos… Claro que sim, gosto muito do Sporting e vamos ver”. E o seu parceiro no meio-campo João Palhinha, com “a voz um bocado rouca”, dizia que estavam todos a viver “um momento inesquecível para as nossas vidas” que queria ver repetido: “Queremos que se torne uma rotina neste Sporting. Mas ainda temos muito para viver esta noite, temos de festejar com os nossos adeptos por Lisboa”.
Na conferência de imprensa pós-jogo, Rúben Amorim ainda pediria alguma paciência “para daqui a um mês e meio se perdermos um joguinho” e alguma calma na euforia (“para o ano há Liga dos Campeões e se este ano foi de sofrimento o próximo vai ser ainda mais, temos um percurso e não vamos dar passos maiores do que a perna”) antes dos jogadores invadirem a sala, lhe darem um banho de gelo e usarem os microfones para dizerem frases como “o mister Amorim está castigado por ser campeão”, numa referência aos vários castigos aplicados durante a época. A melhor notícia para os sportinguistas viria, porém, do próprio Rúben Amorim, que prometia ficar para o próximo ano: “Tenho contrato, estou muito feliz aqui, portanto vou continuar”.
Por volta das 2h, o autocarro panorâmico do Sporting saía de Alvalade rumo ao Marquês, com várias “desacelerações” e paragens em artérias da cidade de Lisboa para celebrar com os adeptos que, nos passeios e nas estradas, enchiam as ruas da capital. Não era em Lisboa, porém, que as ruas se enchiam de sportinguistas. Um pouco por todo o país, os adeptos saíam à rua e cantavam por um clube que ou nunca tinham visto ser campeão (caso tivessem 18 anos ou menos) ou que já não viam chegar ao título há quase 20 anos.
O título era festejado no Porto, em Coimbra, em Londres, nos Estados Unidos da América, em Angola, em França. E ainda se ouviriam histórias únicas: a de Mário Duarte, o emigrante na Suíça que veio a Lisboa só para festejar o título, e a dos adeptos que compraram uma carrinha por 100 euros, transformaram-na e viajaram nela desde a Corredoura até Lisboa.
A violência no Marquês que manchou a noite
A rota da festa, que fora anunciada no próprio dia, ainda haveria de sofrer alterações de última hora por ordem da polícia. Novamente por conta da pandemia, e com o objetivo de reduzir ao mínimo os ajuntamentos provocados pela passagem do autocarro da equipa, ficou decidido que o percurso não teria paragens: do estádio, os campeões nacionais seguiriam rumo à rotunda do Marquês de Pombal — lugar clássico dos festejos — pelo eixo central da cidade, ao longo das enormes avenidas que atravessam Lisboa de uma ponta à outra. Todavia, logo à partida, as autoridades viram-se obrigadas a modificar o percurso. Primeiro, o clima de tensão que se vivia fora do estádio levou a polícia a equacionar, ainda que brevemente, a suspensão do percurso do autocarro; depois, uma enorme concentração de adeptos junto à Segunda Circular representava um problema de segurança para o autocarro, que acabaria por se encaminhar para o Campo Grande por outra via.
Ao longo das avenidas, pelas quais se espalharam milhares de adeptos, tudo aparentou estar mais organizado. É certo que a dispersão por vários quilómetros ajudou a conter os ajuntamentos e a garantir um percurso relativamente tranquilo, mas não foi suficiente para evitar que também no destino — o Marquês de Pombal — se repetissem os confrontos. O plano inicial era que o autocarro contornasse a rotunda duas vezes antes de voltar a atravessar a cidade rumo ao estádio de Alvalade, sem paragens, durante o espetáculo de fogo de artifício. Porém, ao contrário do que aconteceu nas longas avenidas lisboetas que conduzem àquele ponto central da cidade, o Marquês de Pombal foi fortemente armado com barreiras de segurança que deixaram os adeptos longe do lugar de passagem da equipa.
A grande concentração de adeptos junto às grades — algumas delas que acabaram mesmo por ser derrubadas — levou a polícia a carregar sobre a multidão pela segunda vez numa noite, desta vez com mais violência, num cenário em que choviam garrafas, como testemunhou a reportagem do Observador no Marquês de Pombal. Várias pessoas ficaram feridas durante os confrontos entre a polícia e os adeptos e pelo menos uma dezena teve de ser assistidas pelo INEM e pelos bombeiros — e tudo isto antes de o autocarro do Sporting sequer chegar à histórica praça lisboeta. Pouco antes da chegada dos jogadores, a polícia reforçou a presença de elementos das equipas de intervenção para assegurar que a passagem do autocarro decorria em segurança. No final, após os dois grandes momentos de confronto violento, o autocarro do Sporting acabaria mesmo por passar pelo Marquês de Pombal como previsto para assinalar o campeonato, mas os adeptos que escolheram aquele local para festejar tiveram de ver o autocarro da equipa a mais de 50 metros de distância.
Com o Sporting na iminência de vencer o Campeonato no jogo frente ao Boavista, os festejos desta terça-feira eram inevitáveis e anunciados. Apesar disso, o planeamento das autoridades, anunciado a escassas horas da partida, aparentou não ter essa inevitabilidade em conta. Depois dos primeiros confrontos, ainda em Alvalade, a PSP reagiu pela voz do comissário Artur Serafim, que falou em “vários feridos”, mas nenhum deles grave, sem acrescentar detalhes sobre o planeamento da operação desta terça-feira.
Ao Observador, o gabinete do ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, que tutela as polícias, recusou comentar o caso. “As questões operacionais são com a PSP”, assegurou um porta-voz do ministro, que acrescentou que Cabrita nem sequer esteve durante esta terça-feira especialmente atento ao que se passava em Alvalade: teve um jantar com o ministro homólogo da Eslovénia. Já a caminho das 5h da manhã, a RTP chegou a ter uma intervenção do porta-voz da PSP prometida para fazer um balanço dos acontecimentos da noite — mas o agente acabou por cancelar a entrevista e por comunicar que a polícia fará esclarecimentos na tarde de quarta-feira.