Chegou ao fim mais uma corrida de Carlos Tavares. Diferenças de opiniões conduziram o gestor português, de 66 anos, à demissão do grupo automóvel Stellantis que terá sempre o seu nome como fundador da empresa que resultou, em 2021, da fusão da PSA (dona da Peugeot e da Citroën) e da FCA (que tinha a Fiat e a Chrysler), criando, então, um grupo com 14 marcas entre as quais também a Opel que tinha sido adquirida à General Motors já por Carlos Tavares como CEO da PSA.
Depois de em setembro, a Stellantis ter feito uma inédita mudança de projeções em termos de resultados, a porta de saída abriu-se para Carlos Tavares. E este domingo a porta fechou-se atrás do gestor. Sai, com efeitos imediatos, da presidência executiva da Stellantis, antes do tempo que tinha traçado para iniciar a reforma. Tinha apontado 2026 como essa mudança na sua vida. Mas esse dia chega mais cedo. Carlos Tavares ainda não falou depois do anúncio de que se tinha demitido. O “psicopata do desempenho”, como o próprio se apelidou, não aguentou aquela comunicação de setembro em que projetou um corte na margem operacional. Já não seria de dois dígitos e apontava-se, então, para um valor entre 5,5% e 7% em 2024, apontando o dedo ao mercado norte-americano. E ainda indicava que teria um valor negativo dos meios libertos pela operação (depois de investimentos) entre 5 e 10 mil milhões de euros.
Desde esse dia 30 de setembro, várias foram as notícias que davam conta de que Carlos Tavares estaria de saída. Mas um comunicado da Stellantis punha água na fervura. O presidente executivo sairia para reformar-se em 2026. Indicava, nesse comunicado de outubro, que a companhia já estava à procura de um sucessor para inícios de 2026. Agora o trabalho tem de ser acelerado. A Stellantis indicou este domingo que o processo será agora concluído na primeira metade de 2025 e reafirma as projeções financeiras de setembro.
Stellantis anuncia que Carlos Tavares vai reformar-se em 2026
Para Carlos Tavares vive-se o darwinismo do setor automóvel. A transformação está aí. Carlos Tavares indicava, no início de outubro, que era “nosso dever e responsabilidade ética adaptar-nos e preparar-nos para o futuro, melhor e mais rápido do que os nossos concorrentes, para oferecer uma mobilidade limpa, segura e acessível”. No final desse mês apresentou os resultados do terceiro trimestre que contavam a história: as receitas caíram 27% em comparação com o trimestre homólogo (para 33 mil milhões), tendo registado uma queda de 42% na América do Norte.
A estratégia para dar a volta às vendas em queda e à desvalorização em bolsa (vão com uma descida de 40% no ano) de Carlos Tavares não ia ao encontro do que o conselho de administração pretendia. Carlos Tavares tem sido uma voz um pouco em contra corrente em relação aos concorrentes. E ainda recentemente assumiu que a Stellantis quer estar do lado certo da história, no combate às alterações climáticas. Nas entrelinhas ficou a ideia de que apoiava a decisão da Comissão Europeia de caminhar para a proibição da comercialização de carros a combustão em 2035 no espaço europeu. Ao mesmo tempo criticou Bruxelas pela investigação aos carros chineses. A Stellantis já tem um pé na China. Fez um acordo com a LeapMotor para introduzir carros elétricos chineses na Europa, ainda que também já tenha vindo a criticar os baixos preços destes veículos chineses.
Carlos Tavares responde ao CEO da BMW e defende fim dos motores de combustão
“Se os chineses ficarem com 10% de quota de mercado na Europa, isso representa 1,5 milhões de automóveis, algo que equivale a sete fábricas de montagem. Os construtores europeus ficam com duas opções: ou fecham ou vendem aos chineses”, destacou ao jornal francês Les Echos, citado pelo Negócios. Mas acrescentou: “Fechar as fronteiras aos produtos chineses é uma armadilha. Eles vão contornar os obstáculos, investindo em fábricas na Europa que serão parcialmente financiadas por subsídios estatais, em países de baixo custo”. Os desafios da indústria são muitos e agora acrescenta-se-lhe um outro: a possibilidade das exportações para os Estados Unidos terem um agravamento nas taxas alfandegárias, assim que Donald Trump assentar os pés na Casa Branca.
O mea culpa nos Estados Unidos: “Fui arrogante”
Nem foi preciso esperar por dia 20 de janeiro, quando Trump tomar posse, para ter sentido a pressão dos Estados Unidos. Os sindicatos e revendedores de automóveis nesse país não gostaram dos últimos dados financeiros que levaram a corte de custos e a adiamento de decisões. Já em junho tinha sido o próprio Carlos Tavares a assumir erros nos Estados Unidos que levaram a dona de marcas como a Chrysler e a Jeep a quebra de vendas, acumulação de stocks e redução da quota de mercado. Carlos Tavares assumiu, então, que a empresa tinha demorado a cortar inventários, a lidar com problemas na produção e a não endereçar a falta “de sofisticação na forma como vamos para o mercado”.
“Foi arrogância que levou a não reconhecermos estes fatores combinados a tempo. E quando digo que fomos arrogantes estou a falar de mim próprio, de mais ninguém. Estou a dizer que devia ter agido imediatamente, reconhecer a combinação dos três problemas e devíamos ter feito uma força tarefa para responder”, declarou, numa reunião com investidores em Detroit, segundo a Fortune. “Escaparam-me os sinais de alerta. Mas sou humano, certo?” Tarde demais? Perante a relutância de baixar preços para escoar stocks, os concorrentes Ford e General Motors aproveitaram-se e sacrificaram margem para ganhar mercado. Conseguiram.
Também de Itália chegou a pressão. No país de origem da Fiat, Carlos Tavares foi questionado pelos deputados sobre os planos para as fábricas transalpinas com o governo de direita de Giorgia Meloni a acusar a companhia de estar a relocalizar a produção em países de mais baixos custos. O seu ministro da Indústria, Adolfo Urso, reforçou as críticas à Stellantis por não investir suficientemente no país.
“É dever da Fiat relançar a indústria automóvel em Itália. E estamos à espera dessas respostas há muito, muito tempo, demasiado tempo”, declarou, citado pelo Politico. E aproveitou para voltar a um tema que tem estado ligado ao nome de Carlos Tavares há muito tempo: o salário do gestor.
Em abril deste ano a Stellantis validou o aumento da remuneração do gestor, que podia atingir 36,5 milhões de euros em 2024. Pelo exercício de 2023 ficou com 23,5 milhões de euros, sendo uma parte paga em ações. Isto depois de em 2022 a remuneração de 19 milhões ter sido criticada pelo próprio presidente francês, Emmanuel Macron, considerando “o valor astronómico” “chocante e excessivo”. Uma crítica que, na campanha para as eleições presidenciais, foi igualmente feita por Marine Le Pen. “Noventa por cento do meu salário faz parte dos resultados da empresa (…), o que prova que os resultados não são maus”, defendeu Carlos Tavares, à rádio France Bleu Lorraine Nord, concluindo: “Se acham que não é aceitável, façam uma lei e mudem a atual que eu vou respeitá-la”.
O português que fez vida em França. O piloto que chegou ao topo da indústria
Foram mais de 500 as corridas que tiveram ao volante o “amador” Carlos Antunes Tavares. Nunca escondeu a sua paixão pelas corridas — fez provas de rali, fórmula 3000 e de resistência — e chegou a ter uma equipa chamada Clémenteam (em honra de Clémentine, a mais velha dos três filhos que tem) nem pelos carros clássicos, que coleciona e arranja. Carlos Tavares é engenheiro mecânico, sempre viveu no mundo dos automóveis. Chegou a explicar que tinha ido para engenharia porque não tinha o talento nem o dinheiro para ser piloto profissional. Aos 14 anos foi voluntário no circuito do Estoril.
Nascido em Lisboa, há 66 anos, estudou no Liceu Francês, onde a mãe dava aulas. Partiu, cedo, aos 17 anos, para Paris. Formou-se na École Centrale na capital francesa em 1981. Começa aí a sua carreira. Na Renault, onde fez de tudo. Esteve na linha de montagem da carroçaria em Seguin no seu estágio laboral, e piloto de testes na Renault, onde foi escalando, chegando à equipa do Megane. Não parou. E chegou, em 2011, a número dois de Carlos Ghosn — que acabaria em desgraça e fugido do Japão, depois de preso — na Renault, depois de ter dado a volta à Nissan.
Queria mais. Trinta anos depois de entrar na Renault aproveitou o dia do seu aniversário, 14 de agosto de 2013, para declarar à Bloomberg: “Qualquer pessoa com a paixão pela indústria automóvel chega a conclusão que a certa altura temos a energia e o apetite para a posição número um”. O recado acrescentava que como não iria suceder a Ghosn olhava para a General Motors ou para a Ford Motor. “A minha experiência seria boa para qualquer companhia automóvel”. Poucos dias depois destas declarações saltava fora da administração da Renault “por mútuo acordo”.
Mas nem seria a GM nem a Ford o destino seguinte de Carlos Tavares. Sabe tudo sobre carros, desde a criação ao marketing. Determinado era o homem dos resultados. E era isso que a PSA precisava em 2013. A lutar pela sobrevivência a construtora francesa precisava de ser salva. Veio o cheque, do Estado francês e da chinesa Dogfeng Motor, e o novo presidente. Cortou custos, aumentou preços e fez a PSA regressar aos lucros. Fez o mesmo à Opel, comprada pela PSA em 2017 (ficando com a totalidade da empresa em 2022), já no seu mandato. Voltas que lhe valeram epítetos como o Messi dos carros ou “o homem dos carros”, apelidado ainda como “fator Tavares”.
E foi aos comandos da PSA que formou o quarto maior construtor de automóveis, ao levar avante a fusão com a FCA em 2021, ficando aos comandos de um “carro” com 400 mil trabalhadores, entre os quais os da fábrica de Mangualde. “Não me importo de dormir pouco”, declarou quando o negócio ainda era de reestruturação e quando ainda não queria falar da reforma.
Carlos Tavares. Dos testes de condução à liderança do quarto maior grupo automóvel do mundo
Nem tudo foram rosas no seu caminho. Mas apoiava-se nas corridas para dizer: “Numa corrida, por vezes perdemos o controlo do veículo. E quando isso acontecer, não digam que é por culpa da mecânica”. Os resultados não chegaram. A culpa não será, por isso, da mecânica do carro.
Reuniões cronometradas, refeições rápidas e sempre o desempenho operacional. Uma alimentação cuidada e jogging ou bicicleta. Preparado para um dia ou semanas ou meses intermináveis. Aos 66 anos já pensa numa vida mais calma. Os netos querem mais atenção. Mas também a sua vinha — tem quintas no Douro (e casa em Lisboa e no Algarve). Já o dizia em 2021, garantindo que a reforma seria “sem dúvida” no tempo “ameno do meu país. Uma vida calma e simples, acima de tudo”.