No combate à pandemia da Covid-19, indivíduos, famílias, comunidades, sistemas de saúde e países enfrentam um problema comum: como quebrar a cadeia de transmissão e reduzir o impacto nos serviços de saúde, na sociedade e na economia. Na procura de uma resposta rápida face a uma epidemia imprevisível, para a qual ninguém estava preparado, têm sido desenvolvidos esforços nacionais para a unidade, solidariedade e proteção, procurando que nenhum grupo da população seja esquecido ou “deixado para trás”. A cadeia de medidas preventivas é tão forte quanto o seu elo mais fraco. Ignorar ou esquecer esses grupos pode custar vidas, com consequências negativas a diferentes níveis para todos.
Entre os grupos populacionais já tradicionalmente considerados mais vulneráveis, incluem-se alguns grupos de migrantes, de minorias étnicas e de pessoas com condições socioeconómicas mais precárias. Em Portugal, como na Europa, as populações migrantes apresentam uma grande heterogeneidade em termos de origem, normas culturais, nível de literacia em saúde, situação socioeconómica, bem como de direitos e acesso a serviços sociais e de saúde. É globalmente consensual que a condição de migrante não representa em si um fator de risco, mas que são os contextos em que estas populações vivem que frequentemente as colocam numa situação de maior vulnerabilidade e de exposição a riscos.
A pandemia da Covid-19 veio expor as já existentes desigualdades sociais e em saúde nas nossas sociedades. Não é assim de estranhar que, embora existam poucos dados públicos sobre a distribuição geográfica de infeções, parece existir um número relevante de novos casos em áreas residenciais mais desfavorecidas e carenciadas, onde historicamente também se observam prevalências mais elevadas de outras doenças. Para implementar uma Saúde Pública mais efetiva, em vez da abordagem “one-size-fits-all”, é fundamental reforçar estratégias dirigidas às comunidades, considerando as suas reais necessidades, com medidas inclusivas, dinâmicas e de proximidade, para as quais é necessário assegurar recursos e investimento.
Ao nível das condições de residência, habitações lotadas com frágeis condições de saneamento limitam as possibilidades de distanciamento social e de isolamento. Estas medidas são particularmente exigentes para muitas populações com condições socioeconómicas desfavorecidas, incluindo alguns grupos de migrantes. Algumas destas comunidades estão pressionadas a continuar a trabalhar, mesmo com sintomas leves de doença, uma vez que a redução de rendimento e o risco de perder o emprego podem ter um importante impacto a curto prazo. A maioria precisa de continuar a usar transportes públicos para se deslocar até aos seus locais de trabalho. Adicionalmente, muitos destes trabalhadores têm mais do que um emprego e frequentemente trabalham em lares, centros de saúde e hospitais em serviços auxiliares e de limpeza, funções que têm uma elevada rotatividade de trabalhadores e implicam um contato frequente com pessoas com risco elevado de infeção (como idosos, pessoas com doenças crónicas e com imunidade reduzida). Na construção civil e agricultura, o trabalho subcontratado e/ou sazonal é comum e assenta fortemente em mão de obra migrante, e onde existe muitas vezes, um contexto de risco acrescido de infeção. Também são uma importante força de trabalho nos serviços de limpeza doméstica, muitas vezes trabalhando em múltiplas residências.
No contexto da Covid-19, para além das vulnerabilidades associadas aos determinantes sociais de saúde tão sobejamente conhecidas, existem para as populações migrantes vulnerabilidades específicas acrescidas. A evidência tem mostrado que grupos de migrantes em maior desvantagem socioeconómica apresentam menor literacia em saúde, terão um menor acesso a informação de qualidade sobre os riscos e a importância da adoção de medidas de proteção. O resultado traduz-se numa menor capacidade dos indivíduos para controlar a sua saúde, tomar decisões informadas e adotar comportamentos protetores, tornando a adesão às práticas preventivas recomendadas um desafio maior. Adicionalmente, muitos migrantes vivem em comunidades com fortes laços, dinâmicas de proximidade e de suporte social entre os seus elementos, o que torna mais difícil prevenir a transmissão.
É amplamente reconhecido que, na área da migração, Portugal tem das políticas mais inclusivas da Europa, e que inúmeros esforços têm sido desenvolvidos para promover o acesso à saúde por parte das populações migrantes. No entanto, o trabalho desenvolvido pela nossa equipa tem mostrado que alguns grupos tendem ainda a subutilizar os serviços de saúde, especialmente os mais socialmente vulneráveis, como os recém-chegados e indocumentados. De igual forma, a evidência mostra que ainda persistem barreiras no acesso e contacto com os serviços de saúde.
Em tempos de Covid-19, torna-se ainda mais urgente diminuir essas barreiras. Além da frequente dificuldade no acesso às informações disponíveis sobre os seus direitos, a cuidados de saúde e a apoio social devido a questões ligadas ao estatuto de migração, às diferenças culturais e linguísticas, dificuldades económicas, a questões de estigma e outras barreiras legais, administrativas e de nível estrutural, juntam-se obstáculos operacionais muito concretos no contexto da Covid-19, especialmente para os migrantes sem número de utente de saúde atribuído.
A identificação e monitorização de casos e seus contactos pode ser menos eficaz se existirem barreiras linguísticas, se os indivíduos não tiverem total confiança nos profissionais e nas autoridades de saúde, e também se mensagens contraditórias tiverem sido disseminadas entre meios de comunicação, líderes das comunidades ou outras entidades sobre a importância do isolamento de casos e contactos, mesmo que assintomáticos, e das medidas gerais de prevenção para todos (distanciamento físico, etiqueta respiratória e uso de máscaras). Adicionalmente, é ainda preciso ter em conta que, devido a circunstâncias várias, nem todos os migrantes estarão abrangidos pelos programas de apoio e proteção social disponíveis para os doentes com Covid-19.
O que tem sido feito?
Portugal tem estado atento a estas necessidades desde o primeiro momento, adotando do ponto de vista legislativo medidas de promoção da inclusão e do acesso dos migrantes aos cuidados de saúde. O Ministério da Saúde, pela Direção-Geral da Saúde, divulgou uma informação sobre o acesso aos cuidados de saúde dos cidadãos estrangeiros, em que é afirmado que não são permitidas quaisquer barreiras administrativas de acesso ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), para migrantes e refugiados.
As autoridades governativas deliberaram também um conjunto de medidas que visam a proteção do estatuto de migração, nomeadamente: a rápida aprovação do estatuto de residência a todos os cidadãos estrangeiros e requerentes de asilo com pedidos pendentes, e o seu acesso a direitos e apoios ao nível da saúde, apoio social, emprego e habitação; a disponibilização online de documentos necessários para legitimar a permanência em Portugal e que são considerados válidos para todos os serviços públicos, incluindo os serviços do SNS; a prorrogação da validade de documentos legais expirados durante o período da pandemia.
Face a casos positivos a residirem em condições lotadas, vários espaços de alojamento foram colocados sob quarentena coletiva (com áreas específicas separadas para pessoas infetadas) em locais adaptados. No entanto, uma vez que a maioria destes casos são indivíduos jovens e saudáveis, as situações clínicas graves têm sido raras.
Diversos materiais informativos relacionados com as medidas adotadas na resposta à Covid-19 têm sido disponibilizados em vários idiomas. Têm sido promovidas campanhas de sensibilização com parceiros comunitários do terreno e a testagem em algumas áreas residenciais com maior incidência de infeção para aumentar a consciencialização, e detetar e isolar casos positivos com mais eficiência. Esta medida tem sido usada mais frequentemente desde a reabertura progressiva das atividades sociais e económicas.
Mas é ainda necessário prosseguir com estes esforços para “não deixar ninguém para trás”. É necessário estar no terreno, conhecer a realidade, as reais necessidades e dificuldades, definir prioridades e estratégias e intervir de forma adequada e efetiva.
O que mais ainda deve ser feito?
Reforçar os esforços para eliminar os obstáculos que limitem o acesso de migrantes e refugiados aos cuidados de saúde e a programas de apoio social.
Fortalecer os recursos, as capacidades e o envolvimento dos vários intervenientes para agir de forma mais integrada, holística e robusta na prevenção da transmissão em zonas geográficas de maior vulnerabilidade, para além do controlo reativo de surtos. Estar à frente da curva na prevenção poderá ser a forma mais eficaz de conter a transmissão em contextos complexos. As muito valorizadas campanhas de sensibilização em zonas residenciais mais precárias e fragilizadas devem ser reforçadas. Considerando as dinâmicas e liderança das comunidades locais, é crucial envolver as organizações não-governamentais, as estruturas de proximidade e as associações que trabalham em proximidade com as comunidades e que conhecem as suas necessidades. A adoção de uma abordagem participativa, com a estreita colaboração e participação das comunidades no desenho e implementação de campanhas de sensibilização e de medidas de intervenção é essencial para assegurar que são adequadas, eficazes e sustentáveis. Fazendo uso da nossa academia, é necessário simultaneamente promover a implementação de sistemas de monitorização rápida e avaliação da efetividade das intervenções ou da necessidade da sua readaptação, se assim se justificar. Situações complexas exigem soluções inovadoras, intersectoriais e integradas – um trabalho de terreno que junte todos os contributos que podem ser úteis.
Adotar estratégias de comunicação e informação que sejam claras, inclusivas e culturalmente adaptadas para reforçar a prevenção da transmissão nos contextos sociais, do quotidiano e de trabalho. Será também uma oportunidade para aumentar a literacia em saúde e garantir que todos sabem onde e como podem aceder aos serviços de saúde. De forma específica, deve ser reforçada uma cultura de prevenção nos contextos de trabalho de risco, ultrapassando as dificuldades efetivas que estes contextos apresentam. As informações sobre a doença, a sua manifestação e a necessidade de estar atento a sintomas e reportá-los às autoridades responsáveis devem ser claras e simples.
Combater ativamente o racismo, xenofobia e discriminação é fundamental para aumentar a coesão social, reduzir a exclusão das populações migrantes e refugiados e contribuir para que estas não se inibam ou adiem a procura de cuidados de saúde, e não se coloquem em risco os esforços de prevenção. Tal como tem vindo a ser advogado por toda a comunidade operacional e científica internacional, é ainda necessário melhorar a informação oficial, para melhor se compreender em que medida as comunidades migrantes estão a ser afetadas pela pandemia Covid-19 e qual o impacto na saúde e a nível social e económico. Esta informação pode permitir planear intervenções com base na evidência, promovendo a designada Saúde Pública de Precisão. A informação deve ser usada respeitando a privacidade individual, a proteção de dados, e com uma estratégia de comunicação que promova a inclusão e combata a discriminação contra populações e áreas residenciais específicas.
Proteger a saúde das populações mais desfavorecidas, incluído alguns grupos de migrantes, promover a sua inclusão social e reduzir as desigualdades é parte da chave para combater a pandemia e mitigar os enormes impactos em saúde, sociais e económicos que já se fazem sentir e que iremos enfrentar nos próximos tempos. Precisam-se intervenções inclusivas, direcionadas e efetivas, que não deixando ninguém para trás, promovam a saúde de todos.
Sónia Dias, Vasco Ricoca Peixoto, Raquel Vareda, Ana Gama e Alexandre Abrantes pertencem à Escola Nacional de Saúde Pública – Universidade NOVA de Lisboa