A agressão de uma criança nepalesa de 9 anos na escola, por parte de cinco colegas, constitui um “inequívoco crime público”, asseguram advogados ouvidos pelo Observador, que consideram que o Ministério Público tem de abrir um inquérito. A Procuradoria-Geral da República mantém-se em silêncio e, até ao momento, a PSP também não recebeu “qualquer denúncia” acerca do episódio de violência que ocorreu há dois meses. O estudante foi “vítima de linchamento” por parte de cinco colegas, que também terão proferido insultos racistas.
Foi dentro dos muros da escola, há cerca de dois meses, que uma criança nepalesa de nove anos foi “vítima de linchamento” por parte de cinco colegas que lhe provocaram “hematomas pelo corpo todo” e “feridas abertas”. A denúncia foi feita por Ana Mansoa, diretora executiva do Centro Padre Alves Correia (CEPAC), e divulgada esta terça-feira pela Rádio Renascença. O episódio foi gravado por um sexto aluno e divulgado em grupos do WhatsApp. No vídeo, diz a diretora executiva da instituição que acompanha esta família, ouvem-se ainda palavras racistas e xenófobas.
Ao Observador, a PSP diz que até ao momento não tem “conhecimento de qualquer situação” e “não foi apresentada qualquer denúncia”: nem por parte da escola — que apenas suspendeu um dos agressores durante três dias — nem mesmo por parte da família nepalesa. No entanto, de acordo com advogados ouvidos pelo Observador, não é necessário que seja formalizada uma queixa para que o caso possa ser investigado pelas autoridades.
Este é um “inequívoco crime público”, começa por garantir Paulo Saragoça da Matta. E acrescenta: estamos “perante uma ofensa à integridade física, em princípio grave.”
O advogado explica que esta classificação se aplica se for causada “incapacidade temporária, ferimentos que deixem marcas permanentes, se ficar privado da visão (ou outro órgão)”, algo que se poderá ter verificado neste caso. A extensão concreta dos ferimentos com que a criança terá ficado são desconhecidos, já que a mãe tratou o aluno agredido em casa “porque teve medo e quis evitar ir a um hospital ou centro de saúde”, diz Ana Mansoa.
De acordo com a reportagem da Renascença, que cita a diretora executiva do Centro Padre Alves Correia (CEPAC), os pais da criança agredida têm ocupação profissional em Portugal, no setor da restauração, e têm “a situação contributiva regularizada”.
Governo reforça “policiamento junto das escolas” após agressão a aluno nepalês em escola de Lisboa
Saragoça da Matta não fica por aqui no que diz respeito aos contornos legais deste caso: se o crime for “motivado por circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade passam a ser qualificadas”. Isto acontece caso se verifique que as agressões foram cometidas “por mais do que duas pessoas”, motivadas “por ódio racial” e caso se tenha verificado um abuso “da diferença de idade” entre agressores e agredido. No que toca ao último ponto, Ana Monsoa não avança idades, mas revela apenas que também são menores.
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“Não há dúvida de que é crime de ofensa à integridade física qualificada e que será grave. A pena pode ir dos três aos 12 anos de prisão. E o Ministério Público tem de abrir processo”, remata o advogado. Uma vez que não é conhecida a idade dos agressores, mas sabendo-se que se trata de menores de idade, Saragoça da Matta ressalva que o caso “não leva a aplicação de ‘pena’ em Estabelecimento Prisional, mas em instituições de educação ‘especiais’”.
“Discriminação e incitamento ao ódio e à violência”
Paulo Veiga e Moura concorda: “É um crime público, portanto, se houver conhecimento dos órgãos de polícia criminal, o Ministério Público tem o dever de avançar com a queixa.” De acordo com o advogado, contudo, estamos perante um outro tipo de crime: discriminação e incitamento ao ódio e à violência.
Para proteção da família, a diretora executiva não divulgou o nome do agrupamento lisboeta em que o caso ocorreu. Até porque, conta, a criança ainda tem pesadelos e acorda de noite a chorar. Ao Observador, um membro da NIALP (Associação Intercultural Nepalês de Lisboa) explica que, como “estrangeiros”, estes imigrantes “preocupam-se com o futuro”. “Temos medo” e “não nos queremos queixar, para não arranjarmos complicações nem problemas legais, que são caros”, acrescenta.
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Segundo a associação, “não é a primeira vez” que, numa situação de violência racial, a escola onde tudo acontece decide não apresentar qualquer queixa. “Estes casos de violência estão a acontecer. As escolas têm de assegurar supervisão” e denunciar às autoridades, alerta.
A NIALP acrescenta ainda que, face ao aumento de casos de violência nas escolas, enviaram emails a algumas instituições de ensino a informar que, “caso se deparem com situações semelhantes”, a associação “pode ajudar” a lidar com os processos.
Esta terça-feira, depois da divulgação do caso, a ministra da Administração Interna, Margarida Blasco, assegurou que haverá um reforço do “policiamento juntos das escolas” e censurou o episódio de há dois meses. “Todos os crimes, e sobretudo os crimes de ódio, são de uma gravidade imensa”, disse.
É uma situação absolutamente condenável e inqualificável. As notícias sobre um menino nepalês de nove anos que foi "vítima de linchamento" numa escola de Lisboa só nos pode chocar a todos. A minha solidariedade para com esta criança e família.
O racismo não tem lugar em Lisboa.— Carlos Moedas (@Moedas) May 14, 2024
Também o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, considerou estar em causa “uma situação absolutamente condenável e inqualificável” e manifestou “solidariedade para com esta criança e família. O racismo não tem lugar em Lisboa”.