Entre o último debate de política geral com o primeiro-ministro no Parlamento e o desta quarta-feira passaram-se oito meses e também uma maioria absoluta do PS. António Costa voltou reforçado? Nem por isso. Mais crispado do que era hábito, o primeiro-ministro teve tensões com várias bancadas (do Chega ao Bloco de Esquerda), impancientou-se, contestou regras, exasperou com o modelo do debate (que saiu da extinção dos quinzenais que ele mesmo arquitetou com Rui Rio), atacou oposição e antigos parceiros. E foi respondendo a três meses de governação — que, na verdade, já são duas legislaturas e mais uns pózinhos — plenos de polémicas e crises que a oposição recuperou, uma a uma.

A crise de pessoal médico nas urgências do SNS, os refugiados ucranianos em Setúbal, o novo aeroporto, a pressão económica sobre o país com a guerra na Ucrânia e também a adesão do país à União Europeia, na preparação do Conselho Europeu do final desta semana, tudo motivou críticas da direita à esquerda do plenário, com os socialistas a ficarem, invariavelmente, sozinhos na defesa da honra.

Saúde. “Obviamente” assume falhas e não demite a ministra

O tema era o mais quente, com duas semanas de confusão em vários dos serviços de urgência de obstetrícia por todo o país que tiveram de encerrar por falta de pessoal médico. E o primeiro elemento da oposição a intervir, o líder parlamentar do PSD, Paulo Mota Pinto, não demorou, indo logo direito ao assunto.

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Os pedidos de esclarecimento feitos ao primeiro-ministro sobre este assunto foram respondidos em três atos: afirmação de confiança na ministra; admissão do problema; garantia de que se não fez mais não foi por culpa dos seus governos, mas pela pandemia e os oito meses de “uma crise política inútil“.

António Costa não foi comedido nas palavras nesta justificação. “Podíamos ter ido mais depressa se não tivéssemos tido dois anos de pandemia e nove meses de uma crise política absolutamente inútil”, afirmou secundando a sua ministra da Saúde que esteve na semana passada no Parlamento para um debate de urgência que o primeiro-ministro não viu (ver mais abaixo, na crispação com o Chega).

Quando André Ventura lhe pediu a cabeça da ministra, Costa remeteu para o que respondera antes a Paulo Mota Pinto, altura em que se tinha atravessado por Marta Temido, dizendo que é dele a “responsabilidade de tudo o que ocorre no Governo”. Isto depois de ter assumido que “obviamente” não considera “aceitáveis” as falhas nos serviços de urgência.

Repetiu, no entanto, várias vezes, perante as várias bancadas que o foram confrontando com a questão no SNS, que o seu Governo aumentou em 30% o investimento no Serviço Nacional de Saúde. Atirava ao PSD nesta matéria:

“Temos muito orgulho de repor aquilo que os senhores cortaram no SNS.” E foi aos sociais-democratas que, neste mesmo assunto, respondeu que as PPP na Saúde não continuaram porque os privados não quiseram renovar as concessões no que disse serem os moldes do Tribunal de Contas.

Da brincadeira ao “brutal desrespeito”

André Ventura começou ao ataque a António Costa (“Seja primeiro-ministro por um dia”), ainda levou as primeiras trocas impressões na brincadeira (“Há uma aplicação nos comandos que dá para voltar para trás“) , mas a ausência de respostas concretas do primeiro-ministro não agradou ao líder do Chega, que acabou a falar numa falta de respeito.

Em causa estava a questão de Marta Temido. O presidente do Chega começou por exigir a António Costa que assumisse a responsabilidade política perante o caso da ministra da Saúde e questionou o chefe do Executivo sobre se tinha assistido ao debate de emergência em que a governante marcou presença no Parlamento.

Insistiu uma vez, depois outra e acabou por arrancar a resposta a Costa: “Não vi o debate de emergência.” Ventura disse ter ficado “incrédulo” e Costa tinha para a troca: “Se não estivesse tão exaltado e preocupado em abrir telejornais e fazer números para as televisões, teria reparado que na terça-feira passada estive todo o dia a ouvir os grupos parlamentares sobre a adesão da Ucrânia.”

Mas o momento de crispação não ficaria por aqui, já que André Ventura deu continuidade às questões com perguntas curtas e diretas, António Costa não gostou e decidiu “responder por agregado” à bancada parlamentar do Chega. A reação agitou os ânimos e o líder do Chega: “Era o faltava.”

“O primeiro-ministro não é presidente do Parlamento, há um presidente da Assembleia da República que tem de respeitar e um conjunto de portugueses. Neste debate primeiro-ministro responde imediatamente”, sublinhou André Ventura, tendo em conta que neste modelo de debates os partidos podem usar o tempo para fazer várias perguntas ao primeiro-ministro, que responde separadamente a cada uma delas.

Augusto de Santos Silva optou por não intervir, continuou como previsto e, nos segundos finais, o líder do Chega queixou-se de um “brutal desrespeito à instituição do Parlamento” e lamentou que “uma maioria absoluta se tenha tornado numa prepotência absoluta neste Parlamento e com a complacência do presidente da Assembleia da República.”

O tempo da primeira ronda terminou, os ânimos acalmaram, mas ficou a indignação de André Ventura, que há muito se queixa de um tratamento diferenciado relativamente ao Chega.

O tom de voz de Catarina Martins que irritou António Costa

André Ventura não foi o único com quem António Costa teve um momento mais quente durante o debate. Do outro lado do hemiciclo, o primeiro-ministro também não poupou nas palavras que dirigiu a Catarina Martins.

Quando recebeu a bola vinda da coordenadora do Bloco de Esquerda (e que centrou a intervenção no tema da saúde), começou por pedir a Catarina Martins que controlasse o tom de voz e que não se enervasse (“Desculpe lá, não vale a pena exaltar-se nem pôr esse tom de voz para ver se convence os portugueses que tinha razão quando chumbou o Orçamento do Estado e provocou uma crise política”).

Mas não ficaria por ali e estava pronto para continuar a picar o Bloco de Esquerda: “Não foi o BE que fundou o SNS e o SNS não deve nada ao BE para a sua melhoria.”

Catarina Martins não deixaria António Costa sem resposta, apontava até o dedo ao PS por estar a fazer o trabalho da direita que, diz, “não tem nenhuma proposta para o SNS”. O primeiro-ministro não baixou a guarda e não poupou a coordenadora do Bloco:

“Mais uma vez, senhora deputada, Catarina Martins, o seu tom é inflamado. Há limites para a demagogia, mesmo por parte do Bloco de Esquerda. O tom inflamado, como sabe, substitui a convicção.”

Ventura, a arma de arremesso de Costa contra o PSD

Muitos dos deputados do PS chegaram ao debate preparados para atacar a direita e as propostas para a saúde, nomeadamente devido às parcerias público privadas (PPP) e foi na resposta a Eurico Brilhante Dias — que questionou quantas PPP foram lançadas com os governos de direita e respondeu “zero” — que o primeiro-ministro resolveu cavalgar o tema.

“Percebo que há partidos que têm uma crise existencial de se terem querido rebatizar de uma família ideológica que não é a sua, que nunca os reconheceu e onde eles nunca conseguiram entrar. O PPD que era PPD quis-se inventar PSD, mas, obviamente, não cabem lá, não são.”

O ataque estava lançado. André Ventura estava ali mesmo ao lado, a jeito para ser usado como arma de arremesso contra a bancada líder da oposição: a “confusão” com o nome “fez com que até o deputado André Ventura tenha sido militante e candidato desse partido ainda há muitos poucos anos, tal a confusão do que é o PSD”.

Os deputados do PSD não gostaram do que ouviram, os apartes multiplicaram-se durante a intervenção, mas António Costa não só não travou o discurso como ainda tinha mais uma farpa: “Sempre que chegamos à verdade dos factos, o PPD/PSD não hesita em saber qual o seu lado. Quando se discutiu a criação do SNS, o PPD/PSD foi contra, quando o PPD/PSD esteve no Governo aprovou uma lei em que, parecendo mera semântica, descaracterizou o SNS como sistema de saúde, numa lógica concorrencial entre os setores público, privado e social.”

Um aeroporto “irreversível”

Houve tempo ainda para uma das novelas mais antigas da política nacional, a da localização do novo aeroporto de Lisboa. A máxima de António Costa é que a decisão que tomar seja “irreversível“. Um objetivo ambicioso, dado o histórico do tema, que deixou claro durante uma resposta à líder parlamentar do PCP. Paula Santos falava na capacidade “esgotada” do aeroporto de Lisboa” e Costa respondeu-lhe com o processo que tem em espera pelo novo líder do PSD, Luís Montenegro.

Apesar de esperar o consenso com o PSD, Costa não deixou de picar os sociais-democratas, apontando as voltas que o partido já deu sobre esta matéria. Ainda assim, o socialista quer esperar “serenamente que a nova liderança do PSD diga qual a sua decisão”, para ter “um consenso nacional suficiente” para que não haja risco de uma nova maioria reverta os passos agora dados. A decisão que quer tomar, diz, “tem de ser irreversível“.

Também foi questionado sobre o caos no aeroporto, com longas filas de espera na verificação de documentos à chegada. E secundou o seu ministro da Administração Interna quando este afirmou que nova falha vai significar demissão no SEF. “O que aconteceu naquele dia foi a ausência de comunicação à direção geral do SEF para o acionamento da equipa de contingência, foi uma falha. Repetindo isto, há demissão”, confirmou.

Refugiados de Setúbal. “Governo fez o que lhe competia”

Tendo em conta as últimas semanas — e a presença menos frequente de Costa no Parlamento — o assunto dos refugiados da Ucrânia recebidos por elementos pró-Putin em Setúbal já parece longínquo. Mas André Coelho Lima, do PSD, não o esqueceu e perguntou a Costa sobre o que fez com as informações que teve.

O primeiro-ministro foi-se escudado no segredo de Estado para ter de dizer pouco e, pelo meio, garantiu que “o Governo fez o que lhe competia” tendo em conta as informações que lhe foram dadas. Justificou ter passado o assunto para a Inspeção Geral das Finanças (que fiscaliza as autarquias) e para a Comissão Nacional de Proteção de Dados por serem os dois organismos indicados, já que o Governo conserva apenas a “tutela da legalidade”.

E quando Rodrigo Saraiva, da IL, lhe perguntou se não devia ter feito mais, tendo em conta que o IEFP e o SEF também tiveram ligação ao caso — “aquele casal russo tinha e manteve protocolos e remunerações com o IEFP e o SEF”, Costa garantiu que “nem o SEF nem o IEFP cometeram qualquer ato ilegal ou censurável neste caso”.

Ucrânia. Costa não é cético sobre adesão, mas avisa que é preciso mudar UE

Era o debate que se seguia, o da preparação do Conselho Europeu onde será aprovado o estatuto de candidato da Ucrânia à União Europeia. Mas logo no debate de política geral, numa resposta a Rui Tavares, António Costa fez questão de preparar o que iria dizer a seguir.

Para haver esta adesão, a UE “precisa de uma nova arquitetura orçamental e institucional”. Ou esta integração, em vez de ser “um reforço”, significará uma “implosão” da UE e uma “armadilha para a Ucrânia”, afirmou sem rodeios. “Como queremos apoiar a Ucrânia não podemos criar falsas expectativas nem ser inconsequentes nas decisões que tomamos.”

À boleia deste processo, António Costa quer agora rever tratados e regras europeias para que os países da coesão não sejam prejudicados pela entrada de dois países como a Ucrânia e Moldávia. Já depois de quase cinco horas de debate parlamentar, Costa viu sair os seus ministros e ficou para trás para explicar isto mesmo aos deputados. Deixou clara essa pressão perante os outros líderes europeus.

Negou, perante os deputados que o acusaram de “ceticismo” que seja cético e que Portugal está a colaborar, com trabalho bilateral de apoio técnico à Ucrânia para a adesão. Mas, ao mesmo tempo, alertou: “A atribuição do estatuto de candidato à Ucrânia não é nem um questão de fé, nem um acto menor. Só é um ato menor para aqueles que julgam que atribuir o estatuto à Ucrânia hoje significa o mesmo que, no passado, atribuir a países como a Turquia ou a países dos balcãs ocidentais.”

“A UE pode acomodar estes países com a atual arquitetura institucional e orçamental? Não o pode fazer”, respondeu de imediato o próprio autor da pergunta desafiando os outros líderes europeus para que venham a ter em conta isto mesmo. Com um aviso aos mesmo de sempre, “os que já foram frugais e que não se relembrem de voltarem a ser quando as necessidades forem bastante maiores do que já hoje são”. O debate a esse nível arrancará em Bruxelas na próxima quinta-feira.