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Amada por uns, odiada por outros, D. Teresa é indiscutivelmente uma das mulheres mais famosas da história de Portugal. Desde o casamento com Henrique de Borgonha, que recebeu do sogro, Afonso VI, o Condado Portucalense, ao progressivo afastamento do filho mais velho, Afonso Henriques, passando pela derrota na Batalha de S. Mamede e pelo seu inevitável exílio, na Galiza, a vida da condessa, filha de um rei e mãe de um outro, foi feita de momentos marcantes. Apesar de tudo isto, e sobretudo apesar do papel estratégico que desempenhou no conturbado contexto político do norte da Península Ibérica no século XII, D. Teresa permanece, quase 900 anos depois da sua morte, um grande mistério. Pouco se sabe sobre ela além de algumas decisões políticas (que quem veio depois fez questão de denegrir) e a documentação existente é tão escassa que nem existem certezas quanto ao seu local de enterro, embora o seu túmulo esteja ao lado do de D. Henrique, na Capela dos Reis da Sé de Braga.
Por todas estas razões, a tarefa levada a cabo pelos professores Luís Carlos Amaral e Mário Jorge Barroca, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, há perto de dez anos, não foi fácil. Na introdução de Teresa. A condessa-rainha, fizeram questão de deixar claro que o resultado do seu trabalho de investigação não foi uma biografia, longe disso. Uma afirmação que, em entrevista ao Observador a propósito da nova edição da Temas e Debates, Luís Carlos Amaral fez questão de reiterar: “Não temos a veleidade de nos aproximarmos nem da pessoa física, nem da sua dimensão espiritual ou cultural, da sua personalidade, etc., etc. Nesse sentido, não é uma biografia, como é evidente”. O livro é antes uma aproximação dos espaços e dos tempos que D. Teresa percorreu, que ajuda a compreender “melhor a sua forma de agir e de atuar”.
Foi sobre o tempo de D. Teresa, os preconceitos contra uma mulher reinante, os problemas com os nobres portucalenses e as desavenças com o filho, que conversámos com Luís Carlos Amaral, que não tem dúvidas em afirmar que, depois da morte de D. Henrique em 1112, D. Teresa governou o Condado Portucalense “com mão forte”, estando “à altura da governação do seu tempo”.
Quais foram as principais dificuldades com que se depararam? É que este é livro não é bem uma biografia, como começam por dizer na introdução. Fala sobretudo acerca do contexto político do norte da Península Ibérica no tempo de D. Teresa.
A dificuldade maior, geral, que acaba por afetar todas as outras dimensões reside nas circunstâncias de terem chegado até nós muito poucos testemunhos, muito poucas fontes, sobre D. Teresa, e não só. E estamos a falar, como é óbvio, de uma personagem privilegiada desse ponto de vista, porque faz parte da elite dirigente.
A inexistência de documentação não é novidade nenhuma — não somos os primeiros a constatá-lo –, mas tendo em conta o que são hoje as exigências da investigação e do raciocínio científico, precisamos desses elementos para alicerçar interpretações e ir um pouco mais longe. A estratégia que utilizámos, que não tem nada de novo, foi, através de um conhecimento melhor, que hoje é possível estabelecer graças aos estudos desenvolvidos nas últimas décadas pela historiografia portuguesa e ibérica em geral, aproximarmo-nos um pouco mais dos tempos e dos espaços em que ela viveu e percebermos melhor a sua forma de agir e de atuar. E [assim], os escassos documentos que se referem a ela e às suas ações, tornam-se mais compreensíveis. São pequeninos passos que nos vão permitindo aproximar da pessoa. Ainda assim, será sempre a dimensão política da pessoa [de que se fala]. Como referimos na introdução, não temos a veleidade de nos aproximarmos nem da pessoa física, nem da sua dimensão espiritual ou cultural, da sua personalidade, etc., etc. Nesse sentido, não é uma biografia, como é evidente. Referimos alguns aspetos da sua dimensão pública e política, maioritariamente.
Aquilo que se sabe é de facto muito pouco, sobretudo tendo em que conta que se trata de uma personagem importante para aquele período da história do norte da Península Ibérica. No caso da sua irmã, D. Urraca, e falam nisso no livro, a documentação também é escassa, embora não tão escassa como em relação a D. Teresa.
Não, não tem comparação. Convém lembrar que, quando aproximamos as duas irmãs, elas tinham papéis muito semelhantes, embora em escalas diferentes. D. Urraca está muito mais documentada — foi efetivamente rainha, no sentido literal, rainha de um imenso reino, de Leão e Castela, do qual ainda fazia parte nesta altura o território portucalense. Era uma das várias unidades que constituíam o reino. E não só há um suporte de documentos jurídicos muito superior, como também há um fundo de textos narrativos cronísticos que, com todas as suas limitações, nos permitem estabelecer uma espécie de fio condutor do que foi a conduta governativa de D. Urraca, algo que não existe para D. Teresa.
Acresce a todas estas circunstâncias o facto de, tendo em conta o período em que tudo isto ocorreu, esta quase “excentricidade” de serem duas mulheres a dominarem a maior parte do espaço cristão da Península. Algo que não teria sido de muito fácil aceitação na altura, mas que os séculos seguintes tentaram claramente denegrir. Há uma camada de interpretações sobre interpretações que se transformou num véu muitas vezes quase impossível de transpor. Por isso, houve muita tendência, falando assim em termos gerais, de considerar quer o tempo de D. Urraca de Leão e Castela quer o tempo de D. Teresa como uma espécie de período intermédio entre dois momentos grandes. No caso de Leão e Castela, entre Afonso VI e o seu neto, Afonso VII, houve ali um tempo de mediação que foi o tempo de D. Urraca; no caso do que viria a ser Portugal, entre o tempo grande do conde D. Henrique e o tempo enorme do seu filho, D. Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal [houve o de D. Teresa]. Houve ali uma intermediação. Este enviesamento da forma como se observou a própria governação de D. Teresa e de D. Urraca acabou por perturbar ainda mais a interpretação dos escassos dados que chegaram até nós. Por conta destes preconceitos é que se foram gerando, por circunstâncias várias, aquilo que era típico da sociedade medieval — que era uma sociedade profundamente masculina de todos os pontos de vista, que se imaginava à imagem masculina –, textos muitas vezes produzidos por homens claramente misóginos.
A maioria dos textos que referem D. Urraca são precisamente marcados por uma forte misoginia.
Sim. A maior parte dos textos, sobretudo os textos narrativos, são de proveniência eclesiástica. Quase 99%, para não dizer 100%. E dentro desses, quase 90% são de proveniência monástica, o que, nestas circunstâncias, ainda agrava mais a apreciação [negativa da atuação de D. Urraca]. Por exemplo, D. Urraca era exaltada quando se concluía ou se interpretavam as suas ações como sendo masculinas. “Ela fez aquilo que um homem faria.” Quando fazia alguma coisa que corria mal, era uma atitude tipicamente feminina e [os cronistas] não hesitavam em criticá-la duramente por isso. Mesmo com as dificuldades que isto [de serem mulheres] poderá ter provocado, não tenhamos dúvidas nenhumas de que elas governaram. E governaram com mão forte. O que podemos apurar, não nos deixa dúvidas em relação a isso.
D. Teresa e D. Urraca são duas personagens em relação às quais ainda existem alguns preconceitos. A imagem negativa que temos destas duas mulheres começou precisamente aí?
Começou a ser construída se não em vida delas, um pouco depois, quando se começou a definir e a clarificar o quadro político [da região], com a gradual afirmação do reino de Portugal. Tentou-se recompor a memória, e uma das formas de exaltar a grandeza de D. Afonso Henriques foi denegrir o tempo anterior e, particularmente, o de sua mãe. Aparece-nos então uma pessoa que, além de mulher, é frágil.
Manipulável.
Sim, facilmente manipulável por ser mulher, sujeita a tentações de várias ordens, [o que é visível] nomeadamente através de uma conduta moral pouco louvável. O casamento com Fernando Peres de Trava — que é real e do qual, aliás, nasceram quatro filhos — tenderá a ser interpretado [posteriormente] como um casamento adúltero. Portanto, além da fragilidade política e da inconstância típica [das mulheres], vai-se associar [à figura de D. Teresa] uma dimensão moral criticável. Evidentemente que esta imagem foi grandemente construída em meios eclesiásticos, mas com vários propósitos. Um deles foi, a partir da segunda metade do século XII, o de realçar a legitimidade de D. Afonso Henriques na sua ascensão à realeza. Não foi [um ataque] direcionado exclusivamente a D. Teresa mas, de um certo de ponto de vista da argumentação política, serviu como mais um elemento, mais uma arma de arremesso, para realçar a grandeza de D. Afonso Henriques, evidentemente com estas consequências associadas à dimensão da sua má governação, associando a esta também uma dimensão moral pouco recomendável.
Pelo menos em relação ao mau governo sabemos que isso não é verdade. Há pouco disse que governou com mão forte.
D. Teresa está à altura da governação do seu tempo. Para nós, é algo que está muito distante, não só da nossa forma de pensar e de agir, mas também já da forma de pensar e de agir de 100 anos depois. São momentos distintos, em que tudo estava em cima da mesa, em que praticamente tudo era possível. Aquela sucessão de conjunturas que nos deixam hoje um pouco baralhados, em que as alianças se constroem e se desfazem quase do dia para noite, reconfigurando, reconstruindo permanentemente, é próprio de um tempo em construção, do espaço extremamente móvel da conquista. Na guerra na fronteira, tanto se avança como se recua. Os poderes estavam a começar a afirmar-se e, consequentemente, a relacionarem-se uns com os outros. Muito da conflitualidade a que assistimos neste período não resulta apenas da guerra contra os muçulmanos, contra o Islão, resulta também da própria forma como os poderes do lado cristão, todos eles, sejam laicos, eclesiásticos, de natureza política, militar, económica ou religiosa, se estavam a fixar, a medir uns aos outros. Estavam a avaliar-se uns aos outros, porque muitas vezes não sabiam qual era a relação entre uns e outros. Isso explica muito desta inconstância. Com as décadas a passarem e a situação a regularizar-se, quem vem depois tende a olhar retrospetivamente para esses tempos como extraordinariamente convulsos, sem rumo, sem previsão. Obviamente que, no tempo de D. Teresa, ninguém, nem mesmo D. Afonso Henriques nas primeiras décadas da sua chegada ao poder, poderia imaginar a criação do reino de Portugal.
Foi um plano que se foi construindo?
Exatamente. É essa ideia que devemos ter hoje. Digo muitas vezes aos meus estudantes: como conhecemos o final do filme, temos tendência a avaliar o início de acordo com o fim, mas a verdade é que, quando começou, ninguém fazia a mínima ideia de como é que ia avançar [risos].
O afastamento do filho mais velho e a Batalha de S. Mamede
O que é que levou ao afastamento entre D. Teresa e o seu filho, que culminou na Batalha de S. Mamede?
A separação, na nossa interpretação — que não é apenas nossa, vários outros ilustres colegas vão na mesma direção –, num primeiro momento, foi sobretudo de caráter político e não foi direcionada para D. Afonso Henriques, mas para os poderes senhoriais das terras a sul do Minho. Isto é: as elites dominantes desse território viram com muito maus olhos a crescente influência de outros senhores de Além Minho, uma parte da aristocracia galega, que, envolvendo D. Teresa, viu através dela uma porta aberta ou uma ponte para aceder uma vez mais às terras do sul e, mais concretamente, às terras da fronteira. Convém lembrar que, por essa altura, a guerra estava a entrar na fase mais intensa. A guerra era uma guerra de expansão, que foi progressivamente militarizando as sociedades do lado cristão e do lado muçulmano. Militarizar significa ter uma sociedade cada vez mais organizada em função das exigências militares. Portanto, era uma guerra que promovia politicamente, que enriquecia economicamente, fortalecia militarmente.
[Por outro lado,] o afastamento da fronteira é um fator de debilitação, de enfraquecimento para certas elite do norte cristão. Nas regiões do noroeste, onde Portugal acabará por se integrar, a constituição de um poderoso conjunto de famílias eminentemente guerreiras mas também com fortes interesses patrimoniais nas regiões do Entre Douro e Minho, mais concretamente do Entre Lima e Douro, levou-as a controlarem todo o processo [de manutenção] da fronteira até ao Mondego e já a sul deste. Os galegos, cada vez mais acantoados a norte, quer pela emergência dos portucalenses quer pelo reino de Leão, viram em D. Teresa uma oportunidade de se recolocarem, e muito bem, nas terras do sul e, concretamente, na fronteira. As primeiras notícias de Fernando Peres Trava dão-nos logo conta de que ele estava em Coimbra a controlar a fronteira. É isso que estes senhores de Entre Douro e Minho dificilmente iriam tolerar. Não podiam aceitar a concorrência no interior das terras onde nasceram e onde sobretudo cresceram em poder, prestígio e influência.
Portanto, num primeiro momento, as dissensões eram claramente entre D. Teresa e os mais destacados segmentos dos senhores do Entre Douro e Minho. É neste contexto que vemos a emergência do infante. Hoje, nenhum de nós pode afirmar em rigor que o infante tinha, nesta fase inicial, que vai até 1128, [data da Batalha de S. Mamede,] consciência plena do que estava a acontecer. O que pensamos, eu e vários outros, e o que eu e o meu colega Mário Barroca defendemos no nosso livro, é que estes senhores procuraram legitimar-se através da figura do infante. De um certo ponto de vista, o que é que estavam a fazer? Revoltando-se contra D. Teresa e o que parecia ser o apoio e as facilidades que ela estava a dar a determinados segmentos da aristocracia galega, tentaram afastá-la, repondo o tempo do conde D. Henrique através do seu filho, ou seja, acelerando o processo de transição.
Que idade teria D. Afonso Henriques nessa altura?
A data mais consensual para o seu nascimento é 1109, o que quer dizer que, em 1128, tinha cerca de 19 anos. Não lhe conhecemos muita experiência anterior a este momento que antecede a crise de S. Mamede. Ele era o filho de D. Teresa — um dos, ele tem irmãs –, mas era claramente o sucessor [do conde D. Henrique]. O processo acelerou e desencadeou-se, antes de mais, na sequência de um acerto de influências locais e o infante serviu para legitimar este movimento. Estes senhores apoiaram o infante, que antecipou a sua herança e se revoltou contra este segmento encabeçado por sua mãe, e não só.
Para nós, hoje, parece uma medida muito drástica. Afinal, ele pegou em armas contra a própria mãe.
Não foi objetivamente contra a mãe, foi contra o grupo que estava com a mãe. Tratavam-se de interesses políticos que se traduziram e se resolveram como tantas vezes naquela altura, pela força das armas. Mas, num primeiro momento, foi um arranjo de caráter regional, como havia vários outros por todo o reino de Leão e Castela. O que ninguém podia imaginar era o que veio a seguir, nem o próprio infante. Nem a forma como o infante se moveu. Não precisamos de canonizar D. Afonso Henriques, não precisamos de o endeusar, de contar todos os milagres, reais ou imaginários, enfim, toda a lenda que se construiu em torno dele. Mas de uma coisa podemos estar certos, que se percebeu sobretudo a partir de [Alexandre] Herculano [no século XIX]: estamos perante um homem, um político e um guerreiro, de exceção, alguém dotado de uma energia infindável, que se rodeou de gente igualmente acima da média, que desencadeou um processo que foi ganhando envergadura e consistência e que acabou por levar à criação de um reino. Mas — isto não é linguagem muito científica, mas não há outra forma de o dizer — aconteceu assim, mas podia ter acontecido de outra maneira.
[D. Afonso Henriques] é uma personagem invulgar, até em parte por circunstâncias que são um pouco aleatórias mas que não deixam de ter o seu peso. A sua própria vida [por exemplo]. Afonso Henriques viveu imenso para o seu tempo. Brincando um pouco [com isto], ele enterrou muitos reis à sua volta. Senhores, tudo. Essa permanência foi consubstanciando o seu poder e criando em torno dele uma aura indiscutível de um líder nato. Não é de estranhar que, ainda em vida e sobretudo logo a seguir à sua morte, se tenha começado a desenvolver um culto cívico e religioso muito impressionado pela grandeza desta personagem, que seria sempre um homem invulgar para o seu tempo, mesmo que isto não tivesse tido a continuação que conhecemos.
A “rainha” D. Teresa e o projeto galego
Uma coisa curiosa que contam no livro é que, após a morte do conde D. Henrique, D. Teresa começou a chamar-se a si própria “regina”, ou seja, rainha. Porquê?
Começa a chamar-se [assim] a partir de 117. Este é um ano importante, na medida em que é marcado por importantes incursões muçulmanas nas terras de Coimbra. Duríssimas, aliás. A própria cidade viu-se sitiada. É esse ano que marca a relação efetiva entre D. Teresa e o conde de Trava, Pedro Froilaz, cabeça desta importante família galega, provavelmente a mais destacada da aristocracia galega. Ora, é precisamente a partir deste ano que D. Teresa passa a usar o termo “regina”, “rainha”, nos documentos. Há várias explicações, nenhuma anula a outra e creio que se complementam.
Estamos ainda num tempo em que a designação de “rei” e de “rainha” era utilizada pelos filhos dos reis e das rainhas, e não necessariamente reduzida aos reis e às rainhas reinantes. Ela como filha de Afonso VI [de Leão e Castela] podia usar o título de rainha. Isto é verdade, sem dúvida, mas creio que é apenas uma verdade ou uma parte da verdade. A segunda parte, que nós acrescentámos, é que a colocação desta designação nos documentos foi uma tentativa de demonstrar um outro projeto ou uma outra ambição, foi uma forma de marcar terreno. Em 1117, a situação no Reino de Leão e Castela era extraordinariamente complexa na sua globalidade. Desde que Urraca chegou ao poder [em 1109], nunca deixou de ser complexa, com surtos permanentes de algo a que nós hoje chamaríamos de guerra civil. Houve uma instabilidade permanente, gerada por conflitos entre aragoneses e castelhanos-leoneses em grande medida por causa da confusão do casamento de D. Urraca com Afonso I de Aragão.
Que não correu muito bem.
Exatamente, não correu nada bem [acabaram separados]. Juntando isto tudo, o que pode ter acontecido foi que D. Teresa, aproveitando estas dissensões internas, entrou em jogo também à escala do reino. Não à escala do condado, mas do reino. Reivindicar este título de rainha significa também reivindicar para si uma parte da herança paterna, que Urraca [que sucedeu ao pai à frente dos destinos de Leão e Castela depois da morte deste] também tinha.
Portanto, ela nunca teve em vista a independência do condado.
Não. Ela devia querer a dita parte da herança paterna. E aí passamos para o último argumento, que também usámos e tentámos fundamentar — qual seria essa parte do reino? No nosso entendimento, e tendo em conta que a partir de 1117 conhecemos formalmente a relação [de D. Teresa] com a alta aristocracia galega, o que deduzimos é que ela estava a reivindicar o ressuscitar do antigo reino da Galiza. O antigo reino da Galiza teve uma duração efémera, mas deixou uma memória profunda nas regiões do noroeste hispânico. Nasceu na sequência da morte de Fernando I, em 1065. Fernando I era pai de Afonso VI, avô de D. Teresa e um dos bisavôs de D. Afonso Henriques. Foi o primeiro rei de Leão e Castela, responsável pela unificação dos territórios. Quando morreu, o reino foi dividido em três partes — o filho mais velho, Sancho II, ficou com Castela; o filho [do meio] Afonso VI com Leão; e criou-se pela primeira vez uma entidade nova, que nunca tinha assumido esse estatuto, que foi o chamado reino da Galiza, ou seja, tudo aquilo que é geneticamente a Galiza atual e o norte de Portugal até Coimbra. Esta fachada atlântica foi entregue ao filho mais novo, Garcia II. O reino durou uns cinco, seis anos. O irmão do meio, Afonso VI, acabou por vicissitudes várias por reunificar o reino, mas a memória do reino da Galiza nunca desapareceu. A aristocracia galega viu aí uma perda significativa do seu estatuto e capacidade de influência do ponto de vista político.
É possível, e é o que defendo, que a partir de 1116 os galegos tenham visto uma oportunidade na fragilidade de D. Teresa na fronteira do sul e na inconstância crescente no reino de Leão e Castela. Tentaram responder a vários dos seus problemas, ganhar protagonismo, aproximarem-se das terras da fronteira e, quem sabe, reivindicar o antigo estatuto de reino [da Galiza], casando um dos seis filhos com D. Teresa — primeiro tentou-se com o [filho] mais velho [de Pedro Froilaz], Bermudo, mas não deu resultado, então veio Fernando. Bermudo acabou por casar com uma filha de D. Teresa, [Urraca,] irmã de D. Afonso Henriques. [Ao casar Teresa com Fernando,] o que é que eles estavam a fazer? Estavam a juntar o seu sangue, o sangue daquela que era provavelmente a mais importante casa aristocrática galega, com o sangue da realeza. Dificilmente o casamento podia ser mais perfeito. E, quem sabe, o filho de D. Teresa e Fernando poderia vir a reivindicar a antiga coroa da Galiza. Creio que nenhum destes elementos consegue isoladamente explicar tudo mas, juntando os três, provavelmente não explicamos tudo, mas estamos mais próximos de explicar o que provavelmente terá acontecido na altura. Esta ambição e este projeto político não estava, como se mostrou rapidamente, nos interesses das elites a sul do Minho. Essa gente não tinha seguramente estes horizontes e estava muito mais direcionada para as terras do sul, para a conquista e para essa guerra através da qual enriquecia, ganhava poder, prestígio, investia em patrimónios territoriais e latifundiários das suas áreas de origem, etc., etc.
D. Teresa nunca foi rainha?
No sentido que nós hoje atribuímos [ao termo], não.
Houve autores que lhe chamaram a primeira rainha de Portugal.
Isso é um absoluto disparate. Primeiro porque ela não era rainha, segundo porque não havia Portugal. Ela utilizou o título, sem dúvida nenhuma, mas neste contexto, que resulta da conjugação de vários fatores — porque era filha de reis, porque estávamos num tempo em que isso ainda era possível, nesta fase de construção da Península e de reequacionamento dos poderes. 50 anos mais tarde, já era completamente impossível que alguém se lembrasse de uma coisa destas. Agora, considerá-la, como já vi várias vezes, até por historiadores, a primeira rainha e até mais do que isso, é um absoluto disparate. Não tem fundamentação histórica nenhuma. Se D. Teresa imaginou alguma coisa, do ponto de vista da construção de um reino, foi o do antigo reino da Galiza. É até onde podemos chegar. Mais do que isso, é pura especulação. E absolutamente nunca sonhou com Portugal como D. Afonso Henriques.
Nunca sonhou e nunca chegou a ver o nascimento do novo reino.
Não, e nem era um problema que se colocasse. Talvez o primeiro momento que nos dá sinal, não provavelmente de que se vai construir Portugal, mas da mudança definitiva, é a vitória de S. Mamede e, sobretudo, a mudança definitiva de D. Afonso Henriques para Coimbra a seguir à batalha. Nos finais de 1230, início de 1231, ele abandonou o norte de Portugal, onde voltou muitas vezes, mas que deixou de constituir o seu “quartel general”, e desloca-se de Guimarães para Coimbra. Foi o único monarca, ou o único líder peninsular à sua escala, que se posicionou na fronteira [com os muçulmanos]. Provavelmente não o pensou assim, mas o tempo revelou que foi quase uma declaração de intenções. A sua grande preocupação foi a guerra para sul e foi a guerra, antes de mais, o que foi promovendo. D. Afonso Henriques não nasceu rei, fez-se rei, e a face visível da sua realeza foi a sua excecionalidade como guerreiro.
D. Teresa está mesmo em Braga? Ninguém pode dizê-lo com certeza
Outra dúvida que referem diz respeito ao local onde estão os restos mortais de D. Teresa, supostamente sepultada na Sé de Braga. Era algo de que já tinham conhecimento ou depararam-se com esta incerteza enquanto escreviam o livro?
Enquanto fomos fazendo o trabalho. Isso foi sobretudo trabalho do meu colega Mário [Barroca], que começou julgando que ia dizer o que todos dizem, que D. Teresa está sepultada em Braga, ponto final. Quando se começou a aprofundar isso, percebeu-se que ninguém podia afirmar isso. Que nem se sabia quando é que tinha vindo o corpo ou como é que tinha vindo o corpo. A única coisa que se sabe é que, a partir de certa altura, se dizia que a D. Teresa lá estava.
Esta é a uma dúvida que ainda existe? Pergunto isto porque a biografia foi publicada originalmente em 2012.
Sim. Há uma lógica, e sempre foi verossímil a tumulação em Braga. Há um documento transcrito na crónica de Santiago de Compostela, chamada História Compostellana, que manifesta a grande satisfação do arcebispo [Diogo Gelmires] por D. Teresa lhe ter comunicado que fazia vontade de um dia o seu corpo ser depositado em Santiago. Não quer dizer que tenha sido.
Mas é uma hipótese que não afasta totalmente.
Não. Digamos que ela vale o que vale. Há um documento, mas a partir daí não conseguimos dizer mais nada. Apenas aflorámos o assunto e porque tropeçámos nele quando começámos a tentar perceber a data em que o corpo vem [para Braga]. Porque em relação a D. Henrique sabe-se muito bem. Depois acabámos por ir mais longe, pois havia que concluir a biografia. Não sendo, para menos para mim, um assunto de magna importância, há uma curiosidade em perceber como é que se construiu tudo isto em torno da tumulação conjunta do casal. Evidentemente, séculos depois [de terem morrido], houve, como tantas vezes aconteceu, a necessidade de compor a história, de contar uma história perfeita. Os pais egrégios de Portugal tinham de lá estar os dois. Estava lá o conde, também tinha de estar D. Teresa.
O que é que não conseguiu descobrir sobre D. Teresa que gostava de ter descoberto?
Gostava muito de tentar perceber um bocadinho como era a pessoa fisicamente, ainda por cima porque há tantas figurações de D. Teresa que, sem querer, somos induzidos a imaginá-la como essas figurações, sobretudo as do período moderno. Isso gostava muito que fosse possível, tinha muita curiosidade. Sou convictamente medievalista, mas tenho alguma “inveja”, sobretudo dos colegas da história contemporânea, porque têm acesso à fotografia. E já nem falo no que veio a seguir a isto.
Mas não será que faz parte do fascínio podermos imaginar, cada um de nós, como seriam essas pessoas?
Sem dúvida. Iconografia não falta, mas são todas imagens muito imaginadas. De facto, tinha muita curiosidade em ver como eram estas pessoas. Temos algumas ideias, há estudos de antropometria, de antropologia física, que nos permitem ter uma ideia das dimensões. É possível saber várias coisas. Mas como seria D. Teresa, como seria D. Afonso Henriques… Sabemos que D. Afonso Henriques era um homem de estatura invulgarmente alta para o tempo. Os textos, mesmo sendo textos interessados em enaltecer, dizem que era uma pessoa invulgarmente alta para a altura.
Isso também é história mas, da outra história, gostaria de perceber melhor o período. O período que estudo é exatamente este, mas a minha área é mais a da história eclesiástica. Prendo-me mais com outras personagens, outros ambientes, embora todos eles se cruzem, como é evidente. Gostaria de perceber melhor os meandros políticos e a forma como se foi desenhando o quadro de ordenamento político e sobretudo de equilíbrio de forças. Para nós medievalistas deste período, esse é talvez um dos objetivos maiores, percebermos como é que estes poderes se foram medindo uns aos outros, se foram relacionando uns com os outros, através da interação que necessariamente desenvolveram; como é que se traduzia o poder sobre a terra, sobre os homens que produzem da terra, sobre o controlo dos bens e dos recursos, como é que isso tudo se transformava em poder e influência, em poder de domínio sobre a sociedade, em poder militar, em poder simbólico. Isso sim, fascina-me muito. O meu grande mestre e orientador, o professor García de Cortázar, explicava-nos muitas vezes que devíamos estar muito atentos à transformação das galinhas [risos]. Era uma brincadeira. Quando o camponês vai entregar as galinhas, para ele, coitado, são galinhas. Mas quando se acumulam nas capoeiras e nos redutos do senhor, essas galinhas transformam-se em poder, porque são muitas e porque o senhor teve a capacidade de exigir ao outro que trouxesse as galinhas.
É uma área onde ainda há muito para explorar?
Ui! Nem falta! Por várias razões. Primeiro, porque os nossos meios hoje são infinitamente mais sofisticados. Não quer dizer que sejamos mais inteligentes ou mais capazes do que nos tempos do pai da nossa historiografia moderna e contemporânea, Alexandre Herculano. Não, significa apenas que temos à nossa disposição mais recursos e sobretudo, amplificámos consideravelmente a nossa forma de questionar e os nossos âmbitos de interesse. E isso tem-nos permitido chegar muito mais longe.