A audição do ministro das Infraestruturas começou com uma fábrica de comboios que pode até ser mais do que uma, à boleia do concurso para o fornecimento de 117 automotoras à CP. Mas dedicou-se mais tempo à discussão da “sucata”, termo usado pelo deputado do Chega, Filipe Melo, para descrever as carruagens em segunda mão que a CP comprou à Renfe, na altura em que era ministro Pedro Nuno Santos. E que, segundo João Galamba, prestam um serviço equivalente ao material novo e em vez de custarem um milhão de euros cada, custaram 150 mil mais 30 mil euros = 180 mil euros.
O bate boca entre o ministro e o deputado subiu de tom — sobre se foi a melhor decisão económica ou um “negócio ruinoso” — com Filipe Melo a concluir que afinal o ex-ministro das Infraestruturas “era muito melhor que o senhor”.
Começando pela fábrica. “Na melhor das hipóteses, haverá uma fábrica (de comboios), mas pode ser melhor”, disse João Galamba na audição realizada esta quarta-feira na comissão de Economia e Obras Públicas (a primeira regimental quando completa 80 dias à frente do Ministério das Infraestruturas). Em resposta a deputados socialistas, Galamba sinalizou que esta fábrica poderá gerar até 1.000 postos de trabalho.
O sucessor do ministro que gostava mais de comboios do que de aviões defendeu a ferrovia como “uma maneira de industrializar o país”. No final da audição, o secretário de Estado das Infraestruturas, que já ajudava na pasta ferroviária no gabinete de Pedro Nuno Santos, referiu que o concurso já lançado pela CP para comprar 117 automotoras para o serviço regional e urbano será um “forte incentivo” a que a produção das novas automotoras seja feita em Portugal, voltando a criar uma capacidade industrial que Portugal perdeu quando deixou de encomendar comboios. Frederico Francisco lembra que a fábrica da Bombardier na Amadora fechou em 2004 quando terminou a entrega de comboios encomendados à CP (e quando o Metro de Lisboa cancelou a opção para mais carruagens). Para assegurar essa capacidade industrial, não basta uma encomenda. “O país tem de ir renovando o parque de material”.
A sucata. Enquanto valorizava o maior investimento de sempre na ferrovia, acusando o PSD de fazer um “apagão” sobre o tema, João Galamba elogiou uma opção do seu antecessor — Pedro Nuno Santos — de comprar e reabilitar comboios à espanhola Renfe e que foi ridicularizado por vários partidos da oposição. “Lembro-me de dizerem que os comboios eram quinquilharia e estavam cheios de amianto”. Agora, disse, até o vendedor está arrependido de ter alienado o material cuja reabilitação permitiu reativar oficinas de reparação ferroviária que estavam fechadas.
O Chega, através de Filipe Melo, atacou o Governo pelo que diz ter sido um negócio de compra de ferro velho. Galamba respondeu que foi feito um negócio de 180 mil euros (em vez de um milhão) — 30 mil para a compra e 150 mil para renovar — por cada automotora em segunda mão comprada à Renfe (a CP espanhola) que é “do melhor que há na Europa”. A discussão durou alguns minutos — “180 mil euros de sucata é melhor do que um milhão de euros de material novo?” (Filipe Melo) “É uma pergunta? Não tenho tempo para lhe explicar” (João Galamba).
O deputado questionou a formação de Galamba (que é licenciado em economia), que no seu entender não pode ser boa em economia ou gestão, uma vez que defendeu a renovação da automotora em vez da compra de nova.
“Quer imitar o seu antecessor [Pedro Nuno Santos], mas está a anos luz de o conseguir. Ainda era muito melhor que o senhor”. O ataque foi a conclusão de uma declaração de Filipe Melo a dizer que os negócios socialistas são sempre ruinosos (a propósito da reabilitação do comboio) e depois de pedir que João Galamba “responda com dignidade e clareza. A posição de desdém que não lhe fica bem”.
O debate sobre a sucata teve um novo desenvolvimento quando o secretário de Estado, Frederico Francisco, mostrou fotografias de uma das 51 carruagens remodeladas que andam a circular na linha do Minho. E desafiou o deputado do Chega a distinguir entre estas e as novas.
Privatizar empresas estratégicas como a TAP? “Depende”
Já se esperavam muitas perguntas sobre a TAP e a demissão dos dois principais gestores da empresa.
Mas poucas novidades foram dadas sobre o processo de afastamento de Christine Ourmières-Widener e Manuel Beja, com o ministro a escudar-se na letra da lei (o estatuto do gestor público) para justificar a decisão do Governo de demitir quem na TAP tomou e assinou a decisão de pagar a Alexandra Reis para abandonar a administração. Daí a ilegalidade que dá fundamento à demissão sem indemnização, não obstante o ministro não fechar totalmente a porta ao pagamento de bónus, se forem cumpridas (e ultrapassadas) as metas previstas no contrato feito com Christine Ourmières-Widener.
João Galamba defendeu ainda o administrador financeiro da TAP, respondendo a Paulo Rios de Oliveira do PSD que os gestores não são “bufos” para andarem a denunciar à tutela o que se passa nas reuniões da administração. Gonçalo Pires não é demitido porque a auditoria da IGF não o envolve na tomada e concretização da decisão.
Os resultados de 2022 da TAP, conhecidos terça-feira, marcaram o arranque da audição com João Galamba a lamentar que bom desempenho tenha passado ao lado dos deputados da oposição, em particular do PSD, depois de Paulo Rios de Oliveira ter usado a palavra recorrente de buraco quando o tema é TAP.
Quase metade do lucro de 2022 da TAP resulta de efeitos fiscais
A exceção feita para Carlos Guimarães Pinto da Iniciativa Liberal que qualifica de “excelente notícia” os resultados da TAP, apesar de ter sublinhado esse aspeto “insólito” de os lucros ficarem mais altos depois dos impostos (o contrário do normal). É o efeito de uma alteração à lei feita no ano passado pelo Governo que permite descontar em impostos por mais anos os prejuízos acumulados. João Galamba assume não conhecer bem as implicações do tema e admite que esta medida pode vir a ter um efeito positivo no valor da TAP. Mas “não vejo qual é o problema”. E defende que o mais importante são as receitas 200 milhões de euros acima do previsto.
A privatização foi o tema da TAP que mais aqueceu a audição. À direita por causa das acusações ao PSD (que em coligação com o CDS) fez uma privatização em 2015 que “é um buraco”, acusou João Galamba, lembrando que o Governo remeteu para ser investigada pelo Ministério Público (por iniciativa do ex-ministro Pedro Nuno Santos). E à esquerda por causa da ideologia de quem defende e é contra a privatização de empresas estratégicas para o Estado.
Pressionado por Mariana Mortágua a declarar a sua posição se concorda com a venda de empresas estratégicas, João Galamba respondeu: “depende”. E garante que o “depende” não é para fugir à resposta. Assumindo que há constrangimentos para a TAP pelo facto de ser pública, nomeadamente a nível de compras (tendo também admitido legislar para livrar a TAP de amarras a vistos prévios do Tribunal de Contas) e tomada de decisões, e até em termos de regras de ajudas do Estado, o ministro (conotado com a ala esquerda do PS) atira à deputada do Bloco de Esquerda que “a posição política com base em axiomas firmes e alienados da realidade são pouco úteis”.
E acrescenta: “A política não se faz sem princípios e sem valores, mas que têm de ser atualizados e interpretados aos factos concretos que são os que têm prioridade em política”. Por isso, apoiou enquanto deputado a reversão parcial da privatização de 2015, feita pelo primeiro Governo de Sócrates, argumentando que o Governo não tinha outra opção, face à operação feita pelo PSD/CDS e que horas mais tarde Costa iria descrever como “violação da ética democrática” (por ter sido concluída por um Governo que esteve apenas um mês em funções até cair no Parlamento). Mas Galamba também admitiu ter dúvidas sobre a forma como esta reversão, já criticada pelo Tribunal de Contas, foi feita.
O ministro das Infraestruturas reconheceu a existência de riscos na abertura de capital que o Governo está a preparar, concordando com Bruno Dias do PCP, mas estabeleceu logo no arranque o ponto de partida da qual não abdica nesta operação: a salvaguarda do valor estratégico da empresa, que do seu ponto de vista não depende da percentagem de capital, e o desenvolvimento do hub de Lisboa. E aponta como exemplos a seguir a integração da Air Lingus (irlandesa) e da Iberia na AIG liderada pela British Airways que não travou o crescimento dos aeroportos de Dublin e Madrid e a fusão Air France/KLM. Galamba recordou ainda que a TAP é praticamente a única companhia de bandeira europeia que não está ainda integrada num grupo.