Não tenha medo, é favor mexer. É verdade que ao passar da porta parece que está a entrar num museu mas no número 70 da Rua Dom Pedro V há uma grande vantagem: “aqui pode tocar em tudo”, começa por descansar-nos Verónica Leitão. “Aliás, aconselhamos a fazê-lo porque achamos que faz parte da experiência. Mesmo que o cliente não compre nada, ajuda a perceber como o azulejo faz parte da nossa identidade, porque realmente é o nosso cartão de visita para o mundo”.
Para que não restem dúvidas neste santuário de quadradinhos, painéis, faiança histórica e outras antiguidades, até os miúdos mais irrequietos são bem-vindos, tal como os animais de companhia. Os primeiros são enfeitiçados pela dona com chupa-chupas, os segundos têm sempre com quem brincar. Que o digam Adão, Alma e Olímpia, os três cães de Verónica, presença assídua na casa em regime rotativo — no dia da nossa visita, a sorte coube ao primeiro schnauzer. “É o que chamo de dia do filho único na loja”, esclarece a terceira geração ao leme da Solar Antiques. E, sim, claro que já aconteceram acidentes, como aquele com a cliente que ignorou os repetidos alertas sobre um casaco que importunava os expositores e acabou por deixar uma peça em fanicos. “Não é a questão de partir só um azulejo do século XVIII, é uma peça de história”.
Arte decorativa portuguesa por excelência, estas conhecidas peças de cerâmica são o ex-libris da casa, que ao longo de 65 anos tem vindo a acumular um precioso espólio. Como aqui nada é produzido em massa, nem replicado, “quando acaba, acaba”. “Tenho clientes que me pedem mais destes ou daqueles, mas nós não fazemos”.
Num espaço que começa por ser mais desafogado e depois algo labiríntico, as salas organizam-se por séculos. À entrada, uma mesa com azulejos avulsos da primeira metade do século XVIII dá as boas-vindas a quem chega, acompanhada de uma galinha das Caldas do século XIX. “São partes de painéis de que não temos a imagem completa. O mais engraçado é que cada pessoa vê uma coisa diferente em cada azulejo. Eu vejo uma perna, e alguém vê um braço. Há gente que os leva como um jogo”, explica a nossa cicerone. A idade, desenho e estado de conservação de cada exemplar dita o valor final, segundo a lista geral da loja — há azulejos que custam 8 euros, outros 350.
Mais adiante, algumas peças do século XVII. Em cima de um móvel, várias criações de Manuel Mafra e de José A. Cunha. Na parede, em fundo, uma inesperada irrupção de telas. “Tínhamos um colecionador que adora os Vesúvios e então temos uma parede só de Vesúvios”. No chão, umas pinhas em louça — “infelizmente a maior parte não vêm aos pares”.
No nível inferior seguimos por entre azulejos do século XVIII e XIX. Nas paredes próximas, revela-se a primeira e segunda metade do século XVII, e há generosos painéis prontos a comprar. No exterior, vislumbra-se um pequeno armazém. Por fim, as duas últimas divisões: em baixo, a cave reservada ao século XVII, com o azul e branco da segunda metade, e o azul e amarelo da primeira metade enquanto ao fundo acenam os primitivos hispano-árabes do século XVI. Na zona superior, brilham sobretudo as artes decorativas, entre painéis, mas também a faiança de Bordalo, várias galinhas e pratos, terminando a viagem numa mesa onde estão dispostos os melhores azulejos. “São mais interessantes e mais caros, pela qualidade e desenho. Estão mais expostos para as pessoas terem outra visão. É engraçado porque no azulejo português não há limite para o que se pode desenhar”, lembra Verónica, assinalando alguns dos temas mais presentes e a grande omissão. “Pássaros, barcos, espelhos são recorrentes. Por outro lado, é raríssimo ver azulejos com peixes, o que faria todo o sentido”.
Do 10 euros aos 67 mil, do pequeno souvenir ao interesse das celebridades
Os preços variam consoante as intenções do cliente, vingando “um pouco de tudo”. Há quem procure um souvenir para levar à mãe no regresso a casa, ou peças especiais pensadas para cada filho, e os azulejos tantos se ajustam à tradicional cozinha como a lareiras (preferidas entre os ingleses), mesas de apoio para o sofá e cabeceiras de cama. Particulares, por um lado, e “bons clientes que são parceiros de gabinetes de arquitetura, com quem continuamos a trabalhar de forma contínua”, por outro. Neste caso, muitas vezes o cliente final ou o motivo da visita é desconhecido, daí que seja preciso esperar, por exemplo, por um artigo numa revista internacional para traçar o destino de uns azulejos portugueses ou perceber que caíram no goto de alguém conhecido.
“A Gwyneth Paltrow mencionou-nos no site da Goop. Foi uma surpresa quando vi”, recorda Verónica. Foi em 2017 que a atriz chegou mesmo a detalhar o seu roteiro de compras no bairro e arredores, uma lista que acabaria na sua conhecida plataforma de lifestyle. Já este ano, com direito a capa, a edição de março da revista Architectural Digest serviu uma visita guiada pelo renovado reduto em Montecito de Paltrow. Desta feita, a preferência recaiu sobre um fornecedor em solo norte-americano, ainda que haja uma relação de sangue com a casa mãe. “Os azulejos [de Gwyneth Paltrow] foram comprados na Solar Tiles, em Nova Iorque. São azulejos antigos portugueses do século XVIII”, confirma Kristin Jacobsen, da empresa de relações públicas PR Consulting. “A loja em Nova Iorque é do meu tio, que sempre viveu lá. É independente em termos de negócio, alem de que ele tem reproduções e nós não temos”, distancia-se Verónica, que admite que a preferência agrada, o ego sai fortalecido com menções especiais, como o destaque recente na Town&Country, mas não altera uma vírgula da política interna. “Não é do nosso interesse fazer name calling. Se uma pessoa famosa tem os nossos azulejos, acho ótimo ter a confiança do cliente, mas não faço disso uma bandeira. Seja quem for o cliente, o serviço vai ser sempre igual, mas claro que é ótimo. Quanto mais puserem Lisboa no mapa, melhor. Há imensos atores estrangeiros que passam por aí. E o Cantona, por exemplo, já o vi cá várias vezes”.
No plano doméstico, há soluções não menos ambiciosas como remodelar a casa, e regras que muitas vezes exigem a intervenção de um acervo raro, dos poucos, senão o único, capaz de resolver o desafio. “Em Lisboa temos a lei das fachadas. Ou seja, se está a renovar o prédio tem que obrigatoriamente pôr azulejos da época da fachada. Se não tem suficientes ou quer substituir por outros da mesma época, provavelmente nós temos. Aí fazemos esse tipo de projeto”.
Mas recuperemos o primeiro azulejo desta história familiar, que foi colocado pelo avô José Manuel Leitão, corriam os anos 50 do século passado. A construir uma casa fora de Lisboa, procurava — sem sucesso — fornecimento de azulejos para a obra. “Como trabalhava para o ministério das Obras Públicas e andava muito pelo país a ver obras, começou a encontrar aqui e ali e a armazenar azulejos”. A fome deu em fartura, neste caso um excedente que haveria de satisfazer a procura de outros interessados no mesmo registo. Em 1957, abria oficialmente as portas da Solar Antiques no Príncipe Real.
Tanto colecionou azulejos que o espólio permite até hoje resolver as demandas mais exigentes. Para além desta morada na D. Pedro V, o antiquário tem três grandes armazéns em Lisboa, naturalmente repletos de peças desta natureza, provenientes de diferentes séculos.
Quando o fundador morreu, em 1988, o negócio seguiu para as mãos dos filhos. “O meu pai comprou a sociedade aos irmãos e assumiu-a sozinho em 1991”, explica Verónica, que não esquece as visitas regulares em miúda, os almoços com Manuel Leitão e a relação desde sempre com o mundo das antiguidades. “Sempre estive cá. Quando me perguntam há quanto tempo trabalho aqui… a minha vida sempre foi aqui. Gostava disto. Sempre fomos a museus, viajávamos e havia sempre a parte divertida e a parte histórica. Continuo a querer ir a museus e a levar os meus sobrinhos a ver ‘coisas antigas’. Com quatro anos já vêm aqui ver as suas peças preferidas”.
O entusiasmo nem sempre seguiu o mesmo ritmo. A certa altura, “não queria nada com isto”. Depois voltou a ganhar embalo com um mestrado de ISCTE de Mercados de Arte, surgiu a oportunidade de fazer o programa Contacto, e deu por si a trabalhar para terceiros durante cinco ou seis anos. “Pensei que era uma parvoíce estar a trabalhar para outras pessoas quando tenho uma coisa própria”, concluiu Verónica, que tem na irmã, Vera, a sua “sócia silenciosa” e não se arrepende da decisão. “Aqui todos os dias são diferentes”. E acrescente-se que a criatividade também não tem limites.
Da Solar tanto sai uma singela base para copos, tachos ou saboneteira como uma sala de bowling toda forrada de azulejos do século XVII, um projeto feito na Suíça.
300 visitas por dia e um cenário (ainda) mais digital pós-pandemia
“Hi!” “Hola!”. Numa manhã de sol de fevereiro, ainda sem magotes de turistas a entupir zonas históricas, os forasteiros retomam o caminho do comércio histórico alfacinha, e aos poucos vão entrando na loja. O novo coronavírus forçou uma novidade no historial da casa que nunca fechara portas até então — de resto, sempre se manteve aberta nos concorridos meses quentes. “Não fechávamos, tínhamos sempre rotatividade. Este verão fechámos para férias. Pensámos que se não era agora não ia ser nunca”.
Em tempos ditos de velho verão normal, por aqui chegam a entrar na loja 300 pessoas por dia. “Para um antiquário é completamente fora do normal”, admite Verónica, sublinhando tudo o que mudou em mais de seis de décadas. Fisicamente, o recheio deste endereço está completamente diferente do tempo do avô, com mais material mas menos amontoado. “Agora é um caos organizado.”
Quando assumiu as rédeas do negócio, deu-se a inadiável entrada no digital. “Não tínhamos nada, nem um site. Agora temos site e redes e somos muito ativos na comunicação com clientes. Em regra temos 30 mil visitas por mês online. Não me posso queixar. Há muitos mais pedidos por email.”
Recente é também a conversão de um dos três armazéns disponíveis em oficina. Foi comprado há dois anos, no meio da pandemia, desenhado de raiz para acolher em 300 metros quadrados toda a parte de montagem, restauro, e embalagem da Solar Antiques, funcionando como centro nevrálgico de tudo o que é preciso ser feito, e onde uma equipa própria dá conta do volume de trabalho que obriga a envolvimento permanente. “Estamos sempre a ver o stock e as necessidades internas, nunca estamos parados. Para coisas mais específicas, como faianças, tratamos externamente.”
Numa era pautada por preocupações ambientais, as embalagens não deixaram de merecer evolução, ainda que esteja por inventar um saco de papel que aguente com segurança o peso de uma compra destas. “Somos mais eco friendly. Adoraria não ter que embalar com plástico mas sem essa resistência não conseguimos fazer a transição. Usamos pipoca biodegradável, dissolve-se em água, e o plástico é reciclável. Tento ter o mínimo impacto ambiental em tudo. Isso também foi uma adaptação dos tempos.”
Para lá das naturais mudanças na rotina, certas tendências mantêm-se inalteradas, como o sortido de clientela oriunda de outras paragens. “Sabemos que o meu avô já tinha clientes internacionais. Ainda no outro dia encontrámos o papel químico de uma carta de um cliente americano, e de um filho que já trouxe a resposta a dizer que tinha um crédito do tempo do pai.”
Nem o azulejo é sempre azul nem a história sempre cor-de-rosa
É fácil chegar ao engano, assumir que a história se conta em exclusivo com os omnipresentes padrões tão identificativos da cidade de Lisboa, mas o facto é que “não começámos com o azul e branco como as pessoas pensam. Temos o cuidado de explicar as origens do azulejo”, descreve Verónica, apontando para os modelos hispano-árabes que se escondem no piso inferior. Também facilmente se tropeçam em armadilhas sobre origens, procedimentos e outras ideias feitas capazes de nos deixar de pé atrás. “Quando nos dizem que copiámos os holandeses… não, trata-se da mesma época com diferentes estilos. Fomos todos à China e todos trouxemos o cobalto, a partir daí trabalhamos de maneiras diferentes, mesmo na aplicação do pincel. Há espaço para todos, assim como os azulejos persas, turcos. Todos têm o seu lugar na história.”
No fundo, quando é de compras que falamos, tudo depende “do gosto pessoal” e de um “boca a boca” entre clientes que tem sido a melhor receita na Solar Antiques, fruto também de uma certa flexibilidade na hora de conceder um novo destino para uma aquisição antiga. Farto daquela peça lá em casa? Tenha calma que não está tudo perdido. “Graças a Deus as pessoas voltam. Se compraram um painel e se passados uns anos já não o querem, têm a confiança de que o podem trazer de volta e trocar por outra peça. Não é do nosso interesse que sejam destruídas ou acabem num leilão sem o devido apreço. Já aconteceu irmos a leilões em França buscar painéis que eram nossos. Há coisas que foram vendidas pelo meu avô que voltaram a casa. Faz todo o sentido ter esse cuidado.”
Esta é de resto prática corrente na empresa, o trabalho constante de percorrer leiloeiras no encalço de pequenos tesouros nacionais, não apenas azulejaria mas também peças de Bordalo, Manuel Mafra, ou José A. Cunha, que são relevantes e não estão em catálogo, e que portanto de outra forma não viriam para Portugal. Segundo Verónica, muitas andarão pelo estrangeiro, dispersas por França, Bélgica, Alemanha e EUA, de onde só compensa vencer as dores de cabeça trazidas pela alfândega se em causa estiver uma “peça fabulosa e extraordinária”, dificuldade idêntica aplicada ao Reino Unido.
“Também há pessoas que compraram aqui, agora vão mudar de casa e querem vender os painéis. Fazemos esse trabalho. Infelizmente cá o preço por metro quadrado não avalia o azulejo que lá está. As pessoas vendem então à parte para ter um valor adicional”, descreve a proprietária, que aponta para dois cenários quando o assunto é avaliar algo que possa ter potencial. Há muito boa gente que pensa ter um tesouro incalculável sob o seu teto e acaba por sofrer pesadas desilusões, e outras que desconhecem por completo o que têm em mãos e são surpreendidas com as boas novas. “Acontece mais o primeiro caso. Ainda há pouco tempo um senhor dizia-me “ah, estou nesta casa há 50 anos e quero vender os azulejos”. Mas não pode, a casa não é sua! O senhorio não vai achar muita graça.”
Convenhamos que graça é coisa que nem sempre assiste o negócio do azulejo. Podemos até falar de polémica regular quando em causa está analisar o ciclo de vida e circuito percorrido por este tipo de criações. “O azulejo não é bem visto pelos portugueses, porque existe um movimento que diz ‘não’ a comprar azulejos, não aos antiquários, que as pessoas acham que andaram a pilhar. Acima de tudo é informação errada”, justifica a proprietária, que diz tentar fazer um pouco de pedagogia sempre que se cruza com um post dessa natureza. “Tudo o que um antiquário compra tem que declarar e há um período de graça de 15 dias em que a PJ tem ao seu dispor fazer as devidas diligencias para ver se é roubado ou não. Se há azulejos roubados? Claro que há. A feira da Ladra está cheia deles. Agora, não se pode dizer que é tudo roubado.”
A história recente cita um caso que a Solar Antiques viveu de perto, quando tentaram vender-lhe uns azulejos alegando serem de uma casa. Na realidade, tinham sido desviados de um convento. “Quando vimos nas notícias fomos os primeiros a ligar à polícia para os virem buscar. Não é do meu interesse ter peças roubadas.” Felizmente, adianta, não é situação corrente, até porque há regras internas que ajudam a minimizar este risco — comprar pequenas quantidades, como meia-dúzia de azulejos, não faz parte da equação, por exemplo. Mais dramática é a persistente ausência de queixas por parte dos proprietários em caso de furto. “É o problema principal. Há imensas quintas em que as pessoas não vão com frequência e quando se lembram de lá ir reparam que não têm os painéis da Igreja.”
Sobre a facilidade com se pode ser iludido, Verónica não tem dúvidas de que é mais fácil falsificar uma pintura do que um azulejo, já que os atuais pigmentos — sintéticos — são bem diferentes dos antigos — naturais. Pelo menos de acordo com um olho bem treinado. “Não vendo gato por lebre. Ok, é do século XVIII mas se não for todo original o valor não é o mesmo.”