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A reconstituição do que aconteceu na praia do Meco só foi feita dois meses após a tragédia. A casa alugada pelo estudante não foi devidamente selada. Provas, como a roupa do dux, e testemunhos relevantes só foram recolhidos em fevereiro — quando os factos tinham acontecido em dezembro do ano anterior. No fundo, uma investigação que “não começou a sério até ter sido assumida pelo Ministério Público (MP) de Almada, mais de um mês depois dos acontecimentos”.
Estas são algumas das falhas apontadas pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) que condenou esta terça-feira o Estado português a pagar uma indemnização de 13 mil euros a José Soares Campos, pai de Tiago Campos, um dos seis estudantes da Universidade Lusófona que morreram depois de serem arrastados pelas ondas do mar quando participavam numa ação de praxe na praia do Meco, em Sesimbra. E ainda 7.188,51 euros relativos aos custos com o processo.
Mais de seis anos depois, os familiares das vítimas veem vencida esta batalha, enquanto tentam ainda lutar contra o silêncio de João Gouveia, o dux (líder da praxe) e o único sobrevivente daquela tragédia. Em declarações à Rádio Observador, o pai de Tiago Campos diz ter ficado “contente” por ter tido uma instância de justiça a dar razão aos familiares das vítimas, embora lamente que tenha sido necessário “recorrer ao Tribunal Europeu, apresentar uma queixa contra o Estado, para que alguém independente desse razão”. “Estava a olhos nus tudo o que se passou”, afirmou.
José Soares Campos diz que esta indemnização dá “algum alento”, mas é “muito pouco” tendo em conta “tudo o que está em causa: a morte de seis jovens. E lamenta: “Estamos há seis anos em sofrimento, e todas as provas que estavam evidentes no processo, todas elas foram destruídas“. Mas foram mesmo destruídas? Que falhas apontou afinal o TEDH?
[Ouça aqui as declarações de José Soares Campos à Rádio Observador]
A casa alugada para um fim de semana de praxe e um tribunal “chocado” por não ter sido “protegida”
É a primeira falha apontada pelo TEDH — que se diz “particularmente chocado com o facto de João Gouveia e os seus familiares, as famílias das vítimas e terceiros terem tido acesso ilimitado à casa”, lê-se em comunicado. O tribunal refere-se à casa alugada pelos estudantes da Universidade Lusófona para um fim de semana de atividades de praxe, na localidade de Aiana de Cima, a 5,2 quilómetros da Praia do Moinho de Baixo, no Meco.
De acordo com o Tribunal Europeu, esta habitação “podia ter sido protegida e ter tido o acesso barrado a todas as pessoas não relacionadas com a investigação, de modo a evitar interferências com as provas e perda das provas e para evitar a limpeza do apartamento no dia 9 de janeiro de 2014“. É que foi desta casa que os sete estudantes partiram por volta das 22h30 do dia 14 de dezembro em direção à praia onde seis deles acabariam por morrer, arrastados pelas ondas.
Catarina Soares, Andreia Revez, Joana Barroso, Tiago Campos, Carina Sanchez, Pedro Negrão e o dux João Gouveia chegaram na noite anterior à casa — alugada até dia 15. “O grupo adquiriu diversos artigos, incluindo uma garrafa de WH Golden Lochs; três garrafas de amêndoa amarga; um recipiente com vinte litros de vinho”, lê-se no acórdão do Tribunal da Relação de Évora que recusou afastar o juiz de instrução criminal — negando o pedido do advogado das vítimas que alegava existir uma relação de proximidade entre o juiz e o procurador do MP.
De acordo com esse mesmo tribunal, “as praxes no fim de semana dos factos começaram ainda a 13 de dezembro”. Durante os dias que se seguiram, os jovens realizaram ações de praxe, sob a supervisão do dux, que lhes ia dando instruções. Desde serem colocados em quartos fechados a realizarem exercício físico, muito aconteceu naquela casa. E muitas provas — quem sabe, peças chave para resolver o mistério — podem ter sido perdidas.
Exames forenses por realizar, objetos da casa e na praia por apreender
Além de a casa não ter sido devidamente selada, o TEDH lamenta ainda que os exames forenses àquele local só tivessem sido feitos já depois de 11 de fevereiro de 2014 — dois meses depois da tragédia. O tribunal europeu alerta que “os itens na casa e na praia do Meco tinham potencialmente informação importante e sensível relacionada com as pessoas em causa”. E que, por isso, apreendê-los e “colocá-los sob custódia para serem investigados teria evitado qualquer interferência por uma série de indivíduos e evitado que a polícia tivesse de os reclamar depois”.
Dois meses depois da tragédia, muitas provas que poderão ter ficado na praia — relacionadas com os sete estudantes — já teriam desaparecido. E facilmente: pelo vento ou pelo mar ou, se não levadas, pelo menos contaminadas pelas centenas de pessoas que passaram pelo areal naqueles dias — para prestar, por exemplo, homenagens.
Era já noite cerrada quando os sete estudantes se dirigiram a pé para aquela zona. Ainda assim, “as condições do mar eram visíveis e audíveis muito antes de se entrar na zona de praia”, descreve o acórdão da Relação de Évora. Sabe-se que “as vítimas levavam cada uma delas um objeto que representasse o respetivo curso”. Tiago Campos levou “um pequeno pinheiro de Natal, devidamente ornamentado com lâmpadas de Natal e bolas de arame”, lê-se no acórdão.
Os objetos que transportavam — entre eles, a árvore de Natal — terão sido pousados a “algumas dezenas de metros da linha de água”. O dux pousou também ali o seu gorro, que tinha no interior quatro maços de tabaco, as chaves do carro de Tiago Campos e dois telemóveis: o seu e o de Andreia Revez — os restantes tinham deixado os telemóveis em casa.
O que se passou depois, não se sabe. João Gouveia foi o único sobrevivente e manteve sempre o silêncio. Segundo a Relação de Évora, a dada altura, “quando os jovens se encontravam no areal, uma onda colheu-os, arrastando-os para o mar”. “Após terem sido atingidos por uma primeira onda, os jovens foram posteriormente fustigados com ondas sucessivas, todas com dimensão de cerca de três a quatro metros”, detalha ainda o acórdão. Seis dos sete estudantes acabaram por morrer.
As roupas e o computador do dux só foram apreendidos quase três meses depois
As roupas que João Gouveia usava na noite da tragédia, bem como o seu computador, não foram “apreendidos imediatamente e sujeitos a exames forenses” — o que devia ter acontecido de acordo com o TEDH. “Não foram apreendidos até 7 de março de 2014”, aponta ainda. Ou seja, só três meses depois dos factos.
Foi João Gouveia, que chegou a ser constituído arguido, quem ligou para o 112 naquela noite. Eram 1h10. Os seus colegas tinham sido engolidos pelo mar à frente dos seus olhos. O jovem ficou ali, no areal, durante cerca de 40 minutos à espera de ajuda. Só pelas 1h50 da madrugada é que chegaram à praia os primeiros elementos da Polícia Marítima, detalha a Relação de Évora.
O único sobrevivente deu entrada no Hospital Garcia de Orta às 4h08 e teve alta cerca de duas horas depois. Assim que saiu daquela unidade de saúde, “dirigiu-se para a casa de Aiana de Cima, onde tomou um banho, arrumou a casa bem como os pertences dos seus colegas”, adianta o acórdão. Mais: nesse dia, só pelas 15h00, “e na companhia do seu cunhado”, é que “abandonou a moradia”.
As roupas e sapatos do arguido foram sujeitos a exames que foram inconclusivos, lê-se no acórdão da Relação de Évora, que não indica, no entanto, a data em que foram realizados. Ainda assim, “os resultados apresentados admitem como possível (mas não qualquer grau de probabilidade) ter o vestuário e sapatos do arguido estado submersos em água do mar”, lê-se ainda.
O dux ficou em silêncio e a reconstituição dos acontecimentos na praia “não aconteceu até 14 de fevereiro”
Também “uma reconstituição dos acontecimentos na praia com o envolvimento de João Gouveia” tardou a ser feita. Segundo a decisão do TEDH, “tal não aconteceu até 14 de fevereiro” e deveria ter acontecido “assim que possível após os acontecimentos”. Podia ter ajudado a juntar peças já que o dux nunca contou o que realmente aconteceu naquela noite e o Conselho Oficial da Praxe Académica (COPA) fechou-se a sete chaves. A informação que se foi sabendo saiu a conta-gotas.
No final de janeiro, o COPA decidiu, numa reunião, quebrar o “pacto de silêncio”. Mas as informações que forneceram não permitiram ainda assim esclarecer na totalidade o que acontecera naquela noite. Revelaram que as vítimas tinham sido incitadas por João Gouveia “a consumirem bebidas alcoólicas”; que não tinham dormido na noite de 13 para 14; que os exercícios físicos que tinham realizado andavam “na ordem das 150 repetições”.
Negando que as vítimas estivessem a ser praxadas pelo dux, o COPA explicou que João Gouveia teria “ordenado aos seus colegas que se deslocassem para a zona da linha de água e aí ficassem de costas para o mar e de frente” para ele. Depois, ter-se-iam “colocado uns ao lado dos outros, paralelamente à linha de mar”. O conselho adiantou ainda que as vítimas se encontravam “com sono e exaustos”.
Mas outras informações fornecidas levantaram suspeitas em relação a João Gouveia. O COPA revelou que o dux, após os seus colegas terem sido arrastados pelo mar, teria “pegado no seu telemóvel e fugido do local” e que, depois, teria sido “auxiliado” por uma terceira pessoa para “montar uma simulação de pré-afogamento dele próprio”. O conselho adiantou que o arguido, quando ligou para o 112 à 1h10, não estaria na praia — onde terá chegado apenas 10 minutos depois.
Testemunhas importantes ficaram por ouvir até fevereiro e tribunal não encontra “nenhuma explicação”
O Tribunal Europeu também não encontra “nenhuma explicação para o facto de as autoridades não terem imediatamente tomado nota de declarações testemunhais de pessoas presentes nas proximidades, incluindo os vizinhos e as pessoas responsáveis pela casa onde as famílias tinham ficado alojadas”. “Estas pessoas não prestaram declarações até aos dias 8 e 10 de fevereiro de 2014, ou seja, um mês e meio depois dos acontecimentos”, lê-se na decisão.
Um dos testemunhos mais importantes, foi o de uma vizinha da casa que os sete estudantes tinham alugado que os teria visto a meio da tarde de sábado num terreno descampado nas imediações da habitação. Os jovens estariam a rastejar com pedras atadas aos tornozelos.
Humilhações, violência e mortes. Não aprendemos nada com os perigos das praxes?
O acórdão da Relação de Évora indica algumas das testemunhas que foram inquiridas, apesar de não referir a data em que foram ouvidas. Uma delas foi uma professora de Direito de Trabalho da Universidade Lusófona que disse não conhecer as atividades do COPA, nem ter informações sobre as vítimas e, muito menos, sobre o fim de semana em questão. Outra foi uma representante do curso de design que definiu o dux como “inflexível”, embora tivesse dito que não tinha conhecimento de alguém que tivesse sido sujeito por ele a praxes perigosas.
Uma investigação que “não começou a sério” até o Ministério Público ter assumido o controlo
Em jeito de conclusão, o TEDH defende que “a investigação não começou a sério até ter sido assumida pelo Ministério Público de Almada, mais de um mês depois dos acontecimentos”. O caso foi arquivado em março de 2014. Os pais das vítimas insistiram numa acusação particular e o dux foi constituído arguido, mas o processo não seguiu para julgamento, por decisão do Tribunal de Setúbal.
O juiz não encontrou provas de existência de crime, nem de que a morte dos seis estudantes tivesse acontecido em contexto de praxe, sobretudo tendo em conta que os jovens envolvidos não eram caloiros. O tribunal concluiu que não havia indícios de que João Gouveia tivesse “sujeitado, pelo menos conscientemente, os colegas falecidos a um perigo que não pudessem eles próprios avaliar e evitar”. A decisão foi depois confirmada pelo Tribunal da Relação de Évora, em janeiro de 2015.
Ao apontar estas seis “medidas urgentes que podiam ter sido tomadas imediatamente após a tragédia”, o Tribunal Europeu concluiu que a investigação criminal à morte das vítimas não respeitou os requisitos procedimentais associados ao cumprimento do Artigo 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.