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Humilhações, violência e mortes. Não aprendemos nada com os perigos das praxes?

A tragédia do Meco lançou um grande debate sobre esta tradição, mas as praxes perigosas e humilhantes já aconteciam e não pararam. As universidades não se responsabilizam. Afinal, quem manda na praxe?

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Serra da Estrela, final de setembro, durante a noite. Ao frio e no meio do breu, dois alunos estão de gatas, em frente a um grupo de colegas mais velhos, que lhes vão fazendo perguntas. Quando erram as respostas, têm de baixar as calças e são agredidos com colheres de pau de grandes dimensões, símbolo académico dos estudantes.

Aconteceu já este ano letivo a dois alunos do primeiro ano do curso de Ciências Biomédicas da Universidade da Beira Interior (UBI). Horas antes, tinham sido levados para a serra em bagageiras de carros, de cara tapada. Sabiam que iam ser praxados, mas não imaginavam que acabariam agredidos, numa praxe realizada por um grupo secreto, formado só por homens e criado há 11 anos, segundo apurou o Observador. Quando foram trazidos de volta à Covilhã, um dos caloiros ligou à polícia. A UBI, ao tomar conhecimento da situação, fez queixa ao Ministério Público (MP), que abriu um inquérito. O caso já está a ser investigado pelo MP da Covilhã. Ao Observador, a Universidade optou por não responder às perguntas sobre o tema.

Na mesma semana, um vídeo de um momento de praxe na Universidade de Évora começou a circular nas redes sociais e, com ele, uma nova polémica. As imagens mostram um rapaz no chão, com o corpo dobrado sobre ele próprio e os joelhos em cima das costas das mãos. A cabeça está encostada ao solo, em cima de um monte de pó branco. Possivelmente, farinha. Quando o jovem diz que não consegue aguentar mais estar naquela posição, outros estudantes que o estariam a praxar gritam: “Não me interessa. Desemerde-se!”. O Bloco de Esquerda tomou conhecimento da situação — que considera “absolutamente inaceitável” e “de profunda violência e humilhação” — e enviou uma pergunta ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES), tal como já tinha feito em relação ao caso na Covilhã.

No início do mês, outro caso. Também nas redes sociais, começou a circular uma fotografia que mostrava vários caloiros da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa de roupa interior, no exterior das instalações. A forma como ali estavam, aparentemente em parada, chocou quem viu a imagem. Mas, na reação, a faculdade veio garantir que era uma “fotografia completamente descontextualizada” e explicou que se tratava de uma “ação voluntária e de auto-recriação por parte de alguns alunos” que decidiram despir-se por causa do calor que se fazia sentir, durante um churrasco no pátio, externo à Universidade.

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Estes três casos conhecidos em setembro — mês de arranque do novo ano escolar — reanimaram a discussão sobre as praxes humilhantes, violentas e perigosas. Um debate que não tem nada de novo — não é a primeira, segunda, terceira ou quarta vez que acontece — e que, há cinco anos, ocupou o espaço público durante semanas ou até meses, por causa da tragédia do Meco. Na noite de 15 de dezembro de 2013, seis estudantes (quatro raparigas e dois rapazes) da Universidade Lusófona morreram naquela praia de Sesimbra, arrastados por uma onda quando, alegadamente, participavam em atividades da comissão de praxe. Os corpos foram encontrados nos dias seguintes.

O único sobrevivente foi João Gouveia, dirigente da comissão de praxe académica (o chamado Dux), que contou que o grupo estava a passar o fim-de-semana numa casa que tinham alugado na zona e que, naquela noite, decidiram ir até à praia. Cedo surgiram relatos de que as vítimas estariam a participar numa praxe, viradas de costas para o mar e eventualmente já dentro de água, comandadas pelo dux. O Ministério Público abriu um inquérito, mas o caso acabou por ser arquivado em março do ano seguinte. Os pais das vítimas insistiram numa acusação particular e o jovem foi constituído arguido, mas o processo não seguiu para julgamento, por decisão do Tribunal de Setúbal. O juiz não encontrou provas de existência de crime, nem de que a morte dos seis estudantes tivesse acontecido em contexto de praxe, sobretudo tendo em conta que os jovens envolvidos não eram caloiros. O tribunal concluiu que não havia indícios de que João Gouveia tivesse “sujeitado, pelo menos conscientemente, os colegas falecidos a um perigo que não pudessem eles próprios avaliar e evitar”. A decisão foi depois confirmada pelo Tribunal da Relação de Évora, em janeiro de 2015.

Os corpos dos seis estudantes da Universidade Lusófona de Lisboa só foram encontrados dias depois de serem arrastados por uma onda (Foto: RUI MINDERICO/LUSA)

RUI MINDERICO/LUSA

Praxe académica que acabou mal ou um grupo de jovens apanhados de surpresa por uma onda? É uma dúvida que, dificilmente, alguma vez irá desaparecer. Ainda assim, a tragédia deixou a sociedade de olhos postos na praxe académica, como nunca antes tinha acontecido. Governantes alertaram as instituições de ensino superior e prometeram combater o problema. Universidades proibiram a realização dessas atividades dentro das suas instalações — medidas que deixaram alguns estudantes descontentes. Cresceram movimentos anti-praxes: alguns pela mão de alunos, outros por incentivo desses mesmos governantes. E foi até criado um endereço eletrónico da Direção-Geral do Ensino Superior para denúncia de casos de praxes abusivas. A viragem na forma como as praxes eram vistas foi evidente, num fenómeno antigo com casos graves ao longo de décadas e que apenas não tiveram a mesma cobertura mediática e consequências trágicas de dimensão semelhante à do Meco.

A morte de Diogo Macedo, os excrementos de animais e o estudante que ficou tetraplégico

Em outubro de 2001, Diogo Macedo era aluno do 4ºano de arquitetura da Universidade Lusíada de Famalicão e membro da tuna académica. Num dos ensaios, sentiu-se mal e foi levado para o Hospital de Famalicão. Acabou por ser transferido para o São João, no Porto, onde morreu, sete dias mais tarde, com um derrame cerebral. Tinha 22 anos.

A autópsia viria a levantar várias suspeitas. O corpo tinha marcas de agressões violentas. O relatório revelava que o jovem tinha sofrido uma “fratura da 1ª vértebra cervical, arco posterior, com hematoma extenso no cerebelo direito”.  O que aconteceu, afinal, naquele ensaio? Suspeita-se que foi obrigado a fazer flexões ao mesmo tempo que era agredido com uma revista, praxado por colegas mais velhos. Agressões que acabaram por provocar-lhe a morte.

Nunca se chegou a saber ao certo o que aconteceu naquela noite, nem quem foi o responsável pela morte de Diogo Macedo. Os membros da tuna fizeram um pacto de silêncio que nunca foi quebrado — e que dificultou a atuação da justiça. O único facto dado como provado pelo Tribunal Cível de Famalicão foi que Diogo morreu durante uma praxe, por ter sido atingido na nuca com uma revista. Nenhum dos membros da tuna foi acusado. Apenas a Universidade Lusíada, já em 2009, foi condenada a pagar uma indemnização de 91 mil euros à mãe do jovem, Maria de Fátima Macedo, por ter “violado o seu dever de vigilância” da praxe académica. Quem acabou julgada foi a mãe de Diogo. Maria foi acusada de quatro crimes de difamação, por se ter referido, em entrevistas, a um jovem que chegou a ser arguido no processo-crime, suspeito do homicídio. A mulher, de 62 anos, acabaria por ser absolvida.

Maria Macedo, mãe do jovem que morreu durante uma praxe, na Universidade Lusíada de Famalicão, foi acusada de quatro crimes de difamação (Foto: Leonel de Castro/Global Imagens )

Leonel de Castro/Global Imagens

Dois anos depois, a praxe chegou novamente a tribunal. Dessa vez, o caso não ficou por resolver. Ana Santos, aluna da Escola Superior Agrária de Santarém, foi o rosto do processo que acabaria na primeira condenação por praxes agressivas. A jovem tinha sido insultada e impedida de falar ao telemóvel, durante as atividades. Quando atendeu uma chamada da mãe, desobedecendo à ordem, foi obrigada a ajoelhar-se. Depois, os praxistas pediram a outros caloiros que lhe esfregassem excrementos de porco na cara. Ana Santos foi obrigada a ficar ao sol até que esses excrementos secassem. No final da atividade, foi abandonada a vários quilómetros de casa.

A jovem não ficou calada: denunciou o caso à polícia, enviou uma carta à direção da Escola Superior Agrária de Santarém e outra ao ministro do Ensino Superior. O presidente do conselho diretivo da Escola abriu um inquérito, mas logo na altura realçou que, no seu tempo, já era assim e que ele próprio também tinha “recebido bosta no corpo”. Era “tradição”, dizia. Menos “compreensivo” com a suposta tradição, o Tribunal de Santarém condenou sete estudantes envolvidos — Rui Coutinho, Lisbete Pereira, Sandra Silva, Armando Simões, José Vaz, Tiago Vieira e Tiago Figueiredo — a pagarem multas entre 640 e 1600 euros, numa sentença confirmada em 2009. O juiz considerou que os atos “ultrapassaram os limites impostos pela noção de praxe” e que iam “além do mínimo ético socialmente tolerável”.

O presidente do conselho diretivo da Escola abriu um inquérito mas realçou que, no seu tempo, já era assim e que ele próprio também tinha “recebido bosta no corpo”. Era “tradição”, dizia. 

Nos anos que se seguiram, os casos de praxes abusivas não desapareceram. Alguns iam sendo resolvidos dentro dos próprios organismos da praxe, como o “tribunal de praxe”. Outros acabavam por vir a público. Em novembro de 2007, no mesmo dia, em locais diferentes, vários alunos sofreram ferimentos graves e foram hospitalizados. Na Escola Superior Agrária de Coimbra, um estudante do terceiro ano de Engenharia do Ambiente ficou tetraplégico, na sequência de uma lesão na coluna: o diagnóstico registou um traumatismo vértebro-medular, com diversas fraturas, na região cervical. Foi o resultado de uma das atividades de praxe daquele dia, na qual os alunos deslizavam por um declive para uma vala com lama e palha.

Noutra Escola Superior Agrária, a de Elvas, um aluno caiu da muralha do castelo quando participava num “rally das tascas” — que levou mais quatro estudantes ao hospital em coma alcoólico –, realizado durante a semana de receção ao caloiro. O estudante do primeiro ano foi hospitalizado em Badajoz, com uma fratura da coluna cervical e múltiplas lesões graves a nível pulmonar. Os organizadores da praxe negaram as responsabilidades. Diogo Assunção, presidente da Associação de Estudantes, justificou-se com o facto de, naquela semana, não haver praxes, mas sim “uma semana de receção ao caloiro em que só participa quem quer”.

São apenas alguns exemplos de uma lista que é longa — o Bloco de Esquerda criou até uma cronologia das praxes abusivas — mas que, provavelmente, seria muito maior se a ela se juntassem os casos que não chegam ao conhecimento público. É que muitas vítimas de praxes humilhantes, violentas ou perigosas acabam por não denunciá-las, por receio de serem excluídas do grupo académico ou com medo de represálias. Para isso contribuirão os casos em que as denúncias acabaram em consequências piores, entregues às próprias estruturas estudantis. Foi isso que aconteceu, por exemplo, num dos primeiros casos de praxe violenta que se tornou público — e talvez o primeiro em que um estudante mostrou intenção de avançar para tribunal, apesar de isso, depois, não ter acontecido. Em 1999, uma aluna da Escola Superior de Educação de Leiria queixou-se aos responsáveis pela praxe: tinha sido agredida fisicamente e humilhada durante as atividades que, supostamente, seriam de integração dos novos estudantes. Resultado? Foi chamada ao tribunal de praxe e acabou condenada por se ter queixado. Como castigo, teve de cortar o cabelo.

Anos mais tarde, em 2003, Ana Sofia Damião, aluna do Instituto Piaget de Macedo de Cavaleiros, sofreu as consequências por ter denunciado uma praxe que considerou abusiva: tinha sido insultada, obrigada a despir-se, a vestir-se novamente — agora com a roupa interior por fora — forçada a simular orgasmos e relações sexuais com os colegas e a revelar pormenores da sua vida sexual. A denúncia chegou aos responsáveis do Instituto, que abriram um inquérito e concluiram que deviam sancionar… a própria Ana Sofia Damião. A jovem recebeu uma repreensão escrita, “pela forma subjetiva excessiva como relatou os factos”. Os agressores foram também sancionados “por não terem a preocupação de avaliar se as ordens da praxe poderiam ferir suscetibilidades individuais”.

A aluna não desistiu e apresentou uma queixa-crime, mas o caso não chegou a julgamento por que o juiz entendeu que Ana Sofia tinha dado o consentimento para ser submetida àquelas práticas. Seguiu-se um processo cível contra o Instituto Piaget que, em 2009, foi condenado pagar uma indemnização de 38 mil euros.

"Há sempre aqui um balanço entre o que é denunciar uma praxe violenta e pôr a vítima numa posição ainda mais desconfortável do que aquela em que ela já está"
Luís Monteiro, deputado do Bloco de Esquerda

É por casos como estes que Luís Monteiro, deputado do Bloco de Esquerda — e autor das duas perguntas feitas ao governo, este ano letivo, por causa das praxes abusivas — alerta: “Há sempre aqui um balanço entre o que é denunciar uma praxe violenta e pôr a vítima numa posição ainda mais desconfortável do que aquela em que ela já está“.

Afinal, a praxe é território de ninguém? Até onde podem (ou querem) ir as universidades?

A praxe é uma organização própria de estudantes, paralela à atividade letiva. Os alunos juntam-se de uma forma informal para organizar atividades — muitas delas, calendarizadas — de receção e integração dos mais novos que acabam de chegar. Esses, os caloiros, escolhem participar ou não. Como atividade, só por si, não são ilegais, por não ser, na sua definição, sinónimo de abuso. O problema é que, muitas vezes, acaba por ser. Nessas situações, quem tem o poder — ou a obrigação — de punir os responsáveis?

Regime jurídico das instituições de ensino superior

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“(…) 4 – Constituem infração disciplinar dos estudantes:

a) A violação culposa de qualquer dos deveres previstos na lei, nos estatutos e nos regulamentos;

b) A prática de atos de violência ou coação física ou psicológica sobre outros estudantes, designadamente no quadro das ‘praxes académicas’.

5 – São sanções aplicáveis às infracções disciplinares dos estudantes, de acordo com a sua gravidade:

a) A advertência;

b) A multa;

c) A suspensão temporária das actividades escolares;

d) A suspensão da avaliação escolar durante um ano;

e) A interdição da frequência da instituição até cinco anos.

6 – O poder disciplinar pertence ao reitor ou ao presidente, conforme os casos, podendo ser delegado nos diretores ou presidentes das unidades orgânicas, sem prejuízo do direito de recurso para o reitor ou presidente (…)”

O Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), aprovado pela lei 62/2007, de 10 de setembro, é claro nesse aspeto. Qualquer abuso desta natureza, levado a cabo pelos alunos, constitui uma infração disciplinar que pode resultar, dependendo da gravidade, em multas, suspensões e, até, expulsões. “Convém esclarecer que a praxe em si mesma não é uma atividade negativa, passível de ser punida. O que aqui importa distinguir são os atos de violência física e psicológica que, por vezes, se praticam sob o pretexto de uma dita praxe académica. E estes atos, como qualquer ato de violência praticado entre estudantes, seja em contexto de praxe ou não, são passíveis de punição disciplinar pelos órgãos internos da Universidade”, esclarece António de Sousa Pereira, reitor da Universidade do Porto, ao Observador. Fica claro que é possível, mas Carlos Alberto Videira, ex-presidente da Associação Académica da Universidade do Minho, não tem memória de expulsões que tenham acontecido por causa de praxes.

As praxes que acontecem dentro dos espaços das universidades, como acontece em Coimbra, estão sob alçada dos reitores. Qualquer abuso, é punido. “A Universidade de Coimbra nunca proibiu a praxe no campus exatamente para que ela [a praxe] possa ser feita sob o olhar e escrutínio de toda a comunidade académica“, explica por sua vez Madalena Alarcão, vice-reitora.

"A Universidade de Coimbra nunca proibiu a praxe no campus exatamente para que ela possa ser feita sob o olhar e escrutínio de toda a comunidade académica"
Madalena Alarcão, vice-reitora da Universidade de Coimbra

Esta opção de permitir as praxes dentro dos campus não é regra: é exceção. “Houve uma tentativa de fazer uma separação institucional relativamente às questões ligadas à praxe“, diz Carlos Alberto Videira. Mesmo antes da tragédia do Meco, muitas instituições de ensino superior já proibiam a realização de praxes dentro das suas instalações — começaram até a ter um papel mais ativo na receção aos novos alunos, criando atividades alternativas à praxe. Depois da morte dos seis alunos da Universidade Lusófona na praia do Meco, mais instituições optaram por incluir em cada um dos seus regulamentos a proibição da realização de praxes dentro dos campus.

“O que acontece na via pública está sob os olhos de toda a gente”

A ideia de proibir essas atividades dentro das instalações, que tentava travar abusos em contexto de praxe, desresponsabilizava, ao mesmo tempo, as universidades, caso esses mesmos abusos acontecessem. O deputado Luís Monteiro defende que “a fronteira de responsabilidade da instituição não acaba nem começa no perímetro da instituição” e lamenta que as universidade já não se “importem muito” com as praxes abusivas, só porque elas acontecem “a um metro da porta”.

Se as praxes abusivas não acontecem nas suas instalações, já não têm nada a ver com isso e os casos continuam a acumular-se. A diferença é que, agora, acontecem fora dos limites das universidades, dificultando a sua supervisão e punição. “Levam para a via pública essas atividades. E o que acontece na via pública está sob os olhos de toda a gente. Continuam a ser alunos, mas antes de serem alunos são cidadãos e maiores de idade. Aquilo que se passa fora dos campus já está fora da alçada dos reitores”, alerta Carlos Alberto Videira.

No mês após a tragédia do Meco, membros da AAL reuniram-se com o então ministro da Educação, Nuno Crato (Foto: JOAO RELVAS/LUSA)

JOAO RELVAS/LUSA

As associações académicas do país dizem que têm vindo a realizar contactos informais com as instituições no sentido de garantir que as praxes abusivas não acontecem. Reconhecendo a “praxe como uma atividade importante na integração dos novos estudantes”, a Associação Académica de Lisboa repudia “qualquer tentativa de humilhação ou abuso”. No mês após a tragédia do Meco, membros de várias associações académicas reuniram-se com o então ministro da Educação, Nuno Crato, para levar uma proposta de um Estatuto do Estudante do Ensino Superior: um documento — semelhante ao que já existe em relação ao ensino básico — transversal a todas as instituições, com os direitos e deveres dos alunos, incluindo normas e sanções em caso de abusos nas praxes.

Aquela que seria uma solução para travar praxes abusivas, mesmo fora do limite das instalações das universidades, não avançou e as instituições de ensino superior continuaram a não ser responsáveis legamente por isso. “Essa questão acabou por ficar na gaveta e acabou por não voltar a ser discutida“, disse Carlos Alberto Videiro. Também não voltou a ser discutida outra solução semelhante.

Reconhecendo a "praxe como uma atividade importante na integração dos novos estudantes", a Associação Académica de Lisboa repudia "qualquer tentativa de humilhação ou abuso"

Com o afastamento das universidades, a praxe fica apenas entregue às autoridades. “A polícia já é responsabilizada por qualquer crime na via pública”, aponta Luís Monteiro. Até porque “tudo o que figura no código penal, seja ou não dentro da praxe, é um crime”. “Mas [as autoridades] não atuam porque os casos não são denunciados”, explica, acrescentando outra hipótese: “Há uma cultura de aceitação. Assume-se culturalmente que todos aqueles rituais e brincadeiras fazem parte de um processo normal”. Luís Monteiro recorda que algo semelhante se passou quando a violência doméstica passou a ser crime: “As autoridades não atuavam porque assumiam que eram escaramuças entre casais. Tal como na praxe, a polícia assume que culturalmente é normal acontecer”.

O número de queixas por praxes abusivas que chegam ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) tem vindo a diminuir — impondo-se a questão: há menos casos de praxes abusivas? Ou a diminuição deve-se à falta de conhecimento ou descrença neste mecanismo de controlo? O Observador questionou o MCTES sobre o que aconteceu às denúncias recebidas e se foram tomadas medidas em relação a ela. O email foi respondido por fonte do Ministério, mas sem qualquer dado relativo àquela pergunta. Foi, então, enviado um segundo email, com o pedido de uma resposta concreta ao que era questionado. A mesma fonte acusou a receção do email mas, até à publicação deste artigo, não respondeu.

Assim, das respostas do MCTES sobra “o total apoio ao combate a manifestações de abuso, humilhação e subserviência realizadas entre grupos de estudantes, sejam no espaço público ou dentro das instituições” e a garantia de ter “remetido toda a informação recolhida à Inspeção Geral da Educação e Ciência para que, no quadro das competências que lhe estão legalmente atribuídas, desenvolva a atuação adequada nas situações em apreço e no sentido de punir adequadamente todas as manifestações de poder, humilhação e subserviência associadas a praxes académicas, designadamente quando conflituam diretamente com a missão do ensino superior e o propósito daqueles que o frequentam”.

A praxe abusiva devia ser criminalizada?

A criminalização das praxes abusivas ou alterações no sentido de torná-las um crime público já foram discutidas. Carlos Alberto Videira não vê necessidade de se ir tão longe: “Não reconhecemos esse tipo de casos como praxe e devem ser punidos como qualquer outro crime”. Luís Monteiro também não acredita que a melhor solução seja proibir a praxe. “Nós [o Bloco de Esquerda] queremos combater toda a violência que acontece, na praxe e fora dela“, esclarece, em declarações ao Observador.

Vigília junto à Universidade Lusófona de Lisboa pelo fim das praxes, a 22 de fevereiro de 2014, em Lisboa, na sequência da tragédia do Meco (FOTO: INÁCIO ROSA(LUSA)

LUSA

A verdade é que quaisquer abusos passíveis de serem crimes que possam acontecer em contexto de praxe — por exemplo, crimes contra a integridade física, discriminação, injúria ou coação — encontram-se salvaguardados pelo Código Penal, Código Civil, a Constituição da República Portuguesa e, até, a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Daí que, para o presidente do Instituto Politécnico de Viseu, João Monney Paiva, em declarações ao Observador, seja óbvio: “Este tipo de práticas condenáveis devem ser objeto de controlo por parte das autoridades de segurança pública, policiais e outras”. Para o deputado bloquista, isso não chega. Luís Monteiro defende que controlar as praxes abusivas passa por “criar mais mecanismos de denúncia” e “garantir que a justiça opera e que a polícia atua”. “Temos de garantir que os crimes que já são figuras penais no código penal são aplicados na questão da praxe. O que tem acontecido é exatamente o contrário: a praxe é uma exceção“, disse ainda.

O problema não será assim tão fácil de resolver. O facto de a participação do aluno ser voluntária é um dos argumentos utilizados para tirar valor criminal das praxes humilhantes ou violentas. Este consentimento tem grande influência na atuação da justiça e faz com que muitos dos casos que chegam a tribunal, e que poderiam configurar crimes, acabem sem qualquer conclusão. “Do ponto de vista jurídico, os juízes partem do princípio que há um consentimento de ambas as partes e que se enquadra numa atividade universitária de tradição académica”, explica o deputado Luís Monteiro, alertando: “É preciso é perceber porque é que existe [o consentimento]. Porque é que as pessoas, fora do contexto de praxe, não aceitam que alguém lhes parta as unhas ou que lhes dê uma bofetada e, no espaço da praxe, assumem que é natural.”

"Do ponto de vista jurídico, os juízes partem do princípio que há um consentimento de ambas as partes e que se enquadra numa atividade universitária de tradição académica"
Luís Monteiro, deputado do Bloco de Esquerda

A explicação estará no contexto. Os caloiros parecem perder a capacidade de negar algumas atividades, mesmo que não gostem delas ou se sintam violentados, “porque sentem que aquele ritual é importante e receiam questionar e desafiar a autoridade“, como explica a psicóloga Rute Agulhas. “Os que se submetem sem questionar serão, à partida, jovens mais submissos, passivos, com dificuldade em fazer valer os seus direitos de forma assertiva. Desejam muito sentir-se integrados, fazer parte de um grupo, serem aceites. E esta motivação pode ser tão forte ao ponto de aceitarem sem questionar e submeterem-se ao que lhes é ordenado “, explica ao Observador.

Apesar de muitas vezes só chegarem a conhecimento público as praxes que implicam agressões físicas, muitas delas são abusivas por implicarem maus tratos emocionais. “Um dos critérios para podermos afirmar que estamos perante maus tratos psicológicos é a frequência”, diz Rute Agulhas reconhecendo que os maus tratos emocionais “não são devidamente valorizados” uma vez que “não deixam sequelas observáveis e visíveis”. “Podem envolver consequências tão severas como aquelas associadas às agressões físicas”, assegura a psicóloga.

A isto, soma-se uma caracterítica que pode agravar o problema: as praxes académicas são uma bola de neve. “Quem é praxado sente que agora faz parte de um grupo, que se rege por determinadas regras. E essas regras envolvem praxar, mais tarde”, explica a psicóloga. No ano seguinte, o praxado vai praxar. E, se calhar, de forma ainda mais abusiva. “São as regras do grupo. Que são aceites e que têm de ser cumpridas por quem valoriza sentir-se integrado neste grupo. Sob pena de deixarem de ser parte integrante desse grupo”, acrescenta.

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