Foi a meio da tarde de uma quarta-feira de Liga dos Campeões, sem que nada o fizesse prever e à boleia de uma entrevista na América do Sul que se antecipou a um comunicado oficial: o Mundial de 2030 vai ser organizado por Portugal, Espanha e Marrocos, com os três jogos inaugurais a decorrerem na Argentina, no Uruguai e no Paraguai para assinalar o centenário do primeiro Campeonato do Mundo.
A candidatura começou por ser ibérica, com Portugal e Espanha a anunciarem um princípio de acordo em junho de 2019, a assinarem o protocolo em outubro de 2020 e a oficializarem a proposta em junho de 2021. A Ucrânia juntou-se em outubro de 2022, oito meses depois do início da guerra, e Marrocos tornou-se o novo parceiro já em março deste ano – com o apoio ucraniano a ser agora mais institucional do que efetivo, sendo que o país nem sequer foi mencionado no comunicado oficial que a FIFA emitiu apesar de nunca ter sido também “afastado” por parte da candidatura ibérica.
Da Península Ibérica à Ucrânia, acabando em Marrocos para competir com uma Arábia Saudita que desistiu
A ideia já tinha sido ventilada nos meses anteriores, mas os rumores que corriam nos bastidores não eram suficientes para acreditar que a possibilidade poderia mesmo tornar-se uma certeza. Em junho de 2019, porém, as dúvidas dissiparam-se: em conjunto, praticamente ao mesmo tempo, Federação Portuguesa de Futebol e Real Federação Espanhola de Futebol anunciavam que iriam unir-se numa candidatura ibérica à organização do Mundial-2030 aproveitando os estádios, instalações e demais infraestruturas existentes.
“A Federação Portuguesa de Futebol e a Real Federação Espanhola de Futebol realizaram uma série de reuniões nas últimas semanas e confirmam que vão iniciar juntas um vasto processo de análise sobre a possibilidade de apresentar uma candidatura conjunta para a organização do Campeonato do Mundo de 2030”, podia ler-se no comunicado original, sendo que ficou desde logo bem claro que Portugal não iria construir estádios novos, assumindo apenas a hipótese de obras de renovação ou expansão dos recintos existentes.
Portugal e Espanha anunciam candidatura conjunta ao Campeonato do Mundo de 2030
Mais de um ano depois, em outubro de 2020 e na antecâmara de um jogo particular para selar o acordo, Fernando Gomes e Luis Rubiales encontraram-se no Estádio José Alvalade e assinaram um protocolo rumo à oficialização da candidatura. “A Federação Portuguesa de Futebol celebrou, esta quarta-feira, no Estádio José Alvalade, a assinatura de um protocolo de colaboração com a Federação Espanhola de Futebol, numa cerimónia que contou com a presença de Fernando Gomes, presidente da FPF, e Luis Rubiales, responsável máximo da RFEF”, anunciou, na altura, o órgão que regula o futebol português.
No ano seguinte, em junho de 2021, a candidatura ibérica foi oficializada com o carimbo de um novo jogo particular entre Portugal e Espanha no ainda Wanda Metropolitano, o estádio do Atl. Madrid na capital espanhola, onde Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa, Felipe VI e Pedro Sánchez conviveram na tribuna presidencial com recurso a cachecóis que juntavam as cores dos dois países. O momento contou com um discurso inicial que recordou as palavras de José Saramago sobre a união entre Portugal e Espanha, um vídeo de promoção com a presença de Luís Figo e Paulo Futre, a assinatura de uma declaração governamental de apoio por parte de Costa e Sánchez e uma troca de camisolas entre o Presidente da República e o rei espanhol.
“Em dezembro deste ano [2021] passam 100 anos do primeiro jogo da Seleção Nacional de Portugal e o adversário foi o mesmo desta noite, o nosso país vizinho e irmão: Espanha. Por isso, que ano melhor para anunciar formalmente o compromisso das duas federações em trabalharem conjuntamente como uma só nação por um Mundial de futebol na Península Ibérica. É isso que hoje afirmamos. O nosso compromisso. Espanha e Portugal venceram os últimos três Campeonatos da Europa de futebol. São países com uma história singular e uma tradição de bem receber e organizar eventos de enorme dimensão”, explicou, na altura, Fernando Gomes, que a par do agora caído em desgraça Luis Rubiales se tornou uma das caras da candidatura ibérica.
António Laranjo vai coordenar candidatura de Portugal e Espanha à organização do Mundial de 2030
No final de 2021, foi anunciado que António Laranjo seria o coordenador do projeto técnico da candidatura, ficando também com a mesma função na construção da Fase 3 da Cidade do Futebol, em Oeiras, que prevê a construção de um pavilhão para o futsal, as instalações da Portugal Football School e os novos espaços do Canal 11. Com 63 anos, o presidente da Infraestruturas de Portugal e antigo líder da Sociedade Euro 2004 passava assim a ser o responsável máximo pelas decisões técnicas tomadas dentro de todo o projeto.
Meio ano depois, no final de junho de 2022, Luis Rubiales deslocou-se a Lisboa para reunir com Fernando Gomes e alguns representantes do Governo português na Cidade do Futebol, em Oeiras, com o objetivo de delinear alguns pormenores da candidatura. No mês seguinte, em julho, surgiram os primeiros pormenores sobre todo o projeto. Estádio do Dragão, Estádio da Luz e Estádio José Alvalade foram anunciados como os três estádios portugueses incluídos na candidatura ibérica, confirmando-se a ideia de que Espanha iria receber a larga maioria dos jogos do Campeonato do Mundo se a proposta conjunta fosse a escolhida – tanto pela dimensão do país como pela própria capacidade dos recintos.
Na altura, quando a Federação Portuguesa de Futebol anunciou os estádios de FC Porto, Benfica e Sporting como os recintos portugueses à disposição do Mundial, também a Real Federação Espanhola de Futebol divulgou a lista dos estádios espanhóis incluídos na candidatura. Na altura, eram 18; atualmente, tendo em conta todas as reviravoltas, será de esperar que o lote seja bem mais reduzido (de 15 deverão ficar 11).
Por volta da mesma altura, a candidatura ibérica recebeu uma boa notícia: o Reino Unido, que agregava as federações de Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte, desistiu da organização do Mundial 2030 para se concentrar na proposta ao Europeu de 2028, que ganhou nos últimos dias. Ou seja, Portugal e Espanha ficavam isolados enquanto única candidatura europeia e lutavam somente contra a candidatura da América do Sul, que tinha Argentina, Paraguai, Uruguai e Chile, e a possibilidade de uma candidatura de África, com Marrocos e outro país do Norte do continente.
Em outubro de 2022, porém, surgiu a primeira grande surpresa de todo o processo. Em Nyon, numa conferência de imprensa na sede da UEFA, Portugal e Espanha anunciaram que iriam ter um novo parceiro na candidatura à organização do Campeonato do Mundo – a Ucrânia, que na altura estava já há oito meses a combater a invasão da Rússia. “Para alguns, esta decisão pode parecer surpreendente e inesperada. Para nós, foi uma decisão lógica e natural. A devastação, a fuga de milhões de ucranianos, a incerteza em relação ao futuro, pesou na nossa vontade de integrar a Ucrânia nesta candidatura. O futebol é muito mais do que futebol. E não seria necessário invocar outra razão para justificar o que aqui nos traz hoje. Futebol é superação, compromisso, resiliência, inspiração”, explicou Fernando Gomes.
A candidatura tripartida apresentava desde logo três consequências diretas: 1) a Ucrânia garantia que continuava a ter o foco de todos os países num eventual período pós-guerra que será obrigatoriamente marcado por uma longa reconstrução do país a vários níveis – e foi também por isso que o próprio líder ucraniano, Volodymyr Zelensky, deu parecer positivo com especial entusiasmo à integração da proposta; 2) Portugal e Espanha, que já tinham o forte apoio da UEFA no projeto, colocavam a escolha num plano que ia mais além do futebol e reforçavam esse mesmo apoio europeu em torno da candidatura, podendo ainda recolher muitos votos fora do continente por tudo aquilo que estava em causa; 3) para existir possibilidade de triunfo, a guerra teria de chegar ao fim pelo menos até ao próximo Congresso da FIFA, marcado para 2024.
Roberto Martínez chegou à Seleção Nacional em janeiro de 2023, ocupando o lugar que era de Fernando Santos há oito anos, na sequência do Mundial do Qatar e nessa ideia quase construída de propósito de ter um treinador espanhol a orientar Portugal, e o carrossel deu mais uma volta já em março deste ano. Numa resposta clara à candidatura entretanto anunciada por Arábia Saudita, Egito e Grécia, Marrocos juntou-se a Portugal, Espanha e Ucrânia e tornou a proposta europeia num projeto intercontinental.
A decisão foi anunciada no Congresso da FIFA que decorreu no Ruanda, com o ministro do Desporto marroquino a ler uma mensagem do rei Mohammed VI, e foi confirmada pela Federação Portuguesa de Futebol logo no dia seguinte. “A união dos três países vizinhos contribuirá para reforçar os laços entre a Europa e África, bem como todo o Mediterrâneo, e inspirará milhares de jovens de ambos os continentes num projeto comum que tem como eixo fundamental o impacto que o futebol pode ter no desenvolvimento desportivo e social da região”, podia ler-se no comunicado emitido na altura pelo organismo liderado por Fernando Gomes.
A inclusão de Marrocos, porém, criou desde logo uma dúvida: será que a Ucrânia ia mesmo manter-se na candidatura? Na mesma nota, a Federação indicava que a participação ucraniana no projeto seria “clarificada em tempo oportuno devido à situação que o país atravessa, bem como do presidente da Federação Ucraniana de Futebol, Andriy Pavelko”, que estava suspenso de funções depois de ter sido detido sob acusação de desviar fundos que seriam destinados à construção de uma fábrica de relvados artificiais para campos de futebol, arriscando uma pena de 12 anos de prisão.
Em abril, António Costa garantiu que a Ucrânia continuava a fazer parte da candidatura. “Temos, como sabem, a ambição de em conjunto com Espanha, Marrocos e Ucrânia organizar o Mundial 2030. Uma candidatura única entre as duas margens do Mediterrâneo”, disse o primeiro-ministro durante o Congresso da UEFA que decorreu em Lisboa. Ainda assim, e como agora se confirmou, a movimentação não terá passado de uma espécie de cortesia para com um parceiro que, apesar de não receber jogos, poderá contribuir de outra forma ainda a ser estudada.
Já em junho, e depois de muitas notícias que até colocavam Cristiano Ronaldo como eventual embaixador da candidatura, Arábia Saudita, Egito e Grécia anunciaram a retirada da corrida ao Mundial 2030, alegadamente para concentrarem esforços no Campeonato do Mundo seguinte, em 2034. Mais: os sauditas quase reconheciam que seria muito complicado haver uma proposta que batesse a candidatura ibérica acima de qualquer outra. Portugal, Espanha e Marrocos ficavam assim a competir apenas com a América do Sul – com a FIFA a acabar por decidir unir, da forma possível, as duas candidaturas.
Esta quarta-feira, o organismo que regula o futebol mundial anunciou que o Campeonato do Mundo 2030 será disputado em Portugal, Espanha e Marrocos, sendo que os três jogos inaugurais da competição terão lugar no Uruguai, na Argentina e no Paraguai, como forma de assinalar o centenário do primeiro Mundial de sempre – que aconteceu em 1930, precisamente em território uruguaio, com o jogo inaugural em Montevideu. Da Ucrânia, ainda ninguém falou.