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Quando é meio-dia em Kaliningrad, a capital do território mais ocidental da Rússia, são já 22 horas em Petropavlovsk, na Península do Kamchatka, no Extremo Oriente Russo. A Rússia não se limita a ser, com os seus 17 milhões de Km2, o maior país do mundo, tem quase o dobro da área dos países que se lhe seguem no ranking – Canadá, China e EUA. Compreende 85 unidades administrativas, com 22 repúblicas, 46 “oblast” (províncias), 9 “krai” (territórios), 4 “avtonomy okrug” (distrito autónomo, em que a maior parte da população não é russa), 3 cidades federais e 1 “avtonomy oblast”. Possui 145 milhões de habitantes (o que faz dela o 9.º país mais populoso do mundo), que falam cerca de uma centena de línguas e se repartem de forma desigual: ¾ da população vive no quarto de território mais ocidental, ¼ da população nos ¾ do território a leste.

Funcionando como complemento ao bosquejo da história e geografia da Ucrânia (ver De Kharkiv a Mariupol: Como foram formadas as cidades que contam a história da Ucrânia), o presente artigo pretende dar uma ideia da dimensão e diversidade do território russo e da forma como o modesto Grão-Ducado de Moscóvia se transformou num colosso que faz fronteira com Noruega, Finlândia, Estónia, Lituânia, Polónia, Bielo-Rússia, Ucrânia, Geórgia, Azerbaijão, Cazaquistão, Mongólia, China e Coreia do Norte e está separado por poucas milhas de mar de três “inimigos históricos”, os EUA (no Estreito de Bering), o Japão (no Mar do Japão) e a Turquia (no Mar Negro) – e que parece cada vez mais ansioso e obcecado com estas fronteiras.

Kaliningrad

[54º 42’ N, 20º 27’ E]

Há muitos europeus ocidentais que não estão conscientes da existência de um exclave russo no meio da União Europeia. O Kaliningrad Oblast, aninhado entre a Polónia e a Lituânia, na costa do Mar Báltico, fica a quase 400 Km, em linha recta, do território russo mais próximo, ocupa 15.000 Km2 (1/6 da área de Portugal) e tem por capital a cidade homónima, cuja história é longa e enredada,

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Os primeiros a estabelecer um povoamento no local onde hoje se ergue Kaliningrad foram os sambinos, uma tribo prussiana – a fortificação, chamada Twangste (“carvalhal”), foi arrasada em 1255 pelos cavaleiros teutónicos, que empreenderam a conquista, germanização e cristianização da região, numa cruzada comandada por Otokar II, rei da Boémia, margrave da Morávia e duque da Áustria. No lugar de Twangste foi erguida uma nova fortaleza, baptizada como Královec (“cidade do rei”, em checo), em homenagem a Otokar II. Porém, a cidade deixou marca na História como Königsberg (“montanha do rei”) e, uma vez que tal nome significa “montanha do rei” e o território é plano, há quem sugira que, pelo caminho, tenha ocorrido a adulteração de “burg” (cidade, fortaleza) para “berg” (montanha).

Königsberg, segundo gravura incluída no Theatrum Urbium (1593) de Abraham Saur

Königsberg foi capital da Ordem Teutónica, membro da Liga Hanseática, parte do reino da Polónia e sede do Ducado da Prússia; em 1618 este ficou sob o domínio do Eleitor de Brandenburg, situação que perdurou até 1710, quando a chamada Brandenburg-Prússia se converteu no Reino da Prússia – a capital foi transferida para Berlim, mas as coroações dos reis prussianos continuaram a fazer-se em Königsberg.

No âmbito da Guerra dos Sete Anos, a Prússia Oriental, de que Königsberg era a principal cidade, ficou sob o domínio do Império Russo entre 1758 e 1764. Regressada ao controlo do rei da Prússia, a cidade viria a integrar, em 1866, a Confederação do Norte da Alemanha, que, cinco anos depois, daria origem ao Império Alemão.

O castelo de Königsberg, c.1900

A extinção deste, em 1918, restaurou uma Polónia independente à custa de território alemão, mas a Prússia Oriental, ainda que encolhida, continuou a fazer parte da Alemanha, sob a forma de exclave. No início da II Guerra Mundial, Hitler restabeleceu a continuidade territorial da Alemanha com a Prússia Oriental, mas por pouco tempo: em 1944-45, a Prússia Oriental foi devastada pelos exércitos soviéticos, em combates que foram dos mais ferozes da guerra, e, finda esta, a Conferência de Potsdam estabeleceu uma nova ordem geopolítica para a Europa e dividiu a Prússia Oriental em três fracções: uma foi integrada na Polónia (convertida em país-satélite da URSS), outra foi integrada na Lituânia (que regressou, como os outros dois estados bálticos, ao estatuto de República Socialista Soviética) e a parte de leão, incluindo Königsberg, foi convertida num exclave da República Socialista Federativa Soviética da Rússia.

Stalin não podia invocar antecedentes históricos para reclamar Königsberg (o interregno de 1758-1764 era um argumento débil), mas tinha uma forte razão de ordem prática: tal como o Império Russo, a URSS estava mal servida de portos livres de gelo 365 dias por ano (havia portos soviéticos no Mar Negro, mas a saída deste mar era – e é – controlada pela Turquia) e Königsberg podia colmatar essa lacuna.

Assim foi Königsberg – onde nasceram ou viveram figuras como Immanuel Kant, E.T.A. Hoffmann, ou Hannah Arendt – removida da órbita germânica e atirada para a órbita soviética, o que foi acompanhado da expulsão dos habitantes alemães e da imigração maciça de russos. Esta russificação étnica foi acompanhada por uma russificação simbólica: o rebaptismo, em 1946, de Königsberg como Kaliningrad, em honra de Mikhail Kalinin, que fora um dos pioneiros da facção bolchevique e ocupara o cargo equivalente a chefe de Estado da URSS entre 1919 e a sua morte, em Agosto de 1946, mas que, com a ascensão de Stalin, vira o seu papel tornar-se meramente protocolar. No (fracassado) romance A festa da insignificância (2014), Milan Kundera convoca como personagens Kalinin e Stalin e sugere que a atribuição a Königsberg do nome de alguém tão insignificante e tacanho quanto Kalinin foi uma forma de Stalin humilhar uma cidade usualmente identificada com Kant, um dos esteios do Iluminismo e da Razão, e de, deste modo, manifestar o seu desprezo pelo que Kant representava.

Mikhail Kalinin (1875-1946), década de 1920

Na verdade, Mikhail Kalinin já estava bem representado na toponímia quando ainda era vivo, pois dava nome a duas outras grandes cidades: Tver (hoje com 415.000 habitantes) chamou-se Kalinin entre 1931 e 1990 e Korolyov (hoje com 220.000 habitantes) chamou-se Kaliningrad entre 1938 e 1996 (o que significa que entre 1946 e 1996 coexistiram duas Kaliningrad). O nome Kalinin foi também imposto a uma miríade de cidades de menor importância – Noramarg e Tashir, na Arménia, Burunqovaq, no Azerbaijão, Panjrud e Sarvati Istiqlol no Tadjiquistão, bem como outras na Rússia e Quirguistão – mas estas recuperaram os nomes originais após a dissolução da URSS.

A antiga Königsberg, manteve, todavia o nome do herói bolchevique, apesar de o regime russo pós-1991 não ter, ideologicamente, vínculo ao comunismo. Uma vez que, em 1945, o exclave de Kaliningrad fora agregado à República Socialista Federativa Soviética da Rússia e não à vizinha RSS da Lituânia, quando esta se tornou independente, em 1990, e a URSS foi dissolvida, em 1991, Kaliningrad passou a fazer parte da nova Rússia, que se assumiu como herdeira da RSFS da Rússia. O Governo alemão não só nunca sugeriu que a região de Kaliningrad/Königsberg deveria ser devolvida à Alemanha, como a Constituição alemã deixa clara a renúncia definitiva do país a qualquer território situado a leste da linha Oder-Neisse, que define, desde 1945, a fronteira germano-polaca.

A Catedral de Kaliningrad, que remonta ao século XIV, é o mais representativo dos edifícios da antiga Königsberg que escapou aos bombardeamentos de 1945, quando a cidade foi tomada pelos soviéticos

Baltiysk

[54º 39’ N, 19º 55’ E]

Baltiysk, no exclave de Kaliningrad, é uma cidade pouco conhecida, mas é a cidade mais a oeste da Rússia e é uma das mais prementes razões para a existência do dito exclave: é nela que está instalada uma das principais bases da frota russa do Báltico.

Como as restantes cidades do Kaliningrad Oblast, foi durante séculos uma cidade alemã, com origem numa aldeia de pescadores chamada Pil (possivelmente a partir da antiga palavra prussiana para “forte” = “pil”), nome que, em 1686, evoluiu para Pillau. Converteu-se num importante porto do Ducado da Prússia e, em resultado da Guerra dos Trinta Anos, esteve em mãos suecas entre 1626 e 1635. Durante a Guerra dos Sete Anos passou por breve ocupação russa. No final da II Guerra Mundial, com a tenaz soviética a apertar-se, quase meio milhão de alemães que viviam na Prússia Oriental foram transportados por via marítima para a zona ocidental da Alemanha a partir de Pillau.

A criação do Kaliningrad Oblast levou à deportação de mais alemães e à mudança de nome para Baltiysk, que alude, claro, ao mar que banha a cidade.

Civis alemães a serem retirados do porto de Pillau, Janeiro de 1945

A aldeia-fantasma de Narmeln, também designada por Polski, no distrito de Baltiysk, é o ponto mais a oeste da Rússia. Fica sobre o Cordão do Vístula, uma estreita língua arenosa que separa a Laguna do Vístula da Baía de Gdańsk e que está hoje repartida entre a Polónia (a oeste) e o exclave de Kaliningrad (a leste). Entre 1920 e 1939, a antiga aldeia piscatória fez parte do território da Cidade Livre de Danzig/Gdańsk (uma entidade semi-autónoma sob a protecção da Liga das Nações) e foi reintegrada na Alemanha em 1939. Viu a sua população ser integralmente expulsa em 1945, uma vez que os soviéticos converteram a sua metade do Cordão do Vístula numa zona interdita. Narmeln tem a particularidade de ter sido a única localidade do Kaliningrad Oblast a ter escapado à russificação maciça da toponímia após a II Guerra Mundial – mas foi apenas por estar morta. Em poucos lugares do mundo a reescrita da história tão profunda e abrangente quanto no Kaliningrad Oblast.

Narmeln, década de 1930

São Petersburgo

[59º 56’ N, 30º 18’ E]

Com 5.3 milhões de habitantes, é a 2.ª cidade mais populosa da Rússia (e a 4.ª mais populosa da Europa) e um dos principais polos culturais, artísticos e políticos do país. Não deixa de ser curioso que uma das mais emblemáticas cidades russas tenha um nome tão pouco russo: o seu fundador, o czar Pedro I, o Grande (reinado: 1682-1725), viajara incógnito, durante 18 meses, pela Europa – tendo ficado particularmente bem impressionado com a Holanda – e regressou determinado a impor à Rússia um ambicioso programa de ocidentalização. Um dos elementos desse programa foi a edificação, no delta do Rio Neva, no fundo do Golfo da Finlândia, de uma ampla cidade portuária, sulcada por canais, a que deu o nome, de ressonância holandesa, Sankt-Pieter-Burch, mais tarde germanizado para Sankt-Peterburg.

A região do Golfo da Finlândia e da Carélia fora durante séculos alvo de colonização por vikings e, depois, por suecos, que deram à região o nome de Ingermanland (Ingria, na forma latinizada) e os russos só expulsaram os suecos e assumiram o seu controlo após a Grande Guerra do Norte (1700-21). No lugar onde o czar Pedro I fez erguer, em 1703, o primeiro edifício da futura São Petersburgo, a Fortaleza de Pedro e Paulo, existira o forte sueco de Nyenskans.

Mapa de São Petersburgo, 1774. No canto superior direito figura uma versão helenizada do nome da cidade: “Petropolis”

Na visão de Pedro I, São Petersburgo iria substituir Moscovo como centro político – nunca tivera apreço por Moscovo e entendia que a histórica capital russa estava demasiado afastada da Europa que tanto admirava – e Arkhangelsk como principal porto do Império Russo – este porto no Mar Branco estava gelado durante todo o Inverno.

São Petersburgo cresceu depressa e em 1712 foi oficializada como nova capital russa; com excepção de um interregno em 1728-32, quando Pedro II repôs a capital em Moscovo, a cidade do Neva – também conhecida como a “Veneza do Norte” – foi a sede do Império até o seu fim, em 1917.

“Tarde de Verão no Cais do Neva”: vista de São Petersburgo por Pyotr Vereshchagin (c.1834-1886)

Isto não significa que o seu nome se tenha mantido: em 1914, com a eclosão da I Guerra Mundial, Sankt-Peterburg foi visto como sendo evocativo do inimigo alemão e foi “russificado” como Petrograd. A Revolução Bolchevique manteve este nome até 26 de Janeiro de 1924, altura em que, a fim de homenagear Lenin, falecido cinco dias antes, passou a Leningrad. Os bolcheviques transferiram a capital para Moscovo em 1917, por entenderem que esta cidade estava menos exposta aos ataque dos exércitos de Russos Brancos (czaristas), mas Leningrad continuou a desempenhar papel fulcral no imaginário bolchevique, por ter sido palco de episódios decisivos da luta contra o regime czarista. Alguns deles – como o Domingo Sangrento, a 22 de Janeiro de 1905, e o assalto ao Palácio de Inverno, a 8 de Novembro de 1917 – tiveram lugar na vasta Praça do Palácio, que, entre 1918 e 1944, foi designada como Praça Uritsky, em homenagem a Moisei Uritsky, líder da secção de São Petersburgo da Cheka, a primeira encarnação da polícia política bolchevique.

A Praça do Palácio, em São Petersburgo

É plausível que a sanha que, durante a II Guerra Mundial, Hitler dirigiu contra Leningrad e Stalingrad tenha a ver com o facto de estas cidades ostentarem os nomes de duas pessoas que odiava do fundo da alma. O cerco de Leningrad começou a 8 de Setembro de 1941, e, dois dias depois, Joseph Goebbels escrevia no seu diário: “Não nos preocuparemos em exigir a capitulação de Leningrad. A cidade pode ser destruída segundo um método quase científico”. O “método” assentava nos cálculos do Prof. Wilhelm Ziegelmeyer, do Instituto de Nutrição de Munique, que previra que um mês de bloqueio bastaria para que a ração diária baixasse para um nível que faria os habitantes de Leninegrado tombar de inanição “e então entraremos na cidade […] sem termos perdido um único soldado alemão”. A fome e, em muito menor medida, os bombardeamentos ceifaram a vida de um milhão de sitiados, mas, após 872 dias de cerco, os sitiantes foram forçados a bater em retirada. Terminada a guerra, Ziegelmeyer desempenhou altos cargos em entidades responsáveis pela nutrição e saúde no sector soviético de ocupação da Alemanha e, candidamente, confessou aos seus colegas russos a sua perplexidade por no cerco de Leningrad só terem perecido um milhão de pessoas: “É para mim um mistério o milagre que vos aconteceu”.

Notas redigidas por Tanya Savicheva, uma menina de Leningrad, dando conta das mortes sucessivas, pela fome, de todos os membros da sua família; na última nota lê-se “Só sobrou a Tanya”. Ela própria sucumbiria às sequelas da malnutrição, pouco depois da libertação da cidade

Em 1991, com a dissolução da URSS, foi restabelecido o nome São Petersburgo. Nesse mesmo ano, teve lugar a primeira eleição democrática do presidente da câmara, que foi ganha por Anatoly Sobchak. Para o posto de assessor em assuntos internacionais, Sobchak escolheu um antigo aluno seu, um anódino ex-funcionário do KGB, nativo de Leningrad, que, entre 1985 e 1990, estivera destacado em Dresden, na República Democrática Alemã. Apesar de se ter envolvido num esquema de corrupção que fez desaparecer 93 milhões de dólares, o dito assessor não só viu arquivada a investigação como foi subindo na hierarquia da câmara municipal, desempenhando, na prática, o papel de vice-presidente, e na política local, sendo nomeado director de campanha para a reeleição de Sobchak, em 1996. A derrota de Sobchak levou o ex-agente a demitir-se e a mudar-se para Moscovo, onde em 1997, foi contratado para ser vice-chefe de gabinete do presidente da Rússia, Boris Yeltsin. Nesse mesmo ano, Sobchak foi, por sua vez, acusado de corrupção, mas, alegando problemas cardíacos e a necessidade de receber tratamento adequado, escapou-se para França. Em 1999, o seu ex-aluno, que, entretanto, se tornara no braço direito de Yeltsin, ordenou o arquivamento do processo contra Sobchak e este regressou à Rússia.

O nome deste ex-agente do KGB? Vladimir Vladimirovich Putin.

Vladimir Putin no funeral do seu antigo mentor e “patrão”, Anatoly Sobchak, no Palácio Taurida, São Petersburgo, Fevereiro de 2000

Kronstadt

[60º 00’ N, 29º 46’ E]

Na Ilha de Kotlin, poucos quilómetros ao largo de São Petersburgo, fica a cidade portuária de Kronstadt. Tal como São Petersburgo, Kotlin foi durante séculos ocupada por suecos, que foram escorraçados em 1704 pelo czar Pedro I; este determinou a construção na ilha de uma fortaleza, baptizada com o nome (sueco) de Kronshlot (“castelo da coroa”), depois alterado para Kronstadt (“cidade da coroa”, em alemão).

A Baía de Kronstadt, mapa alemão de 1888

Kronstadt converteu-se num dos mais activos e cosmopolitas portos mercantis do Báltico, ao mesmo tempo que a sua base naval passou a ser a mais importante da Frota do Báltico e a principal defesa de São Petersburgo contra um ataque por mar. Os marinheiros de Kronstadt estiveram presentes em momentos emblemáticos da conturbada história russa do início do século XX, amotinando-se em 1905, 1906 e em Fevereiro de 1917 (quando levaram a insubordinação ao ponto de executarem os seus oficiais), e contribuindo, em Outubro desse mesmo ano, para o triunfo da Revolução Bolchevique em São Petersburgo.

Os marinheiros amotinados de Kronstadt submetem-se ao Almirante Aleksei Birilev, Ministro da Marinha. Ilustração, por Achille Beltrane, no La Domenica del Corriere, 26 de Novembro de 1905

Estas intervenções e o papel desempenhado, ao lado dos bolcheviques, na devastadora Guerra Civil que se seguiu, instilou nos marinheiros de Kronstadt a ideia de que as suas reclamações e pontos de vista sobre a condução da política na URSS poderiam ser atendidas pelas autoridades bolcheviques. Entre as suas reivindicações, formuladas em Fevereiro de 1921, estavam a liberdade de expressão e de imprensa, a liberdade de associação em sindicatos, a libertação dos prisioneiros políticos de orientação socialista, o direito dos camponeses a explorar as suas terras com o seu trabalho e o fim do controlo bolchevique sobre múltiplos aspectos das Forças Armadas e da sociedade soviética. Lev Trotsky, Ministro da Guerra e Chefe Supremo do Exército Vermelho, não perdeu muito tempo a negociar as reivindicações dos marinheiros: fez desembarcar em Kronstadt as suas tropas, seguidas pela Cheka, e o levantamento acabou sufocado num banho de sangue, que pode ser visto como o fim simbólico das ilusões que pudessem ainda subsistir sobre a real natureza do bolchevismo.

Arkhangelsk

[64º 32 N, 40º 32’ E]

Arkhangelsk é uma cidade portuária de 350.000 habitantes no Mar Branco, junto à foz do Dvina Setentrional. Há vestígios de os vikings se terem instalado na região pelo menos desde o final do século IX; os russos chegaram no século XIII, vindos de Novgorod, e construíram um mosteiro dedicado ao Arcanjo Miguel, o que explica o nome da cidade.

O Arcanjo Miguel protegendo a cidade de Arkhangelsk, por autor anónimo, 1741

Apesar de o porto gelar durante o Inverno, na II Guerra Mundial Arkhangelsk e Murmansk (no Mar de Barents) foram os principais pontos de entrada na URSS da ajuda dos Aliados uma vez que os portos do Mar Báltico e Mar Negro não podiam ser utilizados (os alemães controlavam a entrada do primeiro, os turcos, a entrada do segundo). O que é intrigante é que a sanha anti-religiosa do bolchevismo tenha permitido que o nome de Arkhangelsk ficasse intocado.

Moscovo

[55º 45’ N, 37º 37’ E]

O nome da capital russa – Moskva, em russo – provém do rio que a atravessa, que por sua vez poderá ter origem em “mustajoki”, que na língua das tribos fino-úgricas, que precederam ali os eslavos, significa “rio negro”; outra possibilidade é que venha do balto-eslavo “muzg” = terreno alagadiço.

A mais antiga referência documental a Moscovo data de 1147, altura em que era ainda um povoamento modesto e Kiev já há muito era a capital de um reino florescente. A fortificação do povoado, iniciada em 1156, não impediu que os mongóis o arrasassem em 1237. Moscovo recuperou e prosperou e no início do século XIV tornou-se na capital do Grão-Ducado de Moscóvia. Sob Ivan III, o Grande, que assumiu o título de Grande Príncipe de Moscovo e teve um longo reinado (1462-1505), a ameaça mongol foi afastada, o território sob controlo de Moscovo foi multiplicado por sete e o Kremlin foi reconstruído e ampliado, sob a orientação de arquitectos mandados vir de Itália. O neto de Ivan III, Ivan IV, o Terrível, não se contentou em ser Grande Príncipe de Moscovo: quando subiu ao trono, em 1547, proclamou-se Czar de Todas as Rússias.

Os tártaros da Crimeia voltaram a assediar Moscovo em 1591, mas o Kremlin reconstruído por Ivan III resistiu aos invasores.

O Kremlin ou “Castellum urbis Moskvae” (“Castelo da cidade de Moscovo”), segundo o atlas Theatrum Orbis Terrarum (1663)

No século XVI, Moscovo tinha 200.000 habitantes, mas a mudança da capital russa para São Petersburgo, em 1712, fez a população decrescer para 130.000 em 1750. A peste que se abateu sobre a cidade em 1771 levou as autoridades a impor um confinamento rigoroso e outras medidas de quarentena, que espoletaram violenta contestação popular (como se vê, é um problema antigo); a ordem acabou por ser reposta, mas vários mosteiros foram incendiados pela turba.

A 14 de Setembro de 1812, a Grande Armée de Napoleão Bonaparte entrou em Moscovo, mas como os russos tinham aplicado uma estratégia de terra queimada, destruindo todos os recursos que pudessem sustentar os invasores, à medida que retiravam, o “triunfo” de Napoleão foi vão do ponto de vista militar. A cidade semi-deserta já oferecia, aos invasores, um aspecto desolador, mas pior estava para vir: pequenos fogos ateados por sabotadores russos acabaram por confluir num incêndio devastador, cuja coluna de fumo foi visível a 200 Km de distância. A 19 de Outubro, Napoleão, sem saber o que fazer de uma capital imperial vazia e parcialmente queimada, não teve alternativa senão abandonar Moscovo, dando instruções para fazer explodir o Kremlin – esta rancorosa decisão não produziu, todavia, efeitos relevantes, por a colocação dos explosivos ter sido executada de forma atabalhoada.

Napoleão em Moscovo, por Adam Albrecht, 1841

129 anos depois, outro tirano megalómano da Europa Ocidental tomou Moscovo por alvo e também fracassou estrondosamente – as tropas deste novo conquistador, Adolf Hitler, nem sequer conseguiram entrar na cidade, devido à resistência desesperada dos soviéticos, aos reforços trazidos à pressa do Extremo Oriente, à impreparação da Wehrmacht para o áspero clima russo e ao excepcional rigor do Inverno de 1941-42 (o mais frio do século XX). Em Outubro de 1941, Stalin, que chegou a dar a cidade como perdida, ordenou a transferência de vários serviços administrativos e do Estado-Maior para a cidade de Kuybyshev (hoje Samara), 800 Km para leste, e também considerou fazer o mesmo, mas, à última hora, decidiu ficar no Kremlin.

À espera do invasor: Moscovo, Outubro de 1941

Antes da guerra, em 1937, Nikolay Yezhov, então chefe da NKVD (a sucessora da Cheka), sugerira que Moscovo fosse rebaptizada como Stalinodar (“Dádiva de Stalin”), mas Stalin declinou a proposta. Após o término da II Guerra Mundial, Lazar Kaganovich, homem de mão de Stalin e um dos principais obreiros da Grande Purga de 1937, reapresentou a sugestão de Yezhov, que Stalin voltou a rejeitar.

Volgograd

[48º 42’ N, 44º 30’ E]

Estas rejeições nada tiveram a ver com modéstia, já que Stalin promovia entusiasticamente o culto da personalidade; o que terá detido Stalin foi o facto de Moscovo possuir demasiado lastro histórico para que o seu nome pudesse ser substituído pelo de um governante do presente, por mais popular que fosse. A prová-lo está o facto de, em 1925, ter aceitado que Tsarityn, nas margens do Rio Volga, fosse rebaptizada como Stalingrad.

O nome original da cidade, cujas origens remontam, pelo menos, a 1555, nada tinha a ver com czars (“tsar”, nas línguas eslavas); resultou de se situar na confluência do Volga com o Tsarits, cujo nome provinha do turcomano “sary su” = “rio amarelo”, numa alusão à cor das areias nas margens. Durante três séculos, Tsarityn teve uma existência discreta e modorrenta e só começou a desenvolver-se no século XIX, registando 84.000 habitantes em 1900. O rebaptismo como Stalingrad tinha como intenção recompensar Stalin– que entretanto ascendera a secretário-geral do PCUS – pelo papel que desempenhara na defesa da cidade durante a Guerra Civil de 1917-23.

Stalingrad, que, nas décadas de 1920-30 se tornou num importante centro industrial, seria completamente arrasada em 1942-43, no decurso de uma batalha ferocíssima, que, em pouco mais de cinco meses, causou cerca de dois milhões de baixas entre as forças do Eixo e da URSS.

O centro de Stalingrad, a 2 de Fevereiro de 1943, na véspera da rendição do VI Exército alemão e do termino dos combates

No “discurso secreto”, lido a 25 de Fevereiro de 1956, durante o 20.º Congresso do PCUS, Nikita Khrushchev denunciou os erros da governação de Stalin (falecido três anos antes), reprovando-lhe, nomeadamente, o culto da personalidade. E, concomitantemente, Khrushchev empreendeu, a partir de 1961, uma campanha de “destalinização”, que passou por apagar o Paizinho dos Povos da toponímia da URSS – e foi assim que Stalingrad passou a Volgograd (“cidade do Volga”).

Bizarramente, 61 anos após esta mudança, o jornal Avante!, órgão oficial do PCP, continua a anunciar nas suas páginas viagens a “Stalingrado” e “Leninegrado”. Os analistas políticos costumam ver o colapso da URSS, em 1991, como um golpe violento para os partidos comunistas da Europa Ocidental, que, privados do seu “farol”, ou definharam rapidamente ou se fragmentaram, com alguns dos seus líderes e militantes migraram para a social-democracia; porém, este discreto anúncio no Avante! revela que o evento traumático que o PCP nunca conseguiu superar não foi o fim da URSS, foi a morte de Stalin.

“A mãe-pátria chama!”: Homenagem aos heróis soviéticos da Batalha de Stalingrad. Esta “obra-prima” do realismo socialista, de 85 metros de altura, começou a ser construída em 1959 e foi concluída em 1967. Era – e continua a ser – a mais alta estátua da Europa

Novokuznetsk

[53º 46’ N, 87º 08’ E]

Stalingrad foi apenas uma das muitas cidades engaladas com o nome do Paizinho dos Povos – foi o que aconteceu, por exemplo, a Novokuznetsk, no sudoeste da Sibéria. A cidade, fundada por cossacos em 1618, começou por ter o nome Kuznetsky Ostrog (“forte dos ferreiros”), depois simplificado para Kuznets. Na era soviética, a cidade conheceu forte desenvolvimento nas áreas da extracção e processamento de carvão e minérios e da metalomecânica; em 1931, após fundir-se com Sad Gorod, passou a Novokuznets. No ano seguinte foi convertida em Stalinsk, nome que se manteve até à “destalinização” de 1961. Hoje é uma cidade de 550.000 habitantes.

Durante a II Guerra Mundial a indústria metalomecânica de Stalinsk foi vital para o esforço de guerra soviético, nomeadamente através da produção em massa do tanque T-34 – é ele que tem destaque neste monumento em Novokuznetsk que comemora os feitos dos operários das Fábrica de Metal e Aço de Stalinsk/Novokuznets (NKMK)

Novomoskovsk

[54º 05’ N, 38º 13’ E]

A actual cidade de Novomoskovsk (c.130.000 habitantes), na parte russa da bacia do Don, teve origem na herdade e casa senhorial dos condes Bobrinsky, descendentes de Aleksey Grigorievich (1762-1813), filho ilegítimo de Catarina II e do conde Grigory Orlov. Após conseguir ocultar a gravidez do seu esposo, o recém-coroado czar Pedro III, Catarina gizou um plano para disfarçar também o nascimento do bebé: sabendo que o czar tinha um fascínio mórbido por incêndios, no dia do parto ordenou a um servo de confiança que incendiasse a sua própria casa. O czar acorreu, embasbacado, a ver as chamas e a criança foi enviada para ser criada uma aldeia na província de Tula, chamada Bobriki, a partir do rio vizinho com o mesmo nome (de “bobr” = castor). Uma vez que, poucos meses depois, Catarina depôs o seu esposo e assumiu o trono russo, não teve pejo em reconhecer ser mãe de Aleksey Grigorievich e em outorgar-lhe o título de Conde de Bobrinsky, a partir do nome da dita aldeia, que passou a fazer parte dos domínios da família. Bobriki conheceu forte desenvolvimento na era soviética como centro de mineração de carvão e em 1934 foi rebaptizada como Stalinogorsk, designação que persistiu até 1961, sendo substituído pelo presente nome.

Aleksey Grigorievich, o 1.º conde Bobrinsky

Os exemplos acima dizem respeito a território russo, mas noutras repúblicas da URSS – que, entretanto, ganharam independência – também houve, até 1961, fartura de cidades com o nome de Stalin: Imeni Stalina (hoje Aygevan) na Arménia, duas Stalino no Azerbaijão, Staliniri (Tskhinvali) e Stalinisi (Khashuri) na Geórgia, Stalinabad (Dushanbe) no Tadjiquistão e Stalino (Donetsk) na Ucrânia. A toponímia stalinista extravasou as fronteiras da URSS e ganhou expressão noutros países do Bloco Leste: Albânia, Bulgária, Hungria, Polónia, Roménia e República Democrática Alemã.

Kirovsk

[67º37’ N, 33º 39’ E]

Apesar de Stalin ter sido, de longe, o maior beneficiado pela onda de sovietização da toponímia, outros líderes bolchevique foram também contemplados – foi o caso de Sergei Kirov, membro do Politburo e sucessor de Lenin na chefia da secção de Leningrado do PCUS, que foi assassinado em 1934.

O assassinato de Kirov não teve motivações políticas: o seu assassino, Leonid Nikolaev, um desempregado de corpo franzino e mente instável, agira por conta própria e pretendia apenas vingar-se de ter sido expulso do PCP, acto cuja responsabilidade atribuía a Kirov. Porém, Stalin usou o assassinato para converter Kirov em mártir do bolchevismo (teve direito a funeral de Estado e foi sepultado na muralha do Kremlin) e inventar uma vasta conspiração que lhe deu pretexto para eliminar gente em quem não confiava (e Stalin era conhecido por ser extraordinariamente desconfiado).

Sergei Kirov, no 17.º Congresso do PCUS, em 1934

O nome de Kirov foi generosamente aspergido sobre cidades, ruas, unidades fabris e instituições culturais da URSS e uma das contempladas foi a cidade mineira de Khibinogorsk, situada no noroeste da Rússia e fundada em 1929, que foi convertida em Kirovsk (alegadamente por te sido Kirov a delinear o seu plano de exploração mineira). Outras homenagens brotaram no que são hoje a Arménia (Kirovakan, hoje Vanadzor), Azerbaijão (Kirovabad, hoje Ganja) e Ucrânia (Kirovo, hoje Kropyvnytskyi). Quer a cidade de Kirov quer as Ilhas Kirov (no Mar de Kara, 140 Km a norte da costa siberiana) mantiveram o nome até ao presente. Entre 1935 e 1992, um dos mais prestigiados teatros da URSS, com sede em Leningrad, ostentou também o nome Kirov, tal como a sua orquestra e a sua companhia de bailado – depois, foi reposto o nome original: Mariinsky.

O centro de Kirovsk

A cidade ucraniana de Kropyvnytskyi (hoje com 220.000 habitantes) é um exemplo extremo de como a toponímia da (antiga) URSS vogava (e voga) ao sabor de considerações políticas: quando foi fundada, c.1752, chamava-se Yelisavetgrad (depois, simplesmente Elizavet) e homenageava a czarina Isabel, que reinou de 1741 a 1761. Em 1924 passou a Zinovievsk, em honra de Grigory Zinoviev, um filho da terra e, à data, secretário-geral da Internacional Comunista; Zinoviev aliou-se a Stalin (contra Trotsky), ajudando-o a alcandorar-se ao topo da hierarquia bolchevique após a morte de Lenin, mas, depois de se ver no poder, Stalin começou a hostilizar Zinoviev e usou o assassinato de Kirov como pretexto para o implicar numa conspiração que envolveria Trotsky (então exilado em França). Sem surpresa, Zinovyevsk foi, em 1934, convertida em Kirovo, e, em 1939, em Kirovograd (Kirovohrad, em ucraniano). A independência ucraniana, em 1991, suscitou uma longa discussão sobre o nome a dar à cidade, que, em 2015, culminou (ou deveria ter culminado) num referendo em que os votantes escolheram regressar ao nome original, Yelisavetgrad. Todavia, nesse mesmo ano, a escolha popular foi suplantada por uma decisão de uma comissão do Parlamento ucraniano (Rada), que indicou o nome Inhulsk, numa alusão ao vizinho rio Inhul. Em 2016, outra comissão da Rada acabou por determinar o actual nome.

Samara

[53º 12’ N, 50º 08’ E]

Um ano depois de Kirov, tombava outro proeminente membro do Politburo, Valerian Kuybyshev (1888-1935) e, embora este não tivesse sido um mártir do bolchevismo, perecendo não pelas balas de um “conspirador” mas pelo consumo desregrado de álcool, Stalin fez com que o seu antigo conselheiro para assuntos económicos fosse sepultado na muralha do Kremlin e o seu nome fosse imposto a várias localidades na Rússia, Arménia, Azerbaijão e Tadjiquistão. A mais importante delas foi Samara, na confluência do Volga com o rio homónimo, cuja designação tem, possivelmente, raiz indo-iraniana e significa “água de Verão”, no sentido em que apenas corre na estação quente, estando gelado no Inverno.

Samara, c.1905

Em 1935, Samara foi rebaptizada como Kuybyshev e em 1941, perante o rápido avanço alemão, foram tomadas providências para que assumisse o papel de capital provisória da URSS. Em 1991, retomou a sua designação original e, com 1.1 milhões de habitantes, é hoje a 8.ª cidade mais populosa da Rússia.

Tolyatti

[53º 30’ N, 49º 25’ E]

O hábito soviético de prestar honras toponímicas a líderes comunistas não se circunscreveu aos que nasceram na URSS ou no Império Russo – é disto exemplo Tolyatti, uma cidade de 720.000 habitantes nas margens do Volga.

A sua origem remonta à fortaleza de Stavropol, fundada em 1737 e cujo nome provém do grego “stauros” = cruz + “polis” = cidade. Como entre o Mar Negro e o Mar Cáspio existia uma cidade com o mesmo nome, passou a ser designada por Stavropol-na-Volge (Stavropol-no-Volga), a fim de evitar confusão. Na década de 1950, com a construção no Volga da imponente Barragem Kuybyshev (outra vez ele!), a Albufeira Kuybyshev (e outra ainda!) submergiu a cidade, que teve de ser reconstruída num local mais elevado.

Em 1964, a nova cidade foi seleccionada para a implantação de uma enorme fábrica de automóveis, numa parceria entre a Fiat e a recém-criada Volzhsky Avtomobilny Zavod (Fábrica de Automóveis do Volga) ou AvtoVAZ (ver Wartburg, Moskvich e a origem das marcas de automóveis da Europa de Leste). Esta parceria italo-soviética tinha sido fomentada por Palmiro Togliatti, fundador do Partido Comunista Italiano e seu líder desde 1927, que, por coincidência, sucumbira a uma hemorragia cerebral quando passava férias na Crimeia nesse mesmo ano de 1964. A URSS entendeu que não haveria melhor forma de homenagear Togliatti e exprimir a união dos operários italianos e soviéticos do que rebaptizar Stavropol-na-Volge como Tolyatti.

Centro técnico e de design da AvtoVAZ, em Tolyatti

Stavropol

[45º 03’ N, 41º 59’ E]

Entretanto, a Stavropol entre o Mar Negro e o Mar Cáspio dera testemunho do efeito da graça e desgraça política na toponímia soviética. Nascera em 1777, no rescaldo da Guerra Russo-Turca de 1768-74, a partir de um acampamento militar, e em 1935 foi rebaptizada como Voroshilovsk, para celebrar a promoção a marechal de Kliment Voroshilov. Ao contrário da maior parte dos oficiais de alta patente, Voroshilov conseguiu escapar ileso da Grande Purga stalinista de 1936-37, provavelmente por ter denunciado muitos dos seus camaradas e organizado a execução em massa destes “traidores”, mas o seu desempenho desastroso na invasão da Finlândia, em 1939-40, fê-lo cair em desgraça. A invasão nazi da URSS pôs a nu os efeitos desastrosos da Grande Purga na operacionalidade do Exército Vermelho e levou a que, perante a escassez de oficiais experientes, Voroshilov fosse reabilitado e encarregado de defender Leningrad. Mais uma vez, o seu desempenho foi considerado insatisfatório e foi demitido; quando, em 1943, as tropas soviéticas reconquistaram aos alemães a cidade de Voroshilovsk, esta foi devolvida ao seu nome original.

Os cinco marechais da URSS, em 1935. Apenas Budyonny (de pé, à esquerda) e Voroshilov (sentado, ao centro) sobreviveram à Grande Purga

Yekaterinburg

[56º 50’ N, 60º 36’ E]

Catarina II, a Grande (1729-1796), a princesa alemã que abraçou fervorosamente o nacionalismo russo, esteve por trás da fundação de muitas cidades, sobretudo em torno do Mar Negro (ver De Kharkiv a Mariupol: Como foram formadas as cidades que contam a história da Ucrânia), mas Yekaterinburg, localizada no ocidente da Sibéria, não foi uma delas – o nome homenageia Catarina I (1684-1727), esposa do czar Pedro o Grande.

Catarina I, por Jean-Marc Nattier, 1717. Pela morte de Pedro o Grande, em 1725, Catarina assumiu o governo do império

Yekaterinburg teve origem numa fortaleza construída em 1723 num local onde existiam várias explorações de minério de ferro, de pequena dimensão. A extracção e refinação de minérios ganharam cada vez maior preponderância e em meados do século XIX a região representava 45% da produção mundial de ouro. Em 1895, quando o Trans-Siberiano entrou em funcionamento, a cidade contava com mais de 40.000 habitantes.

Em 1917, ano assaz conturbado na História da Rússia, a Revolução de Fevereiro (que teve lugar em Março, devido ao desfasamento do calendário juliano em uso na Rússia) levou à abdicação do cada vez mais impopular czar Nicolau II. Num primeiro momento o czar e a sua família foram colocados em prisão domiciliária no Palácio Aleksandr, em Tsarskoye Selo, 25 Km a sul de São Petersburgo (então Petrograd), mas em Agosto o governo provisório chefiado por Aleksandr Kerensky remeteu-os para a remota cidade siberiana de Tobolsk, alegadamente para proteger os Romanov da agitação cada vez maior que tomava conta da Rússia. Em Tobolsk, os Romanov não gozavam das mordomias de Tsarskoye Selo, mas ainda desfrutavam de algum conforto. Quando a Revolução de Outubro colocou os bolcheviques no poder, estes decidiram transferir os Romanov para Yekaterinburg. O czar e a família chegaram em Abril de 1918 e foram alojados na Casa Ipatiev, onde lhes foi imposto um regime extremamente austero e rigorosamente vigiado.

Foto de Agosto de 1918: A Casa Ipatiev, em Yekaterinburg, foi rodeada de uma paliçada para receber os Romanov

Os bolcheviques temiam que as forças czaristas aproveitassem o clima de guerra civil e tentassem libertar os Romanov e repor Nicolau II no trono – e a sua apreensão aumentou quando souberam que a Legião Checa, que lutava contra os bolcheviques, se movimentava em direcção a Yekaterinburg (na verdade, o seu objectivo era o controlo da linha Trans-Siberiana, não o resgate dos Romanov). A 16 de Julho de 1918, as autoridades da região dos Urais solicitaram a Moscovo autorização para a execução dos Romanov, que teve lugar na noite de 17 para 18, na cave da Casa Ipatiev. No dia seguinte, o jornal local noticiava a “execução de Nicolau, o Sanguinário Assassino Coroado – fuzilado sem as formalidades burguesas mas de acordo com os nossos novos princípios democráticos”.

Ocupado com a guerra civil e a supressão dos inimigos do povo (que toma o seu tempo, mesmo quando dispensa formalidades burguesas), o governo bolchevique só em 1924 apagou o nome Yekaterinburg, evocativo dos czares, substituindo-o por Sverdlovsk, em homenagem ao líder bolchevique Yakov Sverdlov, vitimado em 1919 pela gripe pneumónica.

Yakov Sverdlov (1885-1919)

Sverdlovsk tornou-se num polo da indústria pesada e prosperou, atingindo 420.000 habitantes nas vésperas da II Guerra Mundial e 920.000 em 1965. Em 1977, preocupado com o facto de a Casa Ipatiev se ter tornado num foco de peregrinação de saudosistas dos Romanov, o Politburo determinou a sua demolição, incumbência que foi atribuída a um líder local do PCUS chamado Boris Yeltsin.

Em 1991, Yeltsin tornou-se Presidente da Rússia, o nome original de Yekaterinburg foi restaurado e no lugar da Casa Ipatiev iniciou-se a construção da Igreja do Sangue em Honra de Todos os Santos que Resplandeceram na Terra Russa. Em 2006 abriu na cidade uma loja IKEA. Em 2018 disputaram-se no estádio da cidade quatro jogos do Campeonato Mundial de Futebol. A população actual da cidade está estimada em 1.5 milhões de habitantes, o que faz dela a 4.ª mais populosa da Rússia.

Igreja do Sangue, Yekaterinburg

Novosibirsk

[55º 03’ N, 82º 57’ E]

Com 1.6 milhões de habitantes, é a cidade mais populosa da Sibéria e a 3.ª da Rússia.

Nasceu em 1893, no ponto em que a linha do caminho-de-ferro Trans-Siberiano deveria cruzar o Rio Ob, com o anódino nome de Novaya Derevna (Vila Nova). Em 1894, foi rebaptizada como Aleksandrovsky, em memória do czar Alexandre III, falecido nesse mesmo ano, e, em 1895, como Novonikolayevsk, homenageando o novo czar, Nicolau II. A sua posição na linha do Trans-Siberiano proporcionou um fulgurante desenvolvimento e em 1917 já atingira os 80.000 habitantes.

Inexplicavelmente, continuou a ostentar o nome do último czar até 1926, altura em que ganhou o nome de Novosibirsk (Nova Sibéria).

A estação ferroviária de Novosibirsk, inaugurada em 1893

Krasnoyarsk

[56º 00’ N, 92º 52’ E]

A fundação de Krasnoyarsk remonta a 1628, quando os cossacos ergueram um forte na confluência dos rios Yenisei e Kacha, então o limite oriental do Império Russo. O seu nome provém de “krasnyy” = vermelho + “yar” = ravina, a tradução russa do nome dado ao local pelos khaka, o povo autóctone da região: Kyzyl Char, que também significa “ravina vermelha”.

A conquista da Sibéria pela Rússia começara quase meio século antes, em 1580, no final do reinado de Ivan IV, quando um destacamento cossaco comandado por Yermak Timofeyevich atacara o território dos vogul (hoje designados por mansi), um povo tributário do Khanato de Sibir, um principado tártaro com capital em Qashliq, perto do que é hoje a cidade de Tomsk, na Sibéria Ocidental. A designação do khanato (cuja origem está possivelmente no tártaro “sib ir”, significando “terra adormecida”) acabou por estender-se a todo o território de 13 milhões de Km2 entre os Monte Urais e o Oceano Pacífico.

“A conquista a Sibéria por Yermak”, por Vasiliy Surikov, 1895

Nos anos seguintes, as forças de Yermak Timofeyevich infligiram várias derrotas a Küçüm, o derradeiro khan de Sibir, que se viu forçado a fugir para a estepe a oriente. A dissolução do Khanato de Sibir, em 1598, abriu à Rússia os imensos territórios a leste, que eram esparsamente habitados (há historiadores que estimam que a população total, na época, seria de 300.000 indivíduos, fragmentados por numerosas tribos) e onde não existiam estruturas políticas organizadas, susceptíveis de fazer frente ao avanço russo. A conquista russa foi também facilitada pelo facto de os povos destas regiões remotas não terem imunidade a doenças trazidas pelos europeus, como a varíola (um pouco como aconteceu no Novo Mundo após a chegada de Colombo). Assim, bastaram à Rússia cerca de 40 anos para estender a sua fronteira até ao Pacífico, que foi atingido em 1639; a partir do início do século XVIII, os soldados começaram a tomar o lugar dos exploradores e a presença russa estendeu-se a toda a Sibéria.

Expansão territorial da Rússia entre 1533 e 1894

Aqui e ali, alguns povos siberianos tentaram opor-se aos russos, ou porque prezavam a sua independência ou porque não suportavam os pesados tributos que lhe eram impostos pela administração imperial, mas as suas revoltas foram esmagadas com brutalidade, as mulheres e crianças foram, muitas vezes, escravizadas e, nalguns casos, os povos foram deportados em massa. E que benefícios procuravam obter os russos desta expansão conduzida de forma implacável? Os terrenos e o clima eram pouco propícios (ou completamente inadequados) à agricultura e as formidáveis reservas de combustíveis fósseis e minérios eram ainda desconhecidas, pelo que a única riqueza que os russos buscavam na Sibéria eram as peles. E com tal avidez caçaram os animais que as produziam que, em certas regiões, estes começaram a escassear e o equilíbrio dos ecossistemas se rompeu, privando assim as tribos autóctones dos seus meios tradicionais de subsistência.

Estima-se que, em resultado de tudo isto, alguns povos siberianos tenham perdido 90% da sua população entre o início do século XVIII e o final do século XIX – e não há palavra mais adequada para descrever este cenário do que genocídio.

Família chukchi, numa gravura de 1816 por Louis Choris. Os chukchi, o povo autóctone da península com o mesmo nome, no extremo oriental da Sibéria, resistiram tenazmente a várias tentativas dos russos para os subjugar na primeira metade do século XVIII, o que levou a que, em 1742, a imperatriz Isabel ordenasse o seu “extermínio total”

Pela mesma altura, na América do Norte, a expansão dos EUA para oeste, embora não tão rápida, processou-se em moldes análogos, ainda que com pontos de partida e resultados diferentes. Apesar de possuir a sua quota de desertos, montanhas escarpadas, glaciares e “badlands”, o Oeste dos EUA possuía vastas áreas de solos férteis e clima temperado, pelo que, originalmente, suportava populações autóctones mais densas do que a Sibéria. Mas, por outro lado, essa abundância de território com solos e climas favoráveis à agricultura suscitou um afluxo de colonos europeus muitas vezes superior aos que se registou na inóspita Sibéria. Isto explica que, no Oeste dos EUA, os nativos americanos que sobreviveram aos massacres e doenças tenham sido escorraçados para terrenos marginais e incapazes de assegurar a sua subsistência, permitindo que o país tenha sido rápida e profundamente “europeizado” e homogeneizado.

A percentagem de nativos na população é hoje de 2% nos EUA e de 0.2% na Rússia, mas enquanto nos EUA o estado com maior percentagem de nativos americanos é, por larga margem, o Alaska, com 15% da população total (e o Alaska é um estado incaracterístico, com um historial de exploração e colonização com semelhanças com o da Sibéria), há duas repúblicas siberianas em que as etnias autóctones são maioritárias: na República de Sakha ou Yakutiya, os yakuts representam 50% da população (contra 38% de russos), em Tuva, os tuvanos são 82% da população (contra 16% de russos).

Yakuts, numa ilustração da obra “Descrição etnográfica dos povos da Rússia” (1862)

Regressando a Krasnoyarsk, esta é hoje uma cidade de pouco mais de um milhão de habitantes, o que faz dela a 3.ª maior da Sibéria (depois de Novosibirsk e Omsk) e a 12.ª da Rússia. A sua população é dominantemente russa e a presença de povos siberianos autóctones residual – a cidade tem grande diversidade de minorias étnicas, mas estas consistem sobretudo em imigrantes recentes (muitos deles ilegais), vindos da China e das ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central em busca de trabalho.

Krasnoyarsk, 1896, por William Henry Jackson

Kolyma

[69º N, 161º E]

A Rússia foi, como se viu acima, lesta a tomar posse da Sibéria, mas levou muito tempo até se inteirar do que continha o seu território. Assim, a bacia hidrográfica do Rio Kolyma, que nasce nas montanhas homónimas (62º 17’ N, 147º 43’ E) e desagua, 2130 Km depois, no Mar da Sibéria Oriental (69º 32’ N, 161º 21’ E), só foi devidamente explorada e cartografada graças a expedições realizadas em 1928 e 1931-32.

Região de Kolyma

As prospecções geológicas permitiram apurar que a região era rica em minérios (sobretudo ouro, mas também prata, estanho, tungsténio, mercúrio e cobre), mas o que fez o nome Kolyma entrar na História foram os seus campos de trabalho forçado, que ganharam fama de ser, com os de Norilsk e Vorkuta, os mais mortíferos de todo o sistema de gulags.

“Gulag” é frequentemente usado como substantivo, mas começou por ser o acrónimo de um ramo da NKVD, a polícia política soviética: a Glavojne Upravlenije Lagerej, ou seja a Direcção-Geral dos Campos. Foi no tempo dos czares que se instituiu a katorga, isto é, o envio de condenados para campos de trabalho em regiões remotas e pouco povoadas da Rússia – e em particular na Sibéria – mas foi sob Stalin que, sob a supervisão da Glavojne Upravlenije Lagerej, a katorga foi convertida num monstruoso sistema concentracionário, pelo qual se estima que tenham passado 18 milhões de pessoas.

O complexo de campos de Kolyma tinha por finalidades principais – além da punição, claro – a mineração de ouro (de que a URSS necessitava desesperadamente para poder adquirir maquinaria e tecnologia ao Ocidente) e a construção de edifícios, estradas e outras infra-estruturas e chegou a compreender cerca de 80 gulags. Foi criado em 1932 por iniciativa de Stalin, que fazia questão de acompanhar de perto o seu funcionamento (chegou a exigir relatórios diários sobre a extracção de ouro). No seu primeiro ano, contou com cerca de 10.000 prisioneiros, número que subiu para 138.000 em 1939 e atingiu um pico de 200.000 em 1952, o ano anterior à morte de Stalin; a partir de 1954, Kolyma passou a funcionar sobretudo com trabalhadores livres e os últimos prisioneiros foram amnistiados em 1956.

Na apreciação dos números acima é preciso considerar que a taxa de rotação de prisioneiros era muito elevada, não por que fossem libertados, mas porque sucumbiam à agrura do clima árctico (a temperatura média no Inverno em Kolyma andava entre –19 e –38 ºC e podia descer até –45º C) e às tenebrosas condições em que eram obrigados a viver e trabalhar (um comandante do campo terá explanado assim a sua abordagem à gestão de recursos humanos: “temos de espremer tudo de um prisioneiro nos primeiros três meses, depois não precisamos dele para nada”), a que é preciso somar as punições brutais e as execuções. As estimativas mais credíveis para a mortalidade acumulada dos campos de Kolyma oscilam entre 250.000 e um milhão.

Ruinas da mina de estanho do Campo de Trabalho Correccional de Butugychag, um dos campos do complexo de Kolyma. Operou entre 1945 e 1955, produzindo estanho, ouro e urânio; a mineração do urânio era realizada manualmente e sem equipamento de protecção contra a radiação

Nova Zembla

[74º N, 56º E]

A extensão da Rússia e o facto de a maior parte dos territórios a norte do Círculo Polar Árctico serem assaz inóspitos, faz esquecer que o território russo inclui várias ilhas árcticas de grande dimensão. A maior delas, Nova Zembla (em russo, Novaya Zemlya = “terra nova”), entre o Mar de Barents (a oeste) e o Mar de Kara (a leste), ocupa 90.000 Km2, o que faria dela a 20.º maior ilha do planeta (à frente da Irlanda), mas um exame atento revela que Nova Zembla é, na verdade, composta por duas ilhas, Severny (“Norte”) e Yuzhny (“Sul”), separadas pelo Estreito de Matochkin, que, nos trechos mais apertados, tem apenas 600 metros de largura.

Como o extremo sul de Yuzhny fica perto do continente eurasiático, os russos estavam conscientes da sua existência desde o século XI, embora o primeiro registo do desembarque de um europeu ocidental – o britânico Hugh Willougby – date apenas de 1553; o holandês Willem Barents (que deu nome ao Mar de Barents) visitou a ilha duas vezes, em 1594 e 1596, e acabou por falecer nestas paragens.

Nova Zembla, numa carta de 1720

A Nova Zembla era habitada por uma rarefeita população de nenets, um sub-grupo dos samoiedos, mas em 1954 a URSS removeu-os para converter a dupla ilha num campo de testes nucleares. A maior detonação nuclear da história, a da bomba de hidrogénio apelidada de Tsar Bomba, foi realizada a 30 de Outubro de 1961, sobre o Cabo Sukhoy Nos (“nariz seco”), na costa sudoeste de Severny – a energia libertada foi de 58 megatoneladas, equivalente a 58 milhões de toneladas de TNT, ou seja, 10 vezes a soma de todos os explosivos convencionais usados na II Guerra Mundial e 1570 vezes a bomba atómica de Hiroshima. É talvez nela que Vladimir Putin quer que pensemos ao ameaçar, no contexto da invasão da Ucrânia, que a Rússia poderá recorrer a armas nucleares (algo que nem durante a Guerra Fria os governantes soviético ou americana ousaram formular de maneira tão explícita) e ordenou que estas fossem colocadas em estado de alerta.

[Imagens da detonação da Tsar Bomba, divulgadas pelas autoridades russas em 2021, 60 anos após o evento]

Terra de Francisco José

[81º N, 55º E]

A Terra de Francisco José é um arquipélago a norte da Nova Zembla, formado por 192 ilhas e com uma área total de 16.100 Km2. O primeiro navio europeu a aportar ao arquipélago, em 1865, terá sido um navio norueguês de caça à foca, o Spidsbergen, do capitão Nils Fredrik Rønnbeck, que baptizou o arquipélago como Nord-Øst Spidsbergen (Spitzberg do Nordeste, por ficar a NE da ilha norueguesa de Spitzberg). Todavia, como os noruegueses não divulgaram a descoberta (para não atrair outros caçadores de focas), esta acabou por ser formalmente atribuída à Expedição Polar Austro-Húngara, que tinha como missão principal a descoberta da Passagem Nordeste (uma ligação marítima entre o Atlântico e o Pacífico) e era comandada por Julius Payer e Karl Weyprecht, que ali desembarcaram em Agosto de 1873. Os austro-húngaros baptizaram as ilhas como Franz-Josef-Land, em honra do seu imperador Francisco José I (reinado: 1848-1916).

A escuna Tegetthoff, o navio principal da Expedição Polar Austro-Húngara de 1872-74, aprisionada no gelo, 1872

No terceiro quartel do século XIX, expedições de diversos países passaram pelo arquipélago – duas delas foram comandadas pelo explorador, cientista e diplomata norueguês Fridtjof Nansen (1861-1930), o que levou a que os noruegueses passassem a designar o arquipélago como Fridtjof Nansen Land. A primeira expedição russa só chegou em 1901, mas os russos foram dos primeiros a reclamar a posse do arquipélago, embora, estranhamente, se tenham limitado a adaptar o nome dado pelos austro-húngaros, como Zemlya Frantsa-Iosifa. A URSS prosseguiu a vocação expansionista do Império Russo e em 1926 anexou formalmente o arquipélago, apesar do protesto da Noruega, cujos navios de caça à foca e à baleia demandavam regularmente aquelas águas.

Na década de 1950, a URSS construiu na Terra de Alexandra (Zemlya Aleksandry), a 4.ª maior ilha do arquipélago (e cujo nome homenageia, segundo umas opiniões, Alexandra, Princesa de Gales, ou, segundo outras, a grã-duquesa Aleksandra Pavlova da Rússia), uma base aérea (a base russa localizada mais a norte), que foi baptizada como Nagurskoye, em homenagem ao piloto russo-polaco Jan Nagórski (1888-1976), pioneiro da exploração aérea do Árctico.

Aeroporto de Nagurskoye, na Terra de Alexandra

É na Terra de Francisco José que se situa o ponto mais a norte da Rússia (e da Europa): é o Cabo Fligely (81º 50’ N, 59º 14’ E), situado na Ilha Rudolfo – os nomes foram atribuídos pela Expedição Polar Austro-Húngara e homenageiam, respectivamente, o marechal e cartógrafo austríaco August von Fligely (1811-1879) e o Arquiduque Rudolfo (1858-1889), príncipe-herdeiro da coroa austro-húngara.

Inexplicavelmente, durante o período soviético, esta toponímia inspirada na realeza austro-húngara foi pouco ou nada alterada.

Ilha de Wrangel

[71º 14 N, 179º 25 O]

A mais oriental das grandes ilhas árcticas russas é a Ilha de Wrangel, situada entre o Mar da Sibéria Oriental e o Mar de Chukchi, a 1400 Km do extremo ocidental do Alaska. Ocupa 7600 Km2 (é um pouco maior que o distrito de Évora) e toda a sua área, bem como as águas que a rodeiam são, desde 1976, uma reserva natural integral, albergando a maior população de morsas-do-pacífico do mundo e uma apreciável população de ursos polares (um contraste positivo com o infortunado destino de Nova Zembla). A ilha terá sido o derradeiro refúgio dos mamutes lanudos (Mammuthus primigenius), uma vez que há vestígios que atestam a sua presença há cerca de 4000 anos, 5000 anos depois da sua extinção no continente eurasiático. Era desabitada quando os primeiros europeus nela desembarcaram, mas há indícios de ocupação humana em tempos pré-históricos.

Quem conheça a história da Revolução de 1917 e dos primórdios da URSS ficará perplexo por a ilha ostentar o nome de um proeminente general dos Russos Brancos, que deu muito que fazer aos bolcheviques durante a Guerra Civil. Como poderia a URSS ter consentido que existisse uma ilha soviética cujo nome homenageava o barão Pyotr Wrangel, um aristocrata de ascendência germano-báltica e um anti-bolchevique dos quatro costados?

O Wrangel errado: Pyotr Wrangel (1878-1928), também conhecido como Peter von Wrangel, foto c.1920

Acontece que o Wrangel imortalizado no nome da gélida ilha é outro russo com raízes na aristocracia germano-báltica: Ferdinand von Wrangel, navegador e explorador, membro fundador da Sociedade Russa de Geografia, governador do Alaska (1830-35) e director da Companhia Russo-Americana, uma empresa estatal russa que tinha por missão colonizar o Alaska.

Ferdinand von Wrangel nunca pôs pé na ilha com o seu nome, mas, em 1823, foi capaz de determinar a sua localização, com base nos testemunhos de habitantes da região, e empreendeu uma expedição para a encontrar, que acabou por fracassar. Quando, em 1867, o capitão Thomas Long, comandando um navio baleeiro americano, confirmou que a ilha estava onde Wrangel previra, baptizou-a com o nome deste. Em 1881, uma expedição americana comandada por Calvin Hooper, aportou à ilha, baptizou-a como New Columbia e reclamou-a em nome dos EUA, mas nem o baptismo nem a tomada de posse produziram efeito e a ilha foi definitivamente proclamada como russa em 1916 – uma tentativa canadiana de 1921 para reivindicar a posse da ilha também não produziu qualquer efeito.

O Wrangel certo: Ferdinand von Wrangel (1797-1860)

O papel desempenhado por Ferdinand von Wrangel no lado americano do Estreito de Bering justifica que na costa sudeste do Alasca exista outra ilha, com 544 Km2, baptizada com o seu nome, mas grafado com duplo “l”: Wrangell.

A outra Ilha de Wrangell, foto de 1893

Kamchatka

[57º N, 160º E]

Península no nordeste da Eurásia, com 270.000 Km2 (três vezes a área de Portugal), 320.000 habitantes e 160 vulcões, dos quais 29 activos. Foi baptizada a partir de “kamchadal”, nome que os russo deram aos habitantes originais da península (que se chamavam a si mesmos itelmen). Os primeiros exploradores russos chegaram à península em meados do século XVII e depararam-se com a oposição dos autóctones, que se esvaiu a partir de meados do século seguinte, uma vez que foram dizimados pela varíola e outras doenças trazidas pelos europeus, o que explica que os povos autóctones representem hoje menos de 5% da população da península.

Gravura incluída em “Relato da Terra de Kamchatka” (1755), de Stepan Krasheninnikov

Petropavlovsk-Kamchatsky

[53º 01 N, 158º 39’ E]

É a capital do Kamchatka Krai (Território do Kamchatka) e os seus 180.000 habitantes representam mais de metade da população desta vasta região administrativa. Embora haja quem defenda que os primórdios da cidade se devem ao navegador russo Ivan Yelagin, a versão oficial da história atribui a sua fundação, em 1740, a Vitus Bering, um navegador dinamarquês que, ao serviço da Coroa russa, explorou detalhadamente as regiões norte e leste da Eurásia, em 1725-31 e 1733-43, e que dá nome ao estreito entre a Sibéria e o Alaska. A “Cidade de Pedro e Paulo” (é esta a tradução literal do seu nome) foi baptizada em homenagem aos dois navios de Bering, “São Pedro” e “São Paulo”. Antes do advento dos meios de comunicação e transporte modernos, a presença do Império Russo em Petropavlovsk foi débil, já que a cidade fica a quase 6800 km de Moscovo, em linha recta.

A cidade é conhecida informalmente por Petropavlovsk, embora, desde 1924, a designação oficial inclua “Kamchatsky” para a distinguir de outras Petropavlovsk existentes na Rússia e Cazaquistão.

Petropavlovsk. A elevação à esquerda é o vulcão Koryaksky

Vladivostok

[43º 08’ N, 131º 54’ E]

É o maior porto do Extremo Oriente Russo e fica situado na costa noroeste do Mar do Japão. Durante séculos, a região fez parte da esfera de influência da China, o que a Rússia reconheceu através do Tratado de Nerchinsk (1689); todavia, o enfraquecimento do Império Chinês, sobretudo após as duas Guerras do Ópio, que se traduziram em vitórias esmagadoras das potências europeias, deu à Rússia ensejo para expandir-se para sul ao longo da costa noroeste do Pacífico e tentar assegurar um porto de águas profundas. Foi assim que, em 1870, foi estabelecido um posto militar na Baía do Corno Dourado (Zolotoy Rog), a que foi dado o nome de Vladivostok, que significa “Senhor do Oriente”.

Os chineses chamavam-lhe então (e continuam a chamar-lhe) Haishenwai (“falésia dos pepinos-do-mar”).

Vladivostok cresceu com grande rapidez, em resultado de se ter tornado na base principal da Frota Russa do Pacífico e na estação terminal do Caminho-de-Ferro Trans-Siberiano (operacional a partir de 1903) e apesar da séria desvantagem que é o seu porto gelar durante o Inverno. Quando a derrota na Guerra Russo-Japonesa de 1904-05 privou a Rússia do Porto Artur, o único porto oriental sob controlo russo que era operacional durante todo o ano, a importância de Vladivostok foi acrescida.

Vladivostok, década de 1910

O protagonismo de Vladivostok reforçou-se com a eclosão da I Guerra Mundial, que limitou fortemente a operação dos portos russos do Mar Báltico (controlado pela Alemanha) e do Mar Negro (controlado pela Turquia). A Revolução de Outubro lançou o caos por toda a Rússia e forças americanas, britânicas e japonesas desembarcaram em Vladivostok para defender os seus interesses na cidade, ao mesmo tempo que a Guerra Civil Russa fazia afluir à cidade os “russos brancos” em fuga dos “vermelhos”, fazendo a população passar de 97.000 habitantes em 1916 para 410.000 em 1922.

Ocupação de Vladivostok pelos japoneses, estampa japonesa de 1919

Os bolcheviques acabaram por prevalecer e as forças estrangeiras e parte dos russos brancos deixaram a cidade. Vladivostok voltou a assumir um papel crucial no início da II Guerra Mundial, como principal ponto de entrada de material americano destinado a ajudar a URSS no combate ao invasor nazi (fluxo que foi quebrado quando Japão e EUA entraram em guerra, a 7 de Dezembro de 1941).

Hoje Vladivostok tem 600.000 habitantes, o que faz dela a 27.ª cidade russa mais populosa.

Ilhas Curilas

[46º 30 N, 151º 30 E]

Este arco de 56 ilhas e ilhotas de origem vulcânica que se estende, ao longo de 1300 Km, de nordeste para sudoeste, do sul da Península do Kamchatka ao extremo nordeste da ilha japonesa de Hokkaido, separando o Mar de Okhotsk, a oeste, do Oceano Pacífico, a leste, é um ponto quente não só da tectónica de placas e do vulcanismo como das relações russo-japonesas.

Os primeiros habitantes das ilhas foram os ainu, um povo vindo da Ásia continental que se espalhou também pelas ilhas de Sakhalin e Hokkaido.

Distribuição dos ainu

O Império Japonês só muito tardiamente expandiu o seu domínio territorial para norte e embora tenha reclamado formalmente as Curilas como suas no século XVII, a sua presença real na região foi quase nula. Os japoneses designaram as ilhas por Chushima Rettō (“arquipélago das mil ilhas”) ou Kuriru Rettō, a partir da palavra usada pelos ainu para se designarem a si mesmos: “kur” (homem). Os primeiros russos a instalar-se na região, no século XVIII, adoptaram o Kuriru japonês como Kuril, inventando para ele uma falsa etimologia de raiz russa, a partir de “kurit” = fumegar, numa alusão aos numerosos vulcões que pontuam o arquipélago.

O primeiro tratado (de Shimoda) entre japoneses e russos para definir a posse das Curilas foi firmado em 1855 e estabeleceu a fronteira entre as duas ilhas meridionais de Iturup e Urup, cabendo ao Japão as ilhas para sul e à Rússia as ilhas para norte (a maior parte). O tratado previa uma administração conjunta da grande ilha de Sakhalin, a oeste, mas, passados 20 anos, um novo tratado (de São Petersburgo) concedeu Sakhalin integralmente à Rússia e, em troca, colocou todas as Curilas sob administração japonesa. A posição japonesa na região saiu reforçada com a retumbante vitória na Guerra Russo-Japonesa de 1904-05, que fez a metade sul de Sakhalin passar para a posse do Japão. A situação manteve-se inalterada até às últimas semanas da II Guerra Mundial, quando a URSS declarou guerra ao (quase derrotado) Japão e reclamou para si a integralidade de Sakhalin e das Curilas.

Acontece que os tratados e acordos entre as potências aliadas que estabeleciam as fronteiras geopolíticas do mundo pós-II Guerra Mundial continham algumas ambiguidades e inconsistências e o Japão tem-se socorrido da indefinição desses documentos no que respeita às Curilas para alegar que as ilhas meridionais de Iturup e Kunashir e as ilhotas de Shikotan e Habomai lhe pertencem – ou seja, pretende repor a fronteira do Tratado de Shimoda (1855). A disputa em torno destas ilhas é a principal razão para que a URSS e o Japão não tenham formalizado um tratado de paz após a II Guerra Mundial, limitando-se a assinar, em 1956, uma Declaração Conjunta que pôs termo ao “estado de guerra” e restabeleceu relações diplomáticas.

No meio desta controvérsia, alguns dos poucos sobreviventes da etnia ainu reclamam para si as Curilas, uma vez que já lá estavam antes da chegada de japoneses e russos, e acusam o Império Russo, a URSS e o Japão de genocídio.

Arquipélago das Curilas, com as fronteiras definidas em 1855, 1875 e 1945

Cabo Dezhnev

[66º 04’ N, 169º 39’ O]

É o extremo oriental da Península de Chukchi e, por maioria de razão, do continente eurasiático. O britânico James Cook, que andou por estas paragens em 1778, em busca da mítica Passagem Noroeste, baptizou-o, pouco imaginativamente, como Cabo Leste, mas em 1898 o cabo foi rebaptizado com o actual nome, em homenagem ao explorador russo Semyon Dezhnev (ou Dezhnyov, variante que também se aplica ao cabo), que foi o primeiro europeu a dobrá-lo, em 1648. A expedição de Dezhnev partiu da foz do Rio Kolyma, no Oceano Árctico, e teve como ponto de chegada a foz do Rio Anadyr, na costa pacífica da Eurásia. Embora Dezhnev tenha também sido o primeiro a cruzar o Estreito de Bering, este é conhecido pelo nome (atribuído por James Cook) do navegador dinamarquês.

Do outro lado do Estreito de Bering, a apenas 82 Km, fica o Cabo Prince of Wales, no Alaska, que é o ponto mais a oeste do continente americano.

Cabo Dezhnev

Ilhas Diomedes

[65º47’ N, 169º 01’ O]

O Cabo Dezhnev é o extremo oriental da Eurásia mas não é o território mais a oriente da Rússia: a meio do Estreito de Bering existem duas minúsculas e inóspitas ilhas, separadas entre si por menos de 4 Km, a Diomedes Maior, a oeste, com 29 Km2 de área e sob jurisdição russa, e a Diomedes Menor, a leste, com 7 Km2 de área, e sob jurisdição americana. A Diomedes russa está desabitada (embora tenha acolhido uma base militar durante a II Guerra Mundial e parte da Guerra Fria), a Diomedes americana tem uma centena de residentes, de etnia inupiat, um sub-grupo dos inuit (em tempos designados no Ocidente por esquimós) que são os habitantes ancestrais desta região.

As Ilhas Diomedes foram avistadas pela primeira vez por Semyon Dezhnev, mas prevaleceu o baptismo realizado por Vitus Bering, que ali chegou, 80 anos depois, no dia 16 de Agosto de 1728, que é consagrado, no calendário da Igreja Ortodoxa Russa, ao mártir São Diomedes de Tarso (?-c.298-311 d.C.). As Diomedes são também conhecidas por Gvozdev, em homenagem a quem primeiro registou as suas coordenadas precisas, o cartógrafo e oficial russo Mikhail Gvozdev, comandante da primeira expedição russa ao Alaska (para detalhes sobre as explorações, colónias e territórios russos na América do Norte, ver capítulo “A loucura de Seaward”, em Esta estrada leva a Clintonville ou a Trump City?).

A Diomedes Menor foi conhecida como Krusenstern, em homenagem ao almirante russo (de ascendência báltico-germânica) Adam Johann von Krusenstern (1770-1846), que comandou a primeira viagem russa de circum-navegação, em 1803-06 (cujo percurso, todavia, não contemplou a região do Estreito de Bering). A Diomedes Maior é, por vezes, designada como Ratmanov, em homenagem a Makar Ratmanov (1772-1823), adjunto de Krusenstern na dita expedição. Os inupiat designam a ilha maior por Imaqliq, Inaliq ou Nunarbuk e a menor por Ignaluk.

A aquisição do Alaska à Rússia pelos EUA, em 1867, estabeleceu a fronteira entre os dois países a meio caminho entre as duas Diomedes.

Diomedes Maior, vista a partir de Diomedes Menor

É também a meio caminho entre as Diomedes que corre a Linha Internacional de Mudança de Data, o que justifica que as ilhas maior e menor sejam conhecidas, respectivamente, por Ilha de Amanhã e Ilha de Ontem. Na verdade, os ajustamentos dos fusos horários locais fazem com que a diferença entre as duas ilhas não seja de 24 horas, mas de 20/21 horas, consoante a altura do ano.

O gelo que se forma no mar durante o Inverno permitiria caminhar de uma das Diomedes para a outra, mas é proibido atravessar o que, durante a Guerra Fria, ficou conhecido como a Cortina de Gelo, isto é, a fronteira russo-americana. A 7 de Agosto de 1987, a nadadora americana Lynne Cox cumpriu, em duas horas, a travessia entre as duas ilhas, um feito simbólico saudado, quatro meses depois, por Mikhail Gorbachov e Ronald Reagan, quando da assinatura de um tratado de limitação de armas nucleares entre a URSS e os EUA. Bem longe vai este clima de desanuviamento entre super-potências e seria impensável, hoje, que Vladimir Putin e Joe Biden se unissem no louvor a um gesto de aproximação entre os povos russo e americano. Seria mais fácil que Putin, que gosta de encenações em que se apresenta aos russos e ao mundo como intrépido desportista e homem de acção, se fizesse fotografar a atravessar o Estreito de Bering a nado.

Astrakhan

[46º 21’ N, 48º 03’ E]

A associação, quase automática, entre Rússia e paisagens geladas tem fundamento, mas deixa de fora partes relevantes da geografia russa, já que o país desde cedo se expandiu para climas mais soalheiros. Ivan IV, o Terrível, o primeiro a intitular-se “czar”, em 1547, alargou grandemente o território russo para leste, mediante a conquista dos khanatos de Kazan e de Sibir, e para sudeste, com a anexação do khanato de Astrakhan.

Este khanato tártaro na costa noroeste do Mar Cáspio tinha por capital Xacitarxan, na foz do Rio Volga, e confinava a oeste com o khanato da Crimeia e a leste com a Horda Nogay, tudo entidades políticas resultantes da fragmentação da Horda Dourada. O nome Xacitarxan, ou Haji Tarkhan, tem origem turco-mongol e provirá, possivelmente, de “tarkhan” = grande senhor ou rei + “hajji” = título atribuído a quem tivesse cumprido a peregrinação a Meca – segundo uma lenda, a cidade teria sido fundada por um habitante local que fez a dita peregrinação e se tornou num homem santo. Com o passar do tempo, o nome evoluiu para Hashtarkan e, finalmente, para Astrakhan.

Xacitarxan foi arrasada por Tamerlão (Timur Lenk) em 1395, reconstruída e convertida na capital do khanato homónimo em 1459 e novamente arrasada por Ivan IV em 1556. O Império Otomano não viu de bom grado a expansão para sul da Rússia e, entre 1568 e 1570, envolveu-se em guerra com esta em torno do khanato de Xacitarxan/Astrakhan. Os russos prevaleceram, mas os otomanos conseguiram obter garantias de segurança para os peregrinos de Meca e comerciantes, uma concessão crucial, já que Astrakhan ficava num ponto nevrálgico das rotas entre o Próximo Oriente, a Europa e a Ásia Central.

Astrakhan no século XVII

Essa localização privilegiada explica que a cidade tenha prosperado e que, por equívoco, as línguas da Europa ocidental tenham designado por “astracã” a muito macia e apreciada pele dos cordeiros recém-nascidos da raça karakul, que provinha do Uzbequistão (bem mais a oriente), mas que os mercadores ocidentais adquiriam em Astrakhan (mais tarde, o termo “astracã” passou a designar o tecido de lã que imita a textura dessa pele).

Astrakhan assumiu também grande importância do ponto de vista estratégico, servindo de ponto de apoio no impulso da Rússia para leste e para o Cáucaso, a sul. Este último levou a que a Rússia travasse cinco guerras com a Império Safávida (Pérsia), entre 1651 e 1828 (com conflitos de ambos os oponentes com o Império Otomano pelo meio), que, no cômputo global, resultaram na perda de domínio dos persas sobre o Cáucaso.

Batalha de Ganja, quadro de 1877 por Franz Roubaud, (1856-1928), um pintor russo de ascendência francesa cujo tema recorrente é a região do Cáucaso e os seus povos. Este embate entre russos e persas, que teve lugar, em 1826, em Elisavetpol (hoje Ganja, no Azerbaijão) saldou-se numa vitória dos primeiros

Após quase cinco séculos de russificação, Astrakhan perdeu boa parte do cunho multicultural que a caracterizava e, entre os seus 530.000 habitantes, os russos ascendem a quase 80%, ficando-se os tártaros, outrora dominantes, por 7%.

Tchetchénia

[43º 24 N, 45º 43’ E]

A topografia assaz acidentada e a posição na encruzilhada entre grandes unidades geográficas e políticas fizeram do Cáucaso um puzzle de povos, línguas e religiões, tão intricado e instável que, por comparação, os Balcãs parecem um pacato e ordeiro jardim à francesa.

Mapa étnico-linguístico do Cáucaso

Quando, no início do século XIX, os persas foram expulsos do Cáucaso, os governantes russos decidiram juntar este punhado de pequenos tribos desunidas aos seus domínios, pensando que seriam presa fácil – afinal não tinha a Rússia saído vencedora de cinco extenuantes guerras contra o Império Safávida e não tinha acabado de derrotar a Grande Armée de Napoleão, o mais poderoso exército do mundo? Enganaram-se redondamente: não só a Guerra do Cáucaso se arrastou entre 1817 e 1864, cobrindo os reinados de três czares – Alexandre I, Nicolau I e Alexandre II – como os povos da região continuaram, depois de conquistados, a sublevar-se contra o poder russo (e a guerrear-se entre si) sempre que surgia uma oportunidade. Na verdade, em 2022 ainda há feridas abertas e tensões sérias por resolver na região.

“Uma cena da Guerra do Cáucaso”, por Franz Roubaud (1856-1928)

O primeiro embate entre russos e tchetchenos (“chechen”, em russo) teve lugar em 1732, nas margens do Rio Argun, junto a uma povoação chamada Chechen-aul, (“aul” = aldeia), o que levou a que mais tarde surgisse uma etimologia apócrifa que fazia remontar a designação do povo tchetcheno a esta povoação.

Na verdade, não só existiam na região várias povoações com “chechen” no nome, como o termo “chechen” (ou similar) surge em fontes russas desde o século XV; por outro lado, os tchetchenos designavam-se a si mesmos por outro nome, “nakhchiy” ou “nokhchiy” (também grafado “noxci”), possivelmente a partir de “nakh” = gente + “chuo” = terra (é um padrão recorrente pelo mundo fora: cada povo se vê a si mesmo como a “gente da terra”).

Povos do Cáucaso do Norte: da esquerda para a direita, casais de ossetas, circassianos e cabardianos e um tchetcheno solitário

Apesar dos massacres, das deportações em massa e da russificação infligidas pelos czares aos povos do Cáucaso, estes mantiveram viva a pulsão independentista. Em 1917, a Tchetchénia (Chechnya, em russo), a Inguchétia (Ingushetiya), o Daguestão (Dagestan) e a Ossétia (Osetiya) aproveitaram a desordem decorrente da Revolução de Outubro para proclamarem a República das Montanhas do Norte do Cáucaso (também conhecida como União dos Montanheses do Norte do Cáucaso), e só com combates ferozes as tropas soviéticas conseguiram, em 1921, reconduzir os separatistas ao seio da URSS, amalgamando tchetchenos e inguches na República Autónoma Socialista Soviética Tchetcheno-Inguche. Quando, em 1942, os exércitos nazis entraram pelo Cáucaso, o eternamente desconfiado Stalin entendeu que os povos do Cáucaso tinham colaborado com o invasor e, quando, em 1943-44, as tropas soviéticas expulsaram os alemães, puniu os supostos “traidores” tchetchenos e inguches, deportando-os em massa para regiões inóspitas da Ásia Central, onde ¼ deles sucumbiram à fome e outras privações. Só a partir de 1956, após a morte de Stalin, o Estado russo autorizou os sobreviventes a regressar à sua pátria – mas nem por isso deixou de tentar “russificar” tchetchenos e inguches, esperando transformá-los em cidadãos soviéticos.

Casal inguche deportado para o Cazaquistão lamenta a morte de uma filha

Porém, assim que a URSS começou a abrir fracturas, os ardores independentistas tchetchenos reacenderam-se e quando, em 1992, o presidente Boris Yeltsin propôs um tratado de federação entre as 88 entidades que, até então, tinham constituído a URSS, só a Tchetchénia não assinou (o Tartaristão começou também por recusar, mas cedeu dois anos depois). Na verdade, a Tchetchénia já estava em plena sublevação desde 1991, sob a liderança de Dzhokhar Dudayev, que venceu, com esmagadora maioria, as eleições convocadas no final desse ano e cujo resultado Yeltsin não reconheceu. As tensões foram crescendo e em 1994 estalou a primeira guerra aberta entre a Rússia e a auto-proclamada República Tchetchena de Ichkeria (assim baptizada a partir do Rio Iskark, no sudeste da Tchetchénia), que durou até 1996 e se saldou, inesperadamente, num impasse, com as forças russas a não serem capazes de subjugar um território com menos de 1/5 da área de Portugal e 1.3 milhões de habitantes. Por esta altura, o conflito complexificara-se, pois o independentismo tchetcheno abrira fracturas, gerando quezílias internas, mesclara-se com o fundamentalismo islâmico e passara a recorrer ao terrorismo.

Soldado russo junto a uma vala comum com civis tchetchenos, 1995

Durante três anos, vigorou uma paz podre entre a República Tchetchena de Ichkeria e a Rússia – a primeira fazia, formalmente, parte da segunda mas, na prática, comportava-se como um estado independente – que foi perturbada, em Agosto de 1999, pela tentativa de uma brigada islamista internacional liderada por tchetchenos para levar o vizinho Daguestão a sublevar-se e proclamar independência da Rússia. No início de Setembro, as tropas russas tinham conseguido reassumir o controlo do Daguestão, mas, poucos dias depois, vários atentados bombistas em blocos de apartamentos em cidades russas vitimaram cerca de 300 pessoas. Os atentados não foram reivindicados, mas Vladimir Putin, primeiro-ministro de Boris Yeltsin (por esta altura já muito diminuído, física e mentalmente, pelo alcoolismo), invocando as conclusões das (atabalhoadas) investigações oficiais, não hesitou em atribuir a culpa aos tchetchenos e, em Outubro, retaliou, dando início à Segunda Guerra Russo-Tchetchena. Esta foi conduzida pelo lado russo de forma mais planeada e implacável do que a Primeira Guerra e saldou-se, poucos meses depois, no esmagamento do governo tchetcheno. Este foi substituído por um governo pró-Kremlin, liderado por Akhmad Kadyrov, que, curiosamente, lutara contra os russos na guerra anterior.

A vitória contra os rebeldes tchetchenos, que continuaram, todavia, a executar atentados sangrentos na Rússia, conferiu a Putin uma aura de “homem forte”, que ajudou a legitimar a “oleosa” transição de poder entretanto acordada com o declinante Yeltsin: este demitiu-se a 31 de Dezembro de 1999, Putin tornou-se presidente interino, assinou de imediato um decreto que garantia a Yeltsin e à sua família imunidade vitalícia contra investigações por corrupção e convocou eleições para Março de 2000, que venceu com facilidade.

Kremlin, 7 de Maio de 2000: Putin toma posse como presidente da Rússia, na presença do seu antecessor

Posteriormente, vieram à superfície novos elementos sobre as investigações aos atentados bombistas que tinham estado na origem da Segunda Guerra Russo-Tchetchena, que sugerem que as investigações oficiais foram entravadas ou arquivadas mediante expedientes burocráticos ou manipuladas para apontar os independentistas tchetchenos como culpados, e que quem tentou efectuar investigações independentes foi intimidado, preso ou assassinado. Um ex-agente do FSB (a entidade herdeira do KGB) fugiu para a Grã-Bretanha e defendeu a tese de que os atentados de Setembro de 1999 tinham sido um “inside job” executado pelo FSB para dar a Putin pretexto para invadir a Tchetchénia e afirmar-se aos olhos dos eleitores russos como líder decidido e garantia da paz e segurança. O agente chamava-se Aleksandr Litvinenko e morreu em 2006 após ter sido envenenado com polónio, em circunstâncias pouco claras, mas que investigações britânicas associam ao FSB.

O presidente tchetcheno pró-Kremlin Akhmad Kadyrov foi assassinado por islamistas tchetchenos em 2004 e o seu filho, Ramzan, que ganhara fama como líder da milícia Kadyrovtsy, com apreciável curriculum de torturas, raptos, assassinatos políticos e crueldades várias, foi, em 2007, nomeado directamente por Putin como presidente do país.

A Tchetchénia, com os seus 17.300 Km2, representa apenas um milésimo da área total da Rússia, mas a sua história é mais relevante para a compreensão do momento presente do que a da Yakutiya com os seus 3 milhões de Km2. E se mais alguma prova fosse necessária, está o facto de tropas tchetchenas estarem a participar na invasão russa da Ucrânia e de a milícia Kadyrovtsy ter anunciado, com estardalhaço, a sua presença na Ucrânia, com a missão de exterminar os “nazistas”.

Imam Shamil, líder militar e espiritual da resistência dos tchetchenos e inguches ao Império Russo, rende-se, a 25 de Agosto de 1859, ao general russo Aleksandr Baryatinsky, quadro de 1880 por Aleksey Kivshenko. Em 1859, na Rússia, alguns espíritos optimistas terão pensado que, com esta rendição, o Cáucaso viveria para sempre na Pax Russica

Grozny

[43º 18’ N, 45º 41’ E]

Grozny, a capital da Tchetchénia, remonta a uma fortaleza russa estabelecida em 1818, durante a Guerra do Cáucaso, junto ao Rio Shunzha (Sölza para os tchetchenos), pelo general Aleksey Yermolov, e baptizada como Groznaya, forma feminina de “grozny”, que significa “terrível” (com em Ivan Grozny = Ivan o Terrível), ao que reza a lenda em referência a um morticínio de guerreiros tchetchenos que tinham tentado impedir a sua construção. Em 1870, após a pacificação (relativa) da região, Groznaya ganhou o estatuto de cidade e viu o seu nome alterado para Grozny – pelo menos em russo, uma vez que os tchetchenos lhe chamavam Sölz-Gala, que significa “cidade no [Rio] Sölza”. Em 1997, o Governo da República Tchetchena de Ichkeria rebaptizou Grozny como Dzokhar-Gala (“cidade de Dzhokhar”) em homenagem ao primeiro presidente do país, Dzokhar Dudayev, que fora assassinado em Abril de 1996 por um míssil russo.

Dzhokhar Dudayev (1944-1996), foto de 1991

Se a Primeira Guerra Russo-Tchetchena já deixara Grozny num estado lamentável, na Segunda Guerra as tropas russas entregaram-se a uma destruição metódica e implacável, a coberto da sua enorme superioridade material e tecnológica, não deixando um edifício intacto. A destruição da cidade inglesa de Coventry, por raids sucessivos da Luftwaffe, em Novembro de 1940, causara tal impacto na opinião pública que a língua inglesa ganhou o verbo “to coventrate” (que pode traduzir-se por “coventrificar”) para denotar a obliteração total de uma cidade por meio de bombardeamentos. 60 anos depois, tendo este termo caído em desuso, um lexicógrafo aplicado poderia ter tido a iniciativa de actualizar o conceito e propor a introdução do verbo “groznyficar”.

Vladimir Putin, o homem por trás da redução de Grozny a escombros, este também associado ao uso de recursos bélicos desproporcionados contra zonas residenciais e outros alvos não-militares em Aleppo, em 2012-2016, durante a Guerra Civil Síria, e parece estar disposto a aplicar a mesma receita na Ucrânia, como sugerem os bombardeamentos em Kharkiv, Mariupol e outras cidades.

Inguchétia

[43º 12’ N, 44º 58’ E]

Como seria de esperar, os inguches não se designam a si mesmos com este nome, antes como “ghalgai”, de “ghal” = povoado ou fortaleza + “”ghai” = gente. O nome do território provém do povoado de Angusht ou Ingusht, que, ironicamente, não faz parte do actual território da Inguchétia, pois quando, em 1944, Stalin decidiu punir os inguches por alegada colaboração com os nazis, não só deportou o povo, como incorporou Angusht na Ossétia do Norte, rebaptizando-a como Tsarskoye.

A história da Inguchétia (Ingushetiya) que é comum à Tchetchénia ficou contada acima; há que acrescentar que, em 1991, quando a segunda declarou independência, a primeira escolheu separar-se (recorde-se que, em 1921, tinham sido fundidas numa só República Socialista Soviética) e aderir à Federação Russa. O que não significa que a Inguchétia (a mais pequena república russa, com 3628 Km2, o dobro do concelho de Odemira) tenha vivido em paz e prosperidade desde então, uma vez que a violência e caos nas vizinhas Tchetchénia e Ossétia tenderam a alastrar ao seu território.

Tal como na Tchetchénia, cerca de 95% da população professa a fé islâmica.

Alameda Akhmad Kadyrov, assim baptizada em homenagem ao presidente tchetcheno assassinado por rebeldes tchetchenos em 2004, em Magas, capital da Inguchétia

Daguestão

[43º 06’ N, 46º 53’ E]

Se o Cáucaso é uma manta de retalhos étnica e linguística, o Daguestão (Dagestan), na costa ocidental do Mar Cáspio, é uma espécie de micro-cosmos do Cáucaso, albergando 30 grupos étnicos (12 dos quais com representação superior a 1% da população) e 14 línguas oficiais (aghul, avar, azeri, dargin, kumyk, lak, lezgui, nogai, russo, rutul, tabasaran, tat, tchetcheno e tsakhul), num território com 50.300 Km2, ou seja, pouco mais de metade da área de Portugal (no que toca à religião, o Daguestão é menos heterogéneo, com 83 % da população a professar a fé muçulmana).

Reza a lenda que o general Charles de Gaulle terá exprimido a dificuldade em conciliar os interesse dos cidadãos franceses, com a pergunta retórica “Como é possível governar um país onde existem 258 tipos de queijo?”. Um passeio ao Daguestão far-lhe-ia, provavelmente, encarar a governação da França com disposição mais optimista…

Mapa linguístico do Daguestão

Daguestão significa “Terra das Montanhas” (“dag” = montanha, em turco, + “stan”, terra, em persa), uma designação vaga, uma vez que poderia aplicar-se a muitos dos territórios vizinhos. O território foi conquistado pelo Império Russo em 1813 e é actualmente uma república da Rússia, mantendo as fronteiras da República Autónoma Socialista Soviética do Daguestão, definidas em 1921, após um breve período de periclitante independência iniciado em 1917 (como parte da República das Montanhas do Norte do Cáucaso). Embora a invasão de 1999, por uma força islamista internacional em apoio aos independentistas locais, tenha sido favoravelmente acolhida, as forças leais a Moscovo e as tropas russas restabeleceram a ordem.

O Daguestão tem a particularidade de albergar a cidade mais meridional de toda a Rússia, Derbent, situada à latitude de 42º 03’ N, aproximadamente a mesma de Monção, no Minho. O ponto mais meridional da Rússia fica alguns quilómetros a sul, perto do Monte Bazardüzü, cujo nome, de origem azeri, significa “praça do mercado”, por haver, na sua proximidade, um local onde se realizavam feiras regularmente.

Porta da cidadela de Derbent, construção sassânida do século VI

O nome de Derbent provém do persa “darband”, de “dar” = porta + “band” = barreira, aludindo ao facto de a cidade se situar num estreito corredor entre as montanhas do Cáucaso e o Mar Cáspio. Derbent que é, com 120.000 habitantes, a 3.ª cidade mais populosa do Daguestão, reclama também ser a cidade mais antiga de toda a Rússia e uma das mais antigas do mundo com ocupação humana ininterrupta, havendo documentos que fazem remontar a sua existência ao século VIII a.C. É um facto que deveria dar que pensar aos governantes e ideólogos que, a fim de legitimar as suas ambições imperiais e a subjugação ou anexação de outros territórios, invocam a antiguidade do seu estado e proclamam a nulidade de outros estados.

Derbent, numa gravura de 1690, época em que estava sob domínio persa

Ossétia do Norte

[43º 11’ N, 44º 14’ E]

Os ossetas são de origem iraniana, e iraniana é também a origem da sua língua e o nome por que são conhecidos, que provirá da palavra persa para “rápido” (ainda que ninguém tenha apresentado explicação plausível para tal).

Foram conquistados pelo Império Russo no início do século XIX e aproveitaram a Revolução de Outubro para, juntamente com povos vizinhos, como tchetchenos, inguches, daguestaneses, circassianos e abkhazes, proclamar independência, como República das Montanhas do Norte do Cáucaso. Esta extinguiu-se em 1921, quando foi subjugada pelo Exército Vermelho, e a URSS, com o talento, que Jerónimo de Sousa recentemente elogiou, para encontrar “notáveis soluções […] para a questão das nacionalidades e o respeito pelos povos e suas culturas”, tratou, arbitrariamente, de separar os ossetas entre a Ossétia do Norte, que em 1924 foi constituída como um Oblast autónomo, convertido, em 1936, na República Autónoma Socialista Soviética, e a Ossétia do Sul, a que foi atribuído o estatuto de Oblast autónomo dentro da República Socialista Soviética da Geórgia – estavam criadas as condições para um “berbicacho” que, um século depois, continua sem solução à vista.

Ossétia do Norte, c.1890-1900. O Monte Kazbek, uma das mais altas montanhas do Cáucaso, situado na fronteira entre a Ossétia do Norte e a Geórgia, visto da Estrada Militar da Geórgia

A dissolução da URSS, em 1991, levou a que a Ossétia do Norte fosse agregada à Rússia, enquanto a Ossétia do Sul se manteve como parte integrante da Geórgia, que se tornou numa república independente. O relaxamento da opressão de Moscovo permitiu o reacendimento de antigas tensões étnicas: no distrito de Prigorodny, que faz parte da Ossétia do Norte mas cuja população é maioritariamente inguche, ossetas (de fé ortodoxa) e inguches (de fé muçulmana) massacraram-se entre si a partir de 1989, ao mesmo tempo que a Ossétia do Norte era inundada por refugiados vindos da Ossétia do Sul, onde os georgianos começavam a expulsar os ossetas de um território que consideravam ser historicamente seu.

A guerra entre ossetas e inguches em Prigorodny terminou em 1992 mas as tensões entre os dois povos mantiveram-se: em 1995, a Inguchétia fundou uma nova cidade (que, depois, se tornaria na sua capital), a que deu o nome de Magas, evocando a capital do reino medieval de Alania, criado no século VII por alanos que tinham migrado para o Cáucaso. Acontece que os ossetas disputam com os inguches o estatuto de legítimos herdeiros de Alania, pelo que a Ossétia do Norte respondeu à “provocação” inguche alterando formalmente a sua designação para República da Ossétia do Norte-Alania. Ninguém sabe exactamente em que consistiu a antiga Alania nem que conquistas civilizacionais produziu, mas tal não obsta a que povos que se imaginam seus descendentes se trucidem mutuamente em nome dela.

Mapa político do Cáucaso, c.1060

A República da Ossétia do Norte-Alania ocupa 8000 Km2 (é pouco maior do que o distrito de Évora) e tem 700.000 habitantes, cerca de metade dos quais se concentram na capital, Vladikavkaz. Esta remonta a uma fortaleza russa construída, em 1784, num lugar chamado Zalukh ou Zaur (segundo os inguches), pelo conde Pavel Potemkin (primo do mais famosos Grigory Potemkin) e que foi planeada como ponto de partida para a Estrada Militar da Geórgia, eixo vital do plano russo para a conquista do Cáucaso e que começou a ser construída em 1799 – daí que Potemkin tenha baptizado a fortaleza como Vladet Kavkazom, com o sentido de “Senhor do Cáucaso”. Com o advento da URSS, Vladikavkaz foi, em 1931, rebaptizada como Ordzhonikidze, em homenagem a Sergo Ordzhonikidze, um bolchevique georgiano que, no pós-Revolução de Outubro, comandara as operações militares que tinham submetido os povos do Cáucaso, impedindo que esta região escapasse à órbita da URSS. Em 1944, a cidade adoptou o nome de Dzaudzhikau, regressou a Ordzhonikidze em 1954 e a Vladikavkaz em 1990 (ainda que os ossetas continuem a empregar também Dzaudzhikau).

Ossétia do Sul

[42º 13’ N, 43º 58’ E]

Entre os povos subjugados pelo antigo Império Russo em que a instabilidade gerada pela Revolução de Outubro acendeu a esperança de emancipação, contavam-se os georgianos, que em 1918 proclamaram a República Democrática da Geórgia. Porém, a jovem república viu-se, desde o nascimento, minada por uma dissensão interna: a revolta da minoria osseta, que começou por ter motivações de ordem económica e fundiária e depois ganhou contornos étnicos. O governo bolchevique, a braços com uma guerra civil e a iminente desagregação do seu território, apoiou os rebeldes ossetas na Geórgia, vendo nestes uma forma de enfraquecer os separatistas georgianos, a fim de mais facilmente os reintegrar na URSS. Numa primeira fase, os georgianos derrotaram os rebeldes ossetas, mas em 1921 o Exército Vermelho pôs termo à independência da Geórgia e Stalin decidiu compensar os ossetas do sul, que tinham lutado em prol dos bolcheviques, criando no interior da República Socialista Soviética da Geórgia o Oblast Autónomo da Ossétia do Sul, que incluía territórios onde a percentagem de ossetas na população era inferior à de georgianos, como era o caso da capital do Oblast, Tskhinvali – o que foi visto pelos georgianos como uma afronta inaceitável.

A efémera República Democrática da Geórgia (1981-21) era maior do que a Geórgia que se tornou independente em 1991, incluindo então a região de Sochi (hoje russa) e territórios que hoje fazem parte da Turquia, Arménia e Azerbaijão

Em 1990, estas feridas antigas reabriram: a República Socialista Soviética da Geórgia, que sempre vira o Oblast Autónomo da Ossétia do Sul como uma criação artificial imposta pela URSS e destituída de legitimidade histórica, tentou expulsar os cerca de 100.000 ossetas que viviam no Oblast e, mais uma vez, os ossetas do sul entenderam que a melhor forma de salvaguardar a sua autonomia seria reclamarem-se parte da URSS, ou, melhor, da sua sucessora, a Rússia. Em 1992, foi assinado entre a Ossétia do Sul e a Geórgia um cessar-fogo, insatisfatório para ambas as partes, que permitiu manter uma paz podre até 2008, quando os atritos entre ossetas do sul e georgianos recrudesceram. O Kremlin interpretou a actuação do presidente georgiano Mikheil Saakashvili contra os rebeldes ossetas como uma agressão contra a Ossétia do Sul e lançou um ataque esmagador contra a Geórgia, dando ensejo aos ossetas do sul para iniciar a limpeza étnica dos georgianos no seu território e à Abkhazia – outra região da Geórgia, que, desde 1994, gozava de um estatuto de semi-autonomia – para se emancipar de vez da Geórgia. Em resultado da Guerra Russo-Georgiana de 2008 a Geórgia perdeu a Ossétia do Sul, que ficou num limbo geopolítico, que se mantém até hoje.

Efeitos de um raid aéreo russo em Gori, na Geórgia, 2008

Este “país” de apenas 3900 Km2 tem por capital Tskhinvali, cuja origem remonta ao século VI e cujo nome provém do georgiano “krtskhinvali”, que significa “terra dos carpinos” (sendo os carpinos uma árvore do género Carpinus); entre 1929 e 1961 a cidade chamou-se Staliniri.

Abkhazia

[43º 00 N, 40º 59’ E]

Quem se interessa pela mitologia clássica terá presente que, a fim de poder reclamar o trono da Tessália, Jasão navegou até o reino da Cólquida com o propósito de furtar o Tosão de Ouro ao rei Aeetes (ou Eeta). Jasão, os argonautas e o rei Aeetes têm a consistência das fábulas, mas a Cólquida teve existência real: era um reino na costa sudeste do Mar Negro, que remontaria ao século XIII a.C. e era habitado por uma salgalhada de povos (incluindo colonos gregos, que ali se instalaram no século VI a.C.), ainda que os georgianos vejam nele um precursor da nação georgiana (juntamente com o reino de Iberia, que não tem, claro, nada a ver com a Península Ibérica).

Mapa político do Cáucaso ocidental, c.600-150 a.C.

A origem do topónimo Cólquida (ou melhor, Kolkhis) é obscura, dada a amálgama de povos que a formavam e a natureza vaga e fluida das suas fronteiras, e não menos obscura e enovelada é a origem de Abkhazia ou Abasgia, nome que surgiu pela primeira vez em documentos medievais georgianos e arménios para designar o reino que, por essa altura, se constituiu num território parcialmente coincidente com a antiga Cólquida.

Este reino tornou-se independente por volta de 780 (antes tinha estado sob domínio do Império Romano e, depois, do Império Bizantino) e em 1008 fundiu-se com o reino de Iberia para formar o reino da Geórgia. Este conseguiu resistir ao expansionismo árabe, mas não ao mongol, que o conquistou e retalhou em pequenos principados.

Mapa político do Cáucaso ocidental, c.1490, após a fragmentação do Reino da Geórgia

A partir do século XVI, a Abkhazia caiu na esfera de influência otomana e assim se manteve até ao início do século XIX, quando o território começou a ser assediado pelo Império Russo – e a rivalidade entre os colossos russo e turco foi explorada pelos governantes da minúscula Abkhazia para ir mantendo um estatuto de semi-autonomia. O revés sofrido na Guerra da Crimeia (1853-56) forçou os russos a retirar-se da Abkhazia, mas em 1864 regressaram em força e apoderaram-se definitivamente do território.

A Revolução de Outubro deu origem a um período politicamente conturbado – e a uma relativa autonomia da Abkhazia dentro da República Democrática da Geórgia – até que em 1921 o Exército Vermelho acabou com as veleidades independentistas quer de abkhazes quer de georgianos. A Abkhazia começou por ter o estatuto de República Socialista Soviética, mas em 1931 Stalin (um georgiano, é bom lembrar) converteu-a numa República Autónoma integrada na República Socialista Soviética da Geórgia e interditou o ensino de abkhaze, em favor do georgiano. Os abkhazes nunca se conformaram com esta humilhação e quando, quase 60 anos depois, a URSS começou a estremecer, viram uma oportunidade para se separarem da Geórgia. O conflito entre abkhazes e georgianos começou em 1989, a Abkhazia proclamou a independência em 1992 (o que foi acompanhado de limpeza étnica de georgianos) e a guerra (com atrocidades de ambos os lados) prolongou-se até 1993, quando foi assinado, com mediação russa, um cessar-fogo, deixando a Abkhazia numa situação indefinida. Nos anos seguintes as tensões entre a Abkhazia e a Geórgia foram produzindo explosões pontuais de violência, até que, em 2008, a ofensiva russa contra a Geórgia, suscitada pela questão da Ossétia do Sul, alastrou à Abkhazia e permitiu a esta emancipar-se da Geórgia, ainda que com um estatuto indefinido, que se mantém até aos nossos dias.

A Abkhazia é hoje um “país” de 8.600 Km2, com capital em Sukhumi, cidade com origem na colónia grega do século VI a.C. chamada Dioscurias e que, sob domínio romano foi rebaptizada com o nome (grego) de Sebastopolis (que não deve ser confundida com a moderna Sebastopol da Crimeia, fundada em 1783). Quando, na Idade Média, os georgianos alcançaram a independência, rebaptizaram-na como Tskhumi, talvez a partir de “tskhum”, que na língua svan, falada na Geórgia ocidental, significa “carpino”, ou seja, a mesma árvore na origem do nome de Tskhinvali. Quando os otomanos a conquistaram passaram a chamar-lhe Sohumkale (“fortaleza de Sohum”), embora não se saiba se “Sohum” foi uma adaptação do topónimo georgiano Tskhumi, ou se provém do turco “su” = água + “kum” = areia. Os conquistadores seguintes, os russos, chamaram-lhe Sukhum, modificado em 1939 para Sukhumi. Estas duas formas coexistem hoje, juntamente com Aqwa, usada apenas pelos abkhazes e que derivará do abkhaze “a-qwara” = costa pedregosa.

Sohumkale/Sukhum/Sukhumi em meados do século XIX, por Pyotr Vereshchagin (c.1834-1886)

Donetsk, Luhansk e o que vem a seguir?

A Abkhazia e a Ossétia do Sul partilham hoje um estatuto ambíguo: continuam a ser reconhecidas de jure como parte da Geórgia, mas esta não tem de facto qualquer autoridade sobre elas. No plano internacional, a independência destes territórios é reconhecida apenas pela Rússia e mais cinco ou seis países, onde se contam a Síria, Venezuela e Nicarágua. Ambas constituíram selecções nacionais de futebol, que não são reconhecidas pela FIFA nem pela UEFA. Ambas dependem da Rússia em quase todos os domínios e têm contingentes militares russos estacionados no seu território. Em 2014, um tratado colocou as forças armadas abkhazes sob comando russo e em 2015 foi firmado um tratado entre a Rússia e a Ossétia do Sul que, além de também integrar as forças armadas da segunda na primeira, prepara o terreno para que a Ossétia do Sul seja incorporada na Rússia e unida à Ossétia do Norte numa entidade que se denominará Ossétia-Alania, passo que se prevê ser sujeito a um referendo, ainda por realizar. Algo de similar se passou com a minúscula Transnístria, que, com o apoio da Rússia, se separou da Moldávia, através de uma guerra civil que durou entre 1990 e 1992 e que resultou na criação de um estado que não é reconhecido pela comunidade internacional.

A Abkhazia e a Ossétia do Sul são minúsculas – a primeira tem uma área inferior à do Distrito de Beja, a segunda equivale ao distrito de Coimbra – e, aparentemente, sem recursos naturais invulgarmente valiosos e não desempenham papel de relevo no “concerto das nações”; pode, pois, perguntar-se por que são aqui abordadas, uma vez que não fazem, formalmente, parte da Rússia.

Porém, a sua história recente ilumina o que está a passar-se na Ucrânia, onde a Rússia também usou o pretexto de fracturas étnicas para incentivar a criação de “repúblicas independentes” que, na realidade, são completamente dependentes do Kremlin. No caso de Donetsk e Luhansk, o apoio russo aos independentistas é justificado com o imperativo de proteger os cidadãos de etnia russa que, supostamente, estão a ser alvo de limpeza étnica conduzida pelas autoridades ucranianas, uma alegação que remete para eventos que conduziram à II Guerra Mundial: em 1938-39, Hitler usou argumentação análoga (a protecção das minorias alemãs) para, perante a passividade das democracias ocidentais, subtrair à Lituânia a região de Memel (Klaipėda para os lituanos) e à Checoslováquia a região dos Sudetas (um aperitivo, antes de engolir todo o país): De cada vez, garantiu que seria esta a última reivindicação territorial da Alemanha. Quando, sob pretexto similar, exigiu que uma fatia de território polaco ligando a Prússia Ocidental à Prússia Oriental (o “Corredor Polaco”) e a Cidade Livre de Danzig ficassem sob controlo alemão e a Polónia recusou, Hitler respondeu com a invasão.

Hitler visita Memel, em Março de 1939, após a anexação do território pela Alemanha, a que a Lituânia não opôs resistência. Na faixa no edifício à direita lê-se “Esta terra será alemã para sempre”

As “repúblicas” de Donetsk e de Luhansk, no Donbas (a “bacia [de carvão] do [Rio] Donets”), declararam independência em 2014 e em 2022 foram reconhecidas pela Rússia, seguida por meia dúzia de países, praticamente coincidentes com os que tinham reconhecido a independência da Ossétia do Sul e Abkhazia. Mas é provável que o novo estatuto de Donetsk e Luhansk seja apenas uma ante-câmara para a integração na Rússia – que, no caso da Crimeia, foi mais expedita, uma vez que estava “legitimada” pelo claro predomínio da etnia russa na população (para o que contribuiu a deportação dos tártaros, que em 1850 representavam 77% da população e hoje são apenas 15%) e pelo resultado do referendo (não reconhecido pela comunidade internacional) que foi realizada após a conquista militar pela Rússia.

É possível que a integração na Rússia das repúblicas “independentes” de Donetsk e Luhansk, onde os habitantes de etnia russa representam  38 e 39% da população, respectivamente, seja até mais rápida do que na Ossétia do Sul e na Abkhazia, onde a percentagem de população etnicamente russa é muito reduzida (1% e 9%, respectivamente). Porém, a condução da guerra pela Rússia desde que iniciou a invasão da Ucrânia, em 24 de Fevereiro passado, sugere que Putin talvez tivesse em vista não apenas a subtracção de Donetsk e Luhansk à Ucrânia, mas a conversão de toda a Ucrânia a um estatuto de subserviência similar ao que é hoje o da Bielo-Rússia.

Cartaz soviético de 1921: “O Donbas é o coração da Rússia”

Paradoxos russos

A dissolução formal da URSS teve lugar a 8 de Dezembro de 1991, por comum acordo da República Socialista Federativa Soviética da Rússia, da Bielo-Rússia e da Ucrânia; sendo indiscutível que a RSFS da Rússia era a força dominante da extinta união, foi ela que, rebaptizada como Federação Russa, ou simplesmente Rússia, se assumiu como sua herdeira. No processo, a “nova” Rússia ficou sem parte apreciável do território que fora da “velha” URSS: além da Bielo-Rússia e Ucrânia e dos três estados bálticos, que tinham sido os primeiros a separar-se, oito outras repúblicas proclamaram independência, Arménia, Azerbaijão, Cazaquistão, Geórgia, Moldávia, Quirguistão, Tadjiquistão, Turquemenistão e Uzbequistão.

O que é intrigante é que a Rússia tenha aceitado, sem grande relutância, a independência de repúblicas de dimensão grande a média – Cazaquistão (2.724.900 Km2), Turquemenistão (491.000 Km2), Uzbequistão (449.000 Km2), Quirguistão (200.000 Km2), Tadjiquistão (143.000 Km2) – mas, simultaneamente, se tenha oposto ferozmente às pulsões independentistas das micro-repúblicas do Cáucaso (Tchetchénia, Inguchétia, Daguestão) e tenha vindo a manobrar laboriosamente, ao longo de 30 anos, para tentar subtrair dois pequenos nacos (Ossétia do Sul e Abkhazia) à Geórgia e outro pequeno naco (Transnístria) à Moldávia. Note-se que não se pretende discutir aqui a legitimidade histórica da Rússia para reclamar estes territórios, apenas destacar a incongruência da actuação da Rússia.

Mas outro paradoxo, mais antigo, parece ter norteado a “política externa” russa desde os tempos de, pelo menos, Ivan IV: a Rússia vê inimigos potenciais em todos os seus vizinhos e entende que a única forma de obter segurança é conquistar esses vizinhos ou, pelo menos, convertê-los em estados-vassalos. Acontece que, quanto mais dilata o seu território, mais extensas e vulneráveis ficam as suas fronteiras, pelo que o sentimento de insegurança não é mitigado. E assim, vemos o maior país do mundo, que se estende do Báltico ao Pacífico, do Oceano Árctico ao Mar Negro e ao Mar Cáspio, lamuriar-se de que está cercado de inimigos, parecendo não perceber que tal sensação decorre, em boa parte, de ser o maior país do mundo. Pode até fazer-se um exercício de História alternativa em que o Império Russo não tivesse vendido o Alaska aos EUA: a Rússia possuiria uma longa fronteira terrestre com mais um país da NATO, o Canadá, e encontraria nisso razões adicionais para se sentir ameaçada. Se tivesse o mesmo tipo de mentalidade que os governantes russos, também o Brasil poderia protestar por estar rodeado de países hostis.

Há que reconhecer que durante a maior parte da História, foi a agressão e a força que regeram as relações entre países, pelo que a desconfiança era compreensível. Foi o receio mútuo e a desconfiança mórbida entre as potências europeias que levou, em última análise, ao absurdo que foi a I Guerra Mundial – o assassinato de Franz Ferdinand e a declaração de guerra da Áustria à Sérvia foram apenas o rastilho. Dir-se-ia que as convulsões e o sofrimento causados pelas duas guerras mundiais, os subsequentes rearranjos geopolíticos e o final da Guerra Fria teriam posto fim à mentalidade de cerco – mas não na Rússia. Ou, pelo menos, não na cabeça de Putin. Há quem entenda que tal resultará de esta ter sido formatada pela doutrinação e experiência como funcionário do KGB no tempo da Guerra Fria. Mas também pode considerar-se que a paranóia securitária é inevitável em qualquer autocrata que passe 22 anos no poder – o único governante da Rússia/URSS nos séculos XX/XXI que ultrapassa Putin neste domínio é Stalin, que esteve no poder entre 1922 e 1953 e foi um dos mais paranóicos governantes da História.

Este edifício na Praça Lubyanka, em Moscovo, serviu de sede, sucessivamente, à Cheka, à NKVD, ao KGB e, presentemente, ao FSB. Uma anedota do período soviético afirmava que era “o edifício mais alto de Moscovo: da sua cave consegue avistar-se a Sibéria”

Acordos escritos com tinta invisível

Um dos argumentos de Putin para invadir a Ucrânia foi a necessidade de garantir a segurança da Rússia – mais concretamente, a Rússia acusa a NATO de ter quebrado o compromisso, assumido no início da década de 1990, de não se expandir para leste, um argumento que tem sido repetido no Ocidente por quem vê a invasão da Ucrânia, antes de mais, como a compreensível – e até inevitável – resposta da Rússia às constantes provocações da NATO e do imperialismo americano. Acontece que quem invoca este compromisso nunca apresentou provas substanciais da sua existência nem os detalhes da sua formulação.

Nos dias que antecederam a invasão da Ucrânia, foram, muito oportunamente, resgatados aos arquivos documentos com mais de 30 anos que apoiariam as reclamações russas; porém, quando se avança para lá dos títulos bombásticos e assertivos com que estas “descobertas” são apresentadas, percebe-se que os documentos são meros registos de pontos de vista e declarações de intenções, sempre expressos de forma verbal e vaga, emitidos por representantes da NATO e governantes e diplomatas ocidentais, no decurso de conversações com a URSS/Rússia sobre a reunificação da Alemanha e a recomposição e segurança da Europa de Leste. O secretário de Estado dos EUA James Baker terá dito que “a actual jurisdição militar da NATO não deverá avançar um centímetro para leste” (9 de Fevereiro de 1990), o chanceler alemão Helmut Kohl entendeu que “a NATO não deverá alargar o seu âmbito” (10 de Fevereiro de 1990), o diplomata alemão Jürgen Chrobog anotou que “deixámos claro que não expandiremos a NATO para lá do Elba” (Março de 1991), o diplomata americano Raymond Seitz afirmou que “garantimos à URSS […] que não tiraremos partido da retirada das tropas soviéticas da Europa de Leste” (Março de 1991), o secretário-geral da NATO, Manfred Woerner, disse que “ele e o conselho da NATO são contra a expansão da NATO” (1 de Julho de 1991).

Se, em 1990-91, a Rússia (ou a comissão liquidatária da URSS) considerasse crucial a regra de não-expansão da NATO e a NATO tivesse manifestado o seu acordo, como se explica que a Rússia não tivesse imposto que tal regra tivesse ficado expressa num acordo formal e público, assinado por todos os negociadores? Que distracção ou desleixo terá levado a Rússia/URSS a deixar tão importante item negocial remetido a um vago assentimento verbal?

O mais extraordinário é que um lapso/equívoco/omissão envolvendo tão ponderoso assunto – quiçá o maior “buraco” na história da diplomacia – teve lugar num tempo em que qualquer acordo internacional de comércio envolve centenas de páginas detalhando as especificações técnicas, procedimentos, verificações, taxas que devem ser cumpridas, aplicadas e cobradas nas transacções transfronteiriças de queijo emmental, skis, trotinetas ou torradeiras eléctricas.

Imagine-se que, em 2022, após meses de pressões e ameaças, Espanha invade Portugal para reclamar o Algarve e uns dias antes da ofensiva se anuncia a descoberta de um documento que dá conta de que, em 1668, durante a negociação do Tratado de Lisboa, que pôs termo à Guerra da Restauração, depois de um jantar bem regado, o Duque de Cadaval terá dito ao Marquês del Carpio que Espanha poderia ficar com o Algarve.

Independentemente do que se passou nos bastidores das negociações entre NATO/Ocidente e Rússia/URSS em 1990-91, o relacionamento entre países deve reger-se pelos artigos que constam efectivamente nos tratados internacionais elaborados e assinados pelos respectivos representantes nacionais e devidamente publicitados, não pela interpretação de excertos descontextualizados de conversas que tiveram lugar durante a sua negociação.