Índice
Índice
Antes de despertar, em sobressalto, a 24 de Fevereiro de 2022, com a invasão da Ucrânia pela Rússia, os europeus ocidentais não costumavam prestar muita atenção ao que se passava na parte oriental do continente, por falta de interesse e também porque, durante mais de 70 anos, a máquina de propaganda soviética conseguiu inculcar no mundo a ideia de que a URSS era um país homogéneo e que as suas fronteiras eram antigas, “naturais” e inquestionáveis. Em 1989-91 esta ficção ruiu estrepitosamente e quando a poeira assentou percebeu-se que a “homogénea” URSS se fragmentara em 15 países. Se Vladimir Putin tem deixado claro o seu profundo desagrado com o rearranjo geopolítico de 1989-91, por outro lado, a resistência tenaz à invasão russa pela parte dos ucranianos é prova eloquente de que estes possuem identidade nacional forte e que estão dispostos a fazer tremendos sacrifícios para não serem reintegrados numa Rússia que parece querer afirmar-se como herdeira do território e do poderio da URSS e do Império Russo.
No seguimento dos artigos De Kharkiv a Mariupol: Como foram formadas as cidades que contam a história da Ucrânia e De Kaliningrad a Petropavlovsk: A geografia da Rússia, um país que se diz “cercado”, que examinam as complexas e fluidas histórias da Ucrânia e da Rússia através da geografia e da toponímia, o presente artigo emprega abordagem similar para a Bielo-Rússia.
Do Principado de Polotsk ao fim do Império Russo
Os bielo-russos que prezam a sua identidade e a sua liberdade terão, muito provavelmente, ficado inquietos quando, em Fevereiro de 2022, ouviram Putin proclamar, como justificação antecipada para a invasão da Ucrânia, que esta nunca existiu enquanto Estado independente e que o território ucraniano era “parte integral da Rússia”. Acontece que, a reconhecer-se legitimidade a esta argumentação, ela poderia ser aplicada com mais propriedade à Bielo-Rússia do que à Ucrânia.
As origens da moderna Bielo-Rússia remontam ao Principado de Polotsk, com capital no que é hoje a cidade bielo-russa de Polatsk, que é referida pela primeira vez em documentos em 862 e cujo nome provém, possivelmente, do vizinho Rio Polota (Palata, em bielo-russo), que por sua vez provirá do russo “boloto” = pântano. O principado viveu num precário equilíbrio entre os príncipes rivais de Kiev, a sul, e Novgorod, a norte, mas a dinastia reinante foi extinta em 978, com a morte do príncipe Rovgolod, um varangue, ou seja, um viking (cujo nome original seria Ragnvald), como a maioria dos governantes dos principados da região na época. Rovgolod não sucumbiu a morte natural: segundo rezam as crónicas, em 978, Vladimir o Grande, príncipe de Novgorod, despeitado por Rogneda, filha de Rovgolod, ter recusado a sua proposta de casamento, marchou sobre Polotsk, violou Rogneda e tomou-a como esposa, depois de liquidar o seu pai e os seus irmãos.
No início do século XI, aproveitando dissensões internas do Rus’ de Kiev, o Principado de Polotsk reconquistou alguma autonomia, que se perdeu de vez após a derrota, na Batalha do Rio Nemiga, em 1067, do príncipe Vseslav de Polotsk, a que seguiu a repartição dos domínios deste entre os filhos, dando origem aos principados de Minsk, Vitebsk, Druck, Jersika e Koknese (os dois últimos abrangendo território no que é hoje a Letónia).
A partir do início do século XIII, o território do antigo Principado de Polotsk foi conquistado pelo Grão-Ducado da Lituânia, que em 1386 se fundiu com o Reino da Polónia, dando origem a uma superpotência que dominaria o Leste europeu até ao final do século XVIII (ver capítulo “Litva: Do Báltico ao Mar Negro”, em Países que não vêm nos mapas). A dissolução final da Comunidade Polaco-Lituana (ou República das Duas Nações) em 1795 entregou os territórios do antigo Principado de Polotsk ao império russo e a séculos de políticas de “polonização” do território e do povo sucedeu-se uma avassaladora campanha de “russificação”.
A designação da região como Belarus (Bielo-Rússia ou Rússia Branca) surgira pela primeira vez no século XVI (inicialmente em latim, como “Alba Russia”) e a sua origem é nebulosa: há quem sugira que os povos que habitavam a região tinham pele mais clara do que os povos vizinhos, há quem defenda que provém de os bielo-russos darem preferência a vestes brancas. A região foi também conhecida, como Ruténia, uma designação vaga que também abrangia a Ucrânia (ver De Kharkiv a Mariupol: Como foram formadas as cidades que contam a história da Ucrânia).
Poderia pensar-se que a designação Rússia Branca conviria à “narrativa” imperial russa, mas a vontade dos czares de integrar completamente o território nos seus domínios e de suprimir qualquer sentimento de identidade e aspiração autonómica entre os bielo-russos era tão forte que, em 1839, Nicolau I baniu o uso desta expressão, substituindo-a por um anódino “Território Noroeste”. Seguiram-se a proibição do ensino da língua bielo-russa nas escolas, a obrigatoriedade do uso exclusivo do russo em documentos oficiais, o desincentivo a publicações em bielo-russo, a obrigatoriedade do uso do alfabeto cirílico, a conversão forçada à fé ortodoxa dos bielo-russos que, durante os séculos de influência polaco-lituana, tinham aderido ao catolicismo e a submissão da igreja ortodoxa bielo-russa ao patriarca de Moscovo. Estas campanhas produziram forte efeito sobre as zonas urbanas, onde, conforme revelou o censo de 1897, a língua russa disputava a primazia à polaca e a língua bielo-russa estava restrita a menos de 10% dos falantes; paradoxalmente, o mesmo censo revelava que a maioria dos bielo-russos continuava a considerar o bielo-russo como a sua língua materna – ainda que não a falassem.
Este apego à língua é sintomático do sentimento de identidade nacional que continuou a pulsar apesar dos esforços de russificação e que fez com que, em Janeiro de 1863, eclodisse uma insurreição contra o domínio russo, que também abrangeu a Lituânia e a Ucrânia e só foi completamente extinta em meados de 1864, e que, em 1918, o nacionalismo bielo-russo tentasse tirar partido da guerra civil que se seguiu à Revolução de Outubro e do avanço das tropas alemãs em território bielo-russo, proclamando a República Democrática Bielo-Russa.
Da Revolução de Outubro ao final da II Guerra Mundial
Esta nunca conseguiu afirmar a sua autoridade sobre o território que reivindicou como seu e quando as tropas alemãs retiraram, dando cumprimento ao Tratado de Brest-Litovsk, firmado, em Março de 1918, entre a Alemanha e o Governo bolchevique, o Exército Vermelho invadiu a Bielo-Rússia e instaurou na zona sob o seu controlo um Estado-fantoche, a República Socialista Soviética da Bielo-Rússia, forçando o Governo provisório da auto-proclamada república independente a buscar refúgio em Grodno, junto da fronteira lituana e, depois, em 1919, a exilar-se em Kaunas, na Lituânia. O parlamento (Rada) da República Democrática Bielo-Russa no exílio foi mudando a sua localização em função das marés da guerra e da política internacional e, por incrível que possa parecer, continua hoje a existir, tendo, desde 1983, Ottawa como sede.
A derrota alemã na I Guerra Mundial e o Tratado de Versailles impuseram à Alemanha a perda das generosas concessões territoriais que os bolcheviques lhe tinham feito no Tratado de Brest-Litovsk, mas não trouxeram paz à Bielo-Rússia e à Ucrânia, uma vez que, em 1919, a recém-libertada Polónia decidiu tirar partido de os bolcheviques estarem embrulhados na Guerra Civil Russa para tentar recuperar parte dos territórios que tinham pertencido à Comunidade Polaco-Lituana. Lograram algum êxito, pois o Tratado de Riga, que, em 1921, pôs termo às hostilidades, atribuiu à Polónia partes da Bielo-Rússia e Ucrânia que lhe tinham sido subtraídas quando da Partição de 1795.
A República Socialista Soviética da Bielo-Rússia, reformulada como República Socialista Soviética Bielo-Russa, foi uma das entidades que fundou formalmente a URSS, em 1922. A atestar a natureza heterogénea dos habitantes do território está o facto de a RSS Bielo-Russa ter adoptado quatro línguas oficiais: bielo-russo, russo, polaco e iídiche. O período entre guerras não foi de paz para a RSS Bielo-Russa, uma vez que, tal como fez na Ucrânia, Stalin estava decidido a extirpar o independentismo bielo-russo. A Bielo-Rússia não teve algo comparável ao Holodomor (morte pela fome) ucraniano, mas viu 250.000 camponeses serem deportados e a sua elite intelectual ser dizimada, parte dela a pretexto de uma conspiração independentista e anti-soviética, organizada por uma “União para a Libertação da Bielo-Rússia” que nunca teve existência fora dos processos forjados pelos procuradores bolcheviques.
Em 1939, a guerra regressou à região, com a URSS a invadir a Polónia, em conluio com a Alemanha nazi, de forma a reaver as partes da Bielo-Rússia e Ucrânia cedidas pelo Tratado de Riga. Se, entre 1922 e 1939 a Polónia se afadigara em “re-polonizar” a Bielo-Rússia, a URSS promoveu uma campanha de eliminação e deportação de polacos e bielo-russos que só foi interrompida, em 1941, pela invasão alemã (Operação Barbarossa). Uma onda de destruição voltou a assolar a Bielo-Rússia, agora em sentido contrário e com brutalidade redobrada, e que contou com a ajuda das forças soviéticas, que liquidaram os prisioneiros (polacos e bielo-russos) em seu poder e destruíram sistematicamente infra-estruturas e reservas de alimentos à medida que retiravam. Pela violência (aleatória ou dirigida), inanição e privações várias, estima-se que os três anos de ocupação nazi terão causado na Bielo-Rússia 2 milhões de mortos (dos quais 800.000 judeus) e destruído cerca de 5300 aldeias e vilas, muitas delas como retaliação alemã pela actividade da guerrilha (partisans).
O facto de boa parte da Bielo-Rússia estar ocupada com florestas e pântanos, favorecia a actividade de guerrilha, onde confluíram grupos com motivações diversas – pró-soviéticos, nacionalistas polacos, nacionalistas bielo-russos, judeus – mas tendo em comum o propósito de infernizar a vida do ocupante. Os sucessos obtidos pelo Exército Vermelho no ano de 1942 mostraram que os alemães não eram imbatíveis e fomentaram a adesão à guerrilha bielo-russa, que, no final desse ano, ascendeu a cerca de 50.000 efectivos, que dificultavam o funcionamento da logística alemã e cuja repressão obrigava os alemães a desviar meios humanos e materiais que faziam falta na frente de batalha. Deve realçar-se que, tal como na Ucrânia, os independentistas bielo-russos tinham começado por tomar os nazis como aliados na luta para se libertarem do jugo soviético, mas que o decorrer do tempo fizera-lhes ver que os alemães não só nunca permitiriam aos bielo-russos qualquer assomo de independência como lhes reservavam um tratamento brutal, pelo que passaram a lutar contra o ocupante.
Em 1944-45, a ofensiva soviética repôs a fronteira ocidental da RSS Bielo-Russa na posição aproximada de final de 1939, mas desta feita os dirigentes soviéticos, com o seu “notável” talento para solucionar “a questão das nacionalidades e o respeito pelos povos e suas culturas” (Jerónimo de Sousa dixit), entenderam que se impunha assegurar a homogeneidade étnica do território: se os nazis já se tinham encarregado de exterminar 90% dos judeus, agora era a vez de extirpar os polacos, estimando-se que cerca de 200.000 tenham sido expulsos para a Polónia entre o final da guerra e o início da década de 1950.
Da dissolução da URSS à invasão da Ucrânia
E assim ficaram as coisas, em atmosfera de pleno respeito pelos povos e suas culturas, até Agosto de 1995, quando a URSS entrou em desagregação e a RSS Bielo-Russa declarou independência como República da Bielo-Rússia. Para ajudar a perceber a pulsão dos bielo-russos para se “divorciarem” da Rússia – que poderá parecer estranha a quem olha do extremo ocidental da Europa e vê dois “povos-irmãos” – é relevante considerar que as estimativas do número de vítimas bielo-russas da repressão soviética entre 1917 e 1953 (data da morte de Stalin) vão de 600.000 a 1.7 milhões.
Todavia, enquanto os novos países europeus que emergiram do colapso da URSS se apressaram a remover a quinquilharia marxista-leninista das praças e da toponímia, a Bielo-Rússia independente preservou-a, como atesta a estátua de Lenin que domina a Praça da Independência de Minsk, frente à Casa do Governo, sede das duas câmaras do parlamento bielo-russo.
As eleições presidenciais bielo-russas de 1994 deram a vitória a Aleksandr Lukachenko, que nunca mais abandonou o poder, pois, sendo precavido, tratou de retirar poderes ao parlamento, de providenciar o desaparecimento ou a prisão de líderes e activistas da oposição e de jornalistas e de colocar o KGB sob o seu comando directo – sim, o KGB, pois enquanto nos outros Estados resultantes da dissolução da URSS o KGB, de sinistra memória, foi reformado ou, pelo menos, rebaptizado (na Rússia, por exemplo, passou a FSB), a Bielo-Rússia nem se deu ao trabalho de cortar laços formais com a polícia secreta soviética (só os micro-Estados-fantoche da Ossétia do Sul e Transnístria conservam também esta relíquia macabra).
O Tratado de Amizade, Boa Vizinhança e Cooperação assinado entre a Bielo-Rússia e a Rússia de Yeltsin em 1995 estabelecia uma relação bem mais estreita do que aquela que a Rússia tinha com os outros países resultantes da fragmentação da URSS (a Comunidade de Estados Independentes), o que era compreensível, dado que, com efeito, a Rússia e a Bielo-Rússia têm mais em comum em termos linguísticos, culturais e históricos do que com qualquer outro membro da COI. A relação privilegiada foi aprofundada em 1999, com a criação formal da União da Rússia e Bielo-Rússia, mas foi ensombrada, poucos meses depois, pela subida ao poder de Vladimir Putin, que, já então, parecia disposto a reconstruir, na medida do possível, a antiga URSS e propôs à Bielo-Rússia a sua integração na Rússia, num solução federal, o que Lukashenko recusou.
Desde então, as relações entre a Bielo-Rússia e a Rússia têm oscilado de uma forma que parecerá imprevisível e inexplicável aos olhos ocidentais. Arrefeceram em 2007 quando a Gazprom decidiu subir o preço do gás (a Rússia começara por cobrar às ex-repúblicas da URSS preços abaixo do que praticava com os clientes da Europa Ocidental) e a Transneft interrompeu o fornecimento de petróleo (por os bielo-russos estarem a desviar, dissimuladamente, petróleo de um pipeline entre a Rússia e a Alemanha). Após o desaguisado em torno de um líquido negro ter sido sanado (mas com o óbice, para a Rússia, de a Bielo-Rússia se ter aproximado da União Europeia), em 2009 surgiu um conflito envolvendo um líquido branco. O imbróglio começou quando Putin propôs a Lukashenko que a Bielo-Rússia reconhecesse formalmente a Abkhazia e a Ossétia do Sul, dois Estados-fantoche criados pelo Kremlin (ver De Kaliningrad a Petropavlovsk: A geografia da Rússia, um país que se diz “cercado”), em troca de facilidades no pagamento de um empréstimo, o que Lukashenko recusou; na mesma ocasião, a Rússia manifestou interesse na privatização da indústria leiteira bielo-russa, mas Lukashenko deu a entender que estava em negociações com a UE nesse domínio. A resposta russa foi a interdição da importação de leite e lacticínios bielo-russos, invocando pretextos sanitários. A “Primeira Guerra do Leite” durou apenas 11 dias, no final dos quais as importações pela Rússia foram retomadas; foram de novo suspensas em 2018-19 (mais uma vez invocando razões sanitárias), após a república russa do Tartaristão se ter queixado ao Kremlin de que os seus produtores não conseguiam competir com os lacticínios bielo-russos.
Em 2019, após um encontro com Putin, em Sochi, Lukashenko, parecendo ter esquecido estes atritos, declarou: “Por mim, os dois países podem unir-se amanhã, sem qualquer problema”. Porém, em Janeiro de 2020, já Lukashenko acusava Putin de pretender anexar a Bielo-Rússia e em Julho anunciava a detenção, em território bielo-russo, de 33 mercenários do Grupo Wagner, uma empresa de segurança privada russa que tem prestado inestimável ajuda à política externa do Kremlin; segundo Lukashenko, estes mercenários fariam parte de um plano do Kremlin para desestabilizar a Bielo-Rússia e adulterar os resultados das eleições presidenciais de Agosto de 2020.
Os resultados destas foram, com efeito, adulterados, mas por Lukashenko e em favor de si mesmo, como em todas as eleições posteriores a 1994, o que desencadeou manifestações maciças contra o regime, que foram brutalmente reprimidas.
Vendo-se encurralado pelo descontentamento popular – que chegou a contar com a solidariedade de algumas unidades policiais e militares – e pelo reforço das sanções impostas pelo Ocidente como punição à Bielo-Rússia pela repressão violenta e outros atropelos à democracia, em Setembro de 2020 Lukashenko voltou a cair nos braços de Putin, que lhe garantiu um novo e vultoso empréstimo. Em resultado do reatar das boas relações com o Kremlin, a Bielo-Rússia disponibilizou o seu território para que as forças russas lançassem a presente invasão da Ucrânia, ofereceu o contributo de tropas suas para a “operação especial de desnazificação”, abriu o território bielo-russo à instalação de armas nucleares russas e tem sido dos poucos países a votar ao lado da Rússia nas resoluções da ONU relacionadas com a invasão da Ucrânia.
Em De Kaliningrad a Petropavlovsk: A geografia da Rússia, um país que se diz “cercado” sugeria-se que a actuação imprevisível de Putin poderia resultar, em parte, da mentalidade paranóica gerada por 22 anos de poder absoluto – ora, Lukashenko já contabiliza 28 anos como autocrata…
Todavia, sob esta relação (aparentemente) volúvel com o Kremlin, Lukashenko tem vindo a desenvolver, de forma discreta, uma política congruente e continuada de russificação do seu próprio país.
Um pacto secreto com o Kremlin?
A Bielo-Rússia de Lukashenko é um país de 207.000 km2 (pouco mais do dobro da área de Portugal), cuja população de 9.3 milhões de habitantes, embora sendo dominada por bielo-russos (84.9%), inclui ainda percentagens significativas de russos (7.5%), polacos (3.1%) e ucranianos (1.7%). Ao contrário dos outros Estados europeus que emergiram da ex-URSS (Ucrânia, Estados Bálticos, Moldova), na Bielo-Rússia a língua dominante na conversação quotidiana é o russo (que é também a língua preferencial do Estado), enquanto o bielo-russo é falado correntemente por 23% da população; as duas línguas são similares e têm um considerável grau de inteligibilidade mútua, mas o bielo-russo tem mais afinidades com o ucraniano do que com o russo.
Embora o bielo-russo seja, formalmente, colocado a par do russo como língua oficial, a governação de Lukashenko tem vindo, desde o início (e independentemente das flutuações nas relações com a Rússia) a dar preferência ao russo no ensino, nos media e na relação entre Estado e cidadãos, tem tomado medidas para aproximar a norma da língua bielo-russa da língua russa e nas placas na via pública o russo tem vindo a substituir o bielo-russo. Têm sido registados casos de pressão e até intimidação dos falantes de bielo-russo, sobretudo pela parte de grupos da extrema-direita bielo-russa ligados ao nacionalismo russo (Putin escusava de invadir a Ucrânia para exterminar “nazis”, pois não há falta deles na Rússia e na Bielo-Rússia). O encerramento sistemático das pequenas escolas rurais, onde o ensino era feito em bielo-russo, conjugou-se com a supressão do ensino em bielo-russo nas escolas dos centros urbanos – em 2019, restavam apenas seis a fazê-lo, num total de 920 escolas “urbanas”.
Ao mesmo tempo, vias públicas, edifícios e acidentes geográficos têm sido rebaptizados em homenagem a figuras russas, os media são dominados por programas russos e maioritariamente russos são também os produtos de consumo correntes nas lojas e supermercados.
Os autocratas, sejam eles de esquerda ou de direita, tendem a exaltar o nacionalismo, por vezes de forma assolapada, tanto mais se o seu país tem vizinhos muito poderosos e uma longa história de sujeição a estes e se estiver isolado no plano internacional – como é o caso da Bielo-Rússia. Lukashenko, pelo contrário, parece apostado na dissolução da identidade nacional bielo-russa, o que, aliado à falta de explicações do Estado para tais políticas, fez brotar entre a oposição bielo-russa teorias conspirativas que sugerem que o presidente bielo-russo estabeleceu, logo em 1994, um pacto secreto com o Kremlin – Lukashenko seria o instrumento de um plano para a russificação e anexação do país e os pontuais arrufos entre Lukashenko e o Kremlin seriam meras encenações destinadas a afastar suspeitas.
Não é possível averiguar a veracidade destas teorias, mas o que é certo é que o desprezo de Lukashenko pelas sanções impostas pelo Ocidente e pelas normas básicas do direito internacional são inesperadas num país de 9 milhões de habitantes com uma economia débil e sugerem que Lukashenko sente as “costas quentes”. A sua audácia tornou-se particularmente evidente em Maio de 2021, quando as autoridades bielo-russas desviaram para Minsk um voo comercial da Ryanair, entre Atenas e Vilnius (Lituânia), sob o pretexto de um alarme de bomba a bordo, mas, na verdade, com o propósito de deter um passageiro bielo-russo, Roman Protasevich, um jornalista e activista anti-Lukashenko que tinha sido forçado ao exílio na Polónia.
Se a acusação formal das autoridades ucranianas contra Protasevich é este ser um “agitador de massas” (o que pode valer-lhe 15 anos de prisão), já os media bielo-russos (sob controlo estatal) acusam-no de ter combatido no Batalhão Azov, que, na sua origem, era uma milícia ucraniana criada em 2014 para lutar contra os separatistas russos da região ucraniana do Donbass e conotada, na sua fase inicial, com o neo-nazismo. A associação de Protasevich ao Batalhão Azov está alinhada com a “narrativa” da propaganda russa, que converteu esta unidade paramilitar numa “bête noire” e numa “prova” do domínio da Ucrânia pelo nazismo, um argumento que o Kremlin tem brandido como principal justificação para a invasão da Ucrânia e que tem sido acriticamente repetido (por ingenuidade ou sonsice) pelas “putinettes” ocidentais e por quem quer que busque justificações ou atenuantes para a agressão russa. Quem agita o espantalho do Batalhão Azov ignora (ou omite deliberadamente) que esta unidade (entretanto enquadrada no exército ucraniano) representa apenas 0.5% dos efectivos militares ucranianos e que a percentagem de simpatizantes nazistas nas suas fileiras talvez não seja muito diferente da percentagem de simpatizantes nazistas nas fileiras das milícias separatistas do Donbass que o batalhão tem combatido (afinal, se o Batalhão Azov foi fundado pelo neo-nazi Andriy Biletsky, o fundador da Milícia Popular do Donbass e primeiro “governador” da auto-proclamada República Popular de Donetsk foi Pavel Gubarev, ex-membro do partido neo-nazi Unidade Nacional Russa).
Minsk
A mais antiga menção à actual capital da Bielo-Rússia – hoje com 2 milhões de habitantes (mais de 1/5 da população total do país) – data de 1067, mas é possível que a sua origem remonte aos séculos IX-X. Não é claro quem a terá fundado e há várias hipóteses sobre a origem do seu nome: poderá provir do russo “menyat” = trocar, talvez por ter nascido junto a um local usado para mercados ou feiras, ou do Rio Men ou Menka, onde foram encontrados vestígios arqueológicos de um povoado do século X, 15 km a sul da actual Minsk (não é inédito que um nome atribuído a um povoado seja transferido para um povoado próximo).
No século X, a região de Minsk foi incorporada no Principado de Polotsk e quando este se fragmentou, em 1101, tornou-se na capital do Principado de Minsk. Em 1242 passou para a posse do Grão-Ducado da Lituânia e, depois, da Comunidade Polaco-Lituana, assim se mantendo até 1793 (com episódica ocupação sueca em 1708-09), quando passou para o Império Russo. Se, amanhã, a Rússia de Putin reclamar Minsk como sua com base em direitos históricos, deverá considerar-se que a cidade foi polaco-lituana durante 551 anos e russa durante 229 anos.
No período entre a I e a II Guerras Mundiais, Minsk foi um dos focos da repressão do aparelho de Estado soviético sobre bielo-russos, polacos e judeus – mas o sofrimento às mãos da NKVD da vasta comunidade judaica da cidade (71.000 num total de 239.000 habitantes, em 1939) não foi comparável com os eventos que se seguiram à conquista pelos alemães em 1941. Após liquidar alguns milhares de judeus no Verão e Outono, no final de 1941 a administração alemã criou na cidade um gueto que chegou a albergar 70.000 a 100.000 judeus (o maior da Europa), metade dos quais eram habitantes originais da cidade e outros eram judeus que tinham fugido da Polónia quando da invasão alemã de 1939. Boa parte deles acabaram fuzilados ou gaseados (por monóxido de carbono, em carrinhas fechadas) num centro de extermínio criado em Maly Trostenets (Maly Trascianiec, em bielo-russo), uma aldeia próxima de Minsk, que começou a funcionar em Maio de 1942 e recebeu também judeus vindos de vários pontos da Alemanha, Áustria e Checoslováquia. Ainda assim, parte dos judeus do gueto de Minsk – cuja segurança era medíocre – conseguiram fugir para a floresta e juntar-se à guerrilha anti-nazi.
No Verão de 1944, as tropas alemãs em Minsk ofereceram tenaz resistência à ofensiva soviética (a Operação Bagration), de que resultou a redução a escombros de mais de 80% dos edifícios.
Homyel/Gomel
Homyel (em bielo-russo) ou Gomel (em russo) terá sido fundada na viragem dos séculos X-XI no ponto onde o Homeyuk desagua no Sozh e é possível que o seu nome provenha do primeiro curso de água; outra hipótese é que provenha do eslavo “gom” = colina.
Foi incorporada no Grão-Ducado da Lituânia em 1335, passou para a posse do Grão-Ducado de Moscovo na viragem dos séculos XV-XVI e foi reconquistada pelos lituanos em 1535. Estando situada na fronteira das zonas de influência de polaco-lituanos, russos e cossacos, seria várias vezes sitiada ou conquistada até ser integrada de vez no Império Russo em 1772 – o desenvolvimento da cidade, que fora coarctado pelas constantes refregas, tomou ímpeto a partir desta data e em 1913 a cidade ultrapassava 100.000 habitantes. A II Guerra Mundial fez a população cair para 15.000 habitantes e, após uma forte recuperação, sofreu um rude golpe quando a nuvem radioactiva causada pela explosão da central nuclear de Chernobyl, 130 km a sul, se abateu sobre a região.
Hoje Homyel tem 526.000 habitantes, o que faz dela a segunda mais populosa da Bielo-Rússia.
Mahiliow/Mogilev
Com 370.000 habitantes, é a terceira cidade mais populosa do país. Há várias teorias que explicam o seu nome: uma associa-a a Lev I (c.1228-c.1301), príncipe da Galícia-Volínia (Halych-Volhynia) e que, a partir de 1271, assumiu também o título de Grande Príncipe de Kiev. Lev (leão), a que foi atribuído o cognome de “mogiy” = poderoso, terá, em 1267, ordenado a construção de uma fortaleza na confluência dos rios Dnieper e Dubrovenka, que se converteria na actual Mahiliow (bielo-russo) ou Mogilev (em russo). Este mesmo Lev está também na origem do nome da cidade ucraniana de Lviv (ver De Kharkiv a Mariupol: Como foram formadas as cidades que contam a história da Ucrânia).
Outra hipótese – a mais difundida – envereda pela fantasia e atribui o nome a um certo Lev Masheka, um camponês (ou um salteador, segundo outras fontes) dotado de força prodigiosa e que foi assassinado pela sua amada e sepultado junto do Dnieper, num local que ficou conhecido como Mogilev, do russo “mogila” = túmulo + “lev”, ou seja, o “túmulo do leão”.
A cidade ficou, como o resto da Bielo-Rússia, sucessivamente sob o domínio da Lituânia, da Comunidade Polaco-Lituana, do Império Russo e da URSS. Em 1938, o Governo da RSS Bielo-Russa, entendendo que Minsk estava demasiado próxima da fronteira com a Polónia – que a URSS temia que pretendesse recuperar a parte da Bielo-Rússia que já fora sua –, transferiu a capital da República para Mogilev. Por esta altura, a cidade tinha 41.100 habitantes, dos quais 21.500 eram judeus, a maior parte dos quais foram eliminados pelos alemães no Outono de 1941. Na ocasião, Mogilev teve a macabra distinção de receber a visita de Heinrich Himmler, que assistiu à execução de 279 judeus.
Vitebsk
Com 342.000 habitantes, é a quarta cidade mais populosa do país. Terá sido fundada, segundo a “versão oficial”, em 974 por Olga, princesa de Kiev (890-969), mas a primeira referência fidedigna à cidade data de 1021. O seu nome provém do Rio Vitba (ou Vićba), que, por sua vez provém de “vit” = pântano, paul.
A localização privilegiada de Vitebsk na rota de comércio dos varangues com o mundo bizantino permitiu-lhe prosperar e converter-se na capital de um principado que chegou a gozar de alguma independência no século XIII. Foi quase completamente destruída na Grande Guerra do Norte (1700-1721) e incorporada no Império Russo em 1772.
Tal como Mahiliow, na véspera da II Guerra Mundial, um pouco mais de metade dos seus 65.900 habitantes eram judeus, que foram massacrados no Outono de 1941. O mais famoso filho da terra, um judeu chamado Moishe Shagal (1887-1985), escapou ao destino dos seus conterrâneos, uma vez que, após uma estadia em São Petersburgo, em 1910 fixara residência em Paris, onde adoptou o nome de Marc Chagall.
Hrodna/Grodno
Com 317.000 habitantes, Hrodna (em bielo-russo) ou Grodno (em russo) ou Gardinas (em lituano), é a quinta cidade mais populosa do país. O seu nome provém do russo “grad” = fortaleza. A referência mais antiga a este povoado de origem lituana data de 1005, embora a data oficial de fundação seja 1127. Uma vez que se situa no oeste da Bielo-Rússia, a apenas 15 Km da actual fronteira com a Polónia e a 30 Km da fronteira com a Lituânia, cedo caiu em poder do Grão-Ducado da Lituânia.
O censo de 1897 atesta que metade dos 46.900 habitantes da cidade eram judeus. Na Guerra Polaco-Russa de 1919-21, Hrodna mudou de mãos duas vezes, mas acabou por ficar no poder dos polacos, situação que se prolongaria até 1939 e que foi acompanhada por imigração polaca, fazendo com que, na véspera da II Guerra Mundial, os polacos representassem 60% da população, cabendo aos judeus 36%. Após a partilha da Polónia entre alemães e soviéticos, em 1939, a região de Hrodna foi anexada à RSS Bielo-Russa e os habitantes polacos foram massacrados ou deportados para a Sibéria. Em 1941, vieram os alemães e amontoaram os judeus em dois guetos, a partir dos quais foram, em 1943, encaminhados para o campo de extermínio de Treblinka.
Brest
O nome provém possivelmente do eslavo “beresta” = ulmeiro ou “berest “= bétula, ou ainda do lituano “brasta” = vau. Esta cidade na confluência dos rios Bug e Mukhavets é a sexta mais populosa do pais, com 300.000 habitantes, e também uma das mais antigas: a primeira menção em documentos (como “Berestye”) data de 1019, quando o Rus’ de Kiev a arrebatou ao Reino da Polónia. Após ter alternado entre o domínio de Kiev e da Polónia, foi conquistada pelo Grão-Ducado da Lituânia no século XIV. Passou a fazer parte do Império Russo em 1795, mas o seu forte vínculo com a Lituânia continuou a estar expresso no nome, Brest-Litovsk, que significa “Brest lituana” e perdurou até 1921. Entretanto, foi cercada e destruída por mongóis (1241), tártaros da Crimeia (1500) e suecos (1657 e 1706).
Em 1918 foi o palco da assinatura do tratado (que leva o seu nome) entre a Alemanha e o novo governo bolchevique da Rússia e que fazia generosas concessões territoriais à Alemanha, incluindo a própria Brest-Litovsk. Este rearranjo foi anulado pela derrota alemã na I Guerra Mundial ano e pela Guerra Polaco-Russa de 1919-21, de que resultou a cidade ficar em poder da Polónia, com o nome Brześć nad Bugiem (“Brest no Bug”, em alusão ao Rio Bug). Quando em 1939 Alemanha e URSS invadiram a Polónia, quem tomou Brest foi a Wehrmacht, mas, dando seguimento ao acordado no Pacto Germano-Soviético, a posse da cidade foi transferida para os soviéticos.
Na viragem dos séculos XIX-XX, os judeus eram a etnia dominante, representando 66% da população em 1897 e 41% em 1936 (altura em que detinham 80% das firmas da cidade). Dos 20.000 judeus arrebanhados pelos nazis no gueto da cidade, apenas sete sobrevieram.
Os rearranjos de fronteiras em 1945 colocaram Brest em território soviético – na margem oposta do Bug fica a cidade polaca de Terespol.
Barysaw/Borisov
Barysaw (Borisov para os russos) fica 74 Km a norte de Minsk, junto ao Rio Berezina, e é, com 143.000 habitantes, a nona cidade mais populosa do país. Segundo a tradição, foi fundada em 1102 por Rovgolod Vselavich, príncipe de Polotsk, cujo nome de baptismo era Boris, o que explicaria o nome da cidade. Uma etimologia alternativa aponta para a palavra eslava “bor = batalha, por ali se ter travado em tempos uma grande batalha. Sobre esta hipotética batalha nada se sabe, mas em Novembro de 1812 a cidade assistiu a um sangrento embate entre o que restava da Grande Armée de Napoleão e as tropas russas que vinham no seu encalço desde o fiasco de Moscovo; Napoleão sofreu pesadas baixas, mas conseguiu o que pretendia: atravessar o Rio Berezina e escapar aos russos.
Como o número de aficionados da história militar é muito inferior ao número de aficionados do ludopédio, é provável que, na Europa Ocidental, o nome Borisov seja mais facilmente associado ao Futbolny Klub BATE Borisov, que é o mais conhecido da Bielo-Rússia (desde 1999 já foi 15 vezes campeão nacional) e que tem sido presença assídua nas competições europeias. O clube tem ascendência operária, sendo os seus jogadores originalmente recrutados numa das principais indústrias da cidade, a BATE, acrónimo de Borisovskii zavod AvtoTraktomogo Elektrooborudovaniya (“componentes electrónicos para automóveis e tractores”)
Pinsk
É a décima cidade mais populosa do país, com 130.000 habitantes, e situa-se no sudoeste do país, perto da fronteira com a Ucrânia e na confluência dos rios Pina e Pripyat, provindo o seu nome do primeiro. Supõe-se que terá sido fundada por lituanos nos séculos IX-X e foi sob o domínio do Grão-Ducado da Lituânia ou da Comunidade Polaco-Lituana que passou cinco séculos, até ser absorvida em 1793 pelo Império Russo. Quando este foi abolido pela Revolução de Outubro e algumas das suas partes proclamaram independência, Pinsk ficou no meio de uma disputa entre a República Democrática Bielo-Russa e a República Democrática Ucraniana – que acabaram ambas por ser subjugadas pelo Exército Vermelho e incorporadas na URSS. Pelo meio travou-se a Guerra Polaco-Russa de 1919-21, na qual Pinsk mudou de mãos várias vezes, até ser atribuída à Polónia (como Pińsk) pelo Tratado de Riga, em 1921. A URSS apoderar-se-ia dela pela força em 1939 e veria a conquista formalmente legitimada em 1945.
Pinsk foi uma das cidades com maior presença judaica da Bielo-Rússia e até de toda a Europa – em 1897 havia 74% de judeus, na véspera da II Guerra Mundial eram 70%. Em Agosto de 1941, os 8000 que não conseguiram fugir foram levados para os bosques vizinhos e abatidos a tiro pelos alemães. A cidade ficou, assim, praticamente limpa de judeus, mas Pinsk foi escolhida, em Abril de 1942, para a instalação de um gueto , destinado a concentrar os judeus de localidades vizinhas; quando, em Outubro, os alemães se dispuseram a liquidar o gueto sobrelotado, depararam-se, inesperadamente, com resistência organizada e (pobremente) armada, que obrigou à chamada de reforços. O massacre acabou por ser consumado, ceifando a vida de 17.000 judeus.
A Rússia como mártir e heroína da luta anti-fascista
Em 2022 há uma razão adicional para realçar o sofrimento e devastação infligidos à Bielo-Rússia durante a II Guerra Mundial: serve para desmontar a “narrativa” do Kremlin que tem sido usada para legitimar a invasão da Ucrânia.
Desde 1945, a URSS colocou no peito as “medalhas” de ter sido o país que mais sangue verteu na II Guerra Mundial e que mais contribuiu para derrotar a ameaça nazi e tem feito questão de exibir estas “condecorações” de cada vez que a sua política externa agressiva é alvo de reprovação.
Esta argumentação enferma de duas falácias: 1) padecimentos e actos meritórios no passado não justificam nem atenuam a gravidade de crimes e desmandos cometidos no presente; 2) o país que mais contribuiu para fortalecer a Alemanha nazi e encorajar a sua política de agressão foi a URSS.
A URSS começou a alimentar o belicismo alemão antes da ascensão ao poder dos nazis: o Tratado de Rapallo, firmado em 1922, incluía cláusulas secretas que permitiram à Alemanha desenvolver em território soviético, actividades no domínio militar que lhe tinham sido interditadas pelo Tratado de Versailles: fabrico de artilharia e armas químicas, desenvolvimento e teste de aviões de combate, treino de pilotos de combate e tanquistas. Usando sempre da maior discrição, a URSS disponibilizou também à Alemanha perímetros para treino de tropas e ensaio de armas e um local para construção de submarinos no Mar Negro (que a Alemanha não chegou a usar). A contrapartida alemã foi a transferência de tecnologia bélica, domínio em que, na década de 1920, a URSS se encontrava atrasada face às potências ocidentais.
É verdade que esta colaboração militar foi suspensa em 1933, quando Hitler subiu ao poder, e que as relações económicas entre os dois países se degradaram a partir do momento em que apoiaram lados opostos na Guerra Civil de Espanha, mas, sem estes 11 anos de cooperação militar, “a Alemanha não teria sido capaz de iniciar uma guerra, quanto mais de a vencer”, conforme afirmou Ian Johnson, autor de Faustian bargain: The Soviet-German partnership and the origins of Second World War (2021).
A cumplicidade entre a Alemanha e a URSS foi reatada e dilatada pelo Pacto Molotov-Ribbentrop, de 23 de Agosto de 1939, apresentado publicamente como um pacto de não-agressão com 10 anos de validade, mas que ia bem mais longe do que isso, já que as suas cláusulas secretas atribuíam aos dois signatários esferas de influência – isto é, licença para invadir e retalhar países vizinhos.
O Pacto Molotov-Ribbentrop é usualmente visto, em retrospectiva, como o acordo que deixou Hitler com as mãos livres para invadir a Polónia, mas o acordo teve outras consequências, menos notórias mas relevantes, como o estabelecimento de intensas relações comerciais entre os dois países e a cedência à Alemanha pela URSS de uma base secreta, conhecida como Basis Nord, em Zapadnaya Litsa, na Península de Kola, a 120 km do porto soviético de Murmansk, a partir da qual a Kriegsmarine poderia atacar a navegação aliada. Empenhado em agradar ao seu aliado, Stalin ainda propôs a Hitler a cedência de outro local, mais favorável do que a Basis Nord, mas Hitler deixou de ter interesse em bases navais na região árctica soviética a partir de Junho de 1940, quando concluiu a conquista da Noruega, levando a que a Basis Nord fosse abandonada.
O Pacto Molotov-Ribbentrop foi recebido com surpresa em todo o mundo – até mesmo na Alemanha e URSS – mas quem estivesse atento teria notado que as duas potências aparentemente antitéticas estavam a reaproximar-se pelo menos desde Maio de 1939, quando foi assinado o Acordo de Crédito Germano-Soviético. A componente económica dos dois tratados germano-soviéticos de 1939 seria largamente superada por outro tratado, também ele pouco conhecido, o Acordo Comercial Germano-Soviético, de Fevereiro de 1940. Este conferiu papel crucial à URSS no fornecimento de matérias-primas para o esforço de guerra alemão, quer directamente, quer servindo de fachada para fornecimentos de países terceiros, permitindo assim tornear as sanções e o bloqueio naval impostos à Alemanha pela Grã-Bretanha e pela França.
Mas a URSS não foi apenas o maior contribuinte para o robustecimento da máquina bélica da Alemanha nazi, foi também sua cúmplice na guerra propriamente dita: em 1939-41, a URSS foi aliada da Alemanha no esmagamento e ocupação da Polónia, anexou os Estados Bálticos, subtraiu a Bessarábia à Roménia e invadiu a Finlândia (onde teve de contentar-se com alguns ganhos territoriais, já que os finlandeses se defenderam com grande tenacidade e o Exército Vermelho, embora sendo largamente superior em homens e material, se revelou inepto, desmotivado e mal preparado). Stalin assistiu, possivelmente com satisfação, à derrota das “democracias burguesas” da Europa Ocidental pelos nazis, não se perturbou com os relatos da brutalidade alemã nos territórios ocupados (afinal, Stalin fazia o mesmo na sua “esfera de influência” e no seu próprio país) e teve o cuidado de não fazer qualquer gesto que comprometesse o seu conluio com os nazis, e não se sabe durante quantos anos teria prosseguido esta política, se, em 22 de Junho de 1941, Hitler não tivesse cometido o acto insensato de invadir a URSS. Ao contrário da Grã-Bretanha e da França, que declararam guerra à Alemanha nazi em Setembro de 1939 como resposta à agressão alemã à Polónia, a URSS apenas aderiu à luta contra o expansionismo nazi quando foi vítima dele.
Em 1991, a Rússia herdou não só a maior parte do território da URSS, o seu aparelho militar e o seu arsenal nuclear, como a sua gloriosa história como paladina do anti-nazismo e tem vindo a invocá-la repetidas vezes (até porque parece ter também herdado a estratégia de propaganda soviética). Ora não só a URSS não foi o “cavaleiro branco” do anti-nazismo, como a Rússia não pode reivindicar exclusividade ou precedência nos galardões anti-nazis da URSS: durante a II Guerra Mundial, o território da URSS que mais sofreu na luta contra a Alemanha nazi não foi a Rússia (isto é, a República Socialista Federativa Soviética Russa), foram a Ucrânia e a Bielo-Rússia, sobretudo quando se contabilizam as baixas em termos proporcionais: as estimativas apontam para 5.2 milhões de vítimas civis ucranianas (12.6% da população), 1.7 milhões de vítimas civis bielo-russas (18.9% da população) e 7.2 milhões de vítimas civis russas (6.5% da população). Quando se somam vítimas civis e militares o quadro é o seguinte: 6.8 milhões de ucranianos (16.6% da população), 2.3 milhões de bielo-russos (25.3% da população), 13.9 milhões de russos (12.7% da população).
O historiador soviético Georgiy Kumanev estimou que as mortes de civis ucranianos e bielo-russos excederam as de civis russos em termos absolutos, apontando valores de 4.0 milhões, 2.5 milhões e 1.7 milhões, respectivamente.
Mas mesmo que nos rejamos pelas estimativas mais consensuais, é óbvio que a Ucrânia e a Bielo-Rússia têm tanto ou mais direito do que a Rússia a reivindicar galardões no combate ao nazismo. Isto só torna mais incongruente os argumentos empregues sistematicamente no caso ucraniano pelo Kremlin e pela sua (assaz obtusa) máquina de propaganda:
1) A “operação especial” das Forças Armadas russas visa a “desnazificação” do país;
2) Todos os ataques a civis e a zonas residenciais e todos os crimes de guerra em território ucraniano que têm sido amplamente documentados foram cometidos ou encenados por “nazis” ucranianos;
3) Os vínculos de alguns membros do Batalhão Azov ao nacionalismo de extrema-direita são uma mancha que, automaticamente, alastra a todo o exército ucraniano, ao governo e parlamento ucranianos e a parte do povo ucraniano (não todo, há ucranianos que aguardam, ansiosamente, ser libertados da opressão nazi); esta última “narrativa” omite, claro, que a representação da extrema-direita no parlamento da Ucrânia tem sido inferior ao que é corrente na Europa de Leste, e que actualmente é mesmo nula, o que não pode dizer-se de democracias consolidadas da Europa Ocidental, como Portugal, Espanha, França, Itália, Alemanha ou Áustria.
Quando as palavras são empregadas de forma inapropriada e os seus significados são esticados e distorcidos, deixam de ser elementos de comunicação e passam a ser agentes de manipulação, ludíbrio e instrumentalização. No Portugal do PREC, a palavra “fascista” designava qualquer pessoa de quem não se gostava ou cuja posição ou actuação era contrária aos interesses de quem lançava a acusação, e no século XXI os termos “fascista” e “nazi” têm vindo a ser disparados com tão pouco acerto e critério que começam a ficar esvaziados de sentido (ver Um mundo cheio de porcos fascistas?).
Em 2022, na novilíngua de Vladimir Putin, defensor de valores ultra-conservadores, campeão do capitalismo oligárquico, financiador da extrema-direita europeia e alvo de admiração de gente como Matteo Salvini (“o melhor estadista do mundo”), Marine Le Pen (“conseguiu restaurar o orgulho de uma grande nação”) ou Éric Zemmour (“sonho com um Putin francês”), “nazi” é qualquer povo da ex-URSS que fale outra língua que não o russo, que se identifique com uma cultura que não a russa e que não aceite de bom grado ser absorvido pela Rússia. É uma perspectiva grotesca e esdrúxula, mas mais esdrúxulo é que não falte na extrema-esquerda ocidental quem engula este isco e, mais inexplicável ainda, que não seja acometido por uma inquietação, um desconforto ou uma dúvida quando constata que, ao subscrever esta interpretação do que está a acontecer na Ucrânia, é acompanhado apenas por genuínos e assumidos neo-nazis.