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A investigação do caso Tempestade Perfeita não se limita apenas a suspeitas de corrupção de obras públicas do Ministério da Defesa. Também estão a ser investigados contratos relacionados com a desmatação e a limpeza de terrenos militares e até a aquisição de meios audiovisuais para a produção de um vídeo.
O total dos contratos de limpeza florestal sob suspeita ascendem a cerca 780 mil euros e envolvem várias sociedades. Enquanto dois ‘pequenos’ contratos de cerca de 27 mil euros levaram à imputação de novos crimes de corrupção a Paulo Branco (ex-chefe de divisão de Ensino e Qualificação da Direção-Geral de Recursos da Defesa Nacional) e a Francisco Marques (ex-chefe de divisão de Recursos Humanos da mesma direção-geral).
Em troca desses alegados favorecimentos, Branco e Marques e terão aceite transferências bancárias (através de empresas das respetivas mulheres), um conjunto diversificado de electrodomésticos, mas também telemóveis Samsung topo de gama, um relógio digital Apple e carregadores sem fios. No total, a investigação calcula que os arguidos, que são suspeitos de vários crimes de corrupção passiva e de branqueamento de capitais, terão recebido cerca de 26,3 mil euros.
O Observador contactou os advogados de Paulo Branco e Francisco Marques, assim como um dos empresários suspeitos de corrupção ativa (Paulo Santos). Nenhum dos visados quis prestar declarações.
Empresa de limpeza de terrenos também vende kit sanitário de prevenção Covid-19
Ao contrário do grosso das suspeitas relacionadas com os contratos de obras públicas sob suspeita nesta investigação, avaliados em cerca de 4,2 milhões de euros, o ex-diretor-geral Alberto Coelho está ‘fora deste filme’. Ou seja, as suspeitas relacionadas com a desmatação e a limpeza de terrenos militares relaciona-se com Paulo Branco e Francisco Marques.
Tudo porque, de acordo com os indícios recolhidos pela Polícia Judiciária (PJ), os empresários Filipe Costa e Paulo Clara dos Santos, ligados à limpeza de terrenos florestais, eram conhecidos dos ex-chefes de divisão do Ministério da Defesa. E terá sido com este último que Paulo Branco e Francisco Marques terão feito um alegado acordo de favorecimento na contratação pública em troca de alegadas contrapartidas.
Para o efeito, Paulo Santos abriu uma empresa, a Planeta Limpo, a 12 de junho de 2019, sendo que no ano da sua fundação a Direção-Geral de Recursos da Defesa Nacional (DGRDN) foi o único cliente da sua sociedade e começou logo com um contrato de leão: 172,5 mil euros ganho através de concurso público e celebrado a 11 de outubro de 2019 — cerca de quatro meses após a criação da sociedade.
A investigação da PJ suspeita de alegada viciação do concurso, sendo que o júri foi liderado por Francisco Marques.
A mesma sociedade, gerida apenas por Paulo Santos, vendeu ainda kits sanitários de prevenção da Covid-19 ao Ministério da Defesa por um total de 14.725 euros. Além de atividades ligadas à limpeza florestal e comercialização de madeira, o único objeto social da Planeta Limpo minimamente próximo da área da saúde é a “recolha de resíduos perigosos e não perigosos”, segundo o seu registo comercial.
Entre ajustes diretos e consultas prévias, a Direção-Geral de Recursos da Defesa Nacional (DGRDN) adjudicou à Planeta Limpo entre outubro de 2019 e agosto de 2020 mais 179 mil euros de serviços de limpeza e desmatação de vários terrenos militares ao longo do território nacional, com destaque para as zonas centro e norte.
Também a Agroclean, Sociedade de Reflorestação Lda — uma sociedade de Paulo Santos e do seu sócio Filipe Costa que, tal como a Planeta Limpo, tem sede na freguesia de Seda, concelho de Alter do Chão (Portalegre) — ganhou contratos de prestação de serviços de limpeza florestal que totalizaram cerca de 130 mil euros à Agroclean, entre dezembro de 2020 e abril de 2021.
Um pormenor relevante: a Agroclean foi fundada a 28 de outubro de 2020, apenas dois meses antes do seu primeiro contrato com a DGRDN e esta entidade pública foi a sua única cliente entre 2020 e 2021.
Contrapartida: eletrodomésticos, telemóveis e contratos com as empresas das mulheres
O alegado modus operandi da recolha de contrapartidas de Paulo Branco e Francisco Marques é semelhante ao seguido nos contratos de obras públicas já descritas pelo Observador. Tudo para que, no entendimento da investigação da PJ, os arguidos recebessem quantias monetárias e bens materiais para além do que era permitido pelos seus rendimentos declarados.
Dito de outra forma, a PJ considera que os arguidos procuravam novas fontes de rendimento a par dos seus rendimentos oficiais.
Assim, e de acordo com os indícios recolhidos pela PJ e validados pelo Ministério Público, Paulo Clara Santos e Filipe Costa terão entregue a Paulo Branco dois telemóveis Samsung, modelo S21 Ultra, no valor total de 2.360 euros, dois carregadores sem fios no valor de 129,96 euros e um relógio digital Apple Watch no valor de 335 euros. Já Francisco Marques terá recebido um Samsung S21 Ultra no valor de 1.180 euros.
Outro modus operandi repetido foram os contratos estabelecidos com uma das duas empresas formadas pelas mulheres de Paulo Branco e Francisco Marques. No caso, terá sido escolhida a Preciou Strategy de Helena Marques para emitir duas faturas às sociedades Origem Segura — Organização e Actividades Administrativas Lda e Origem Segura — Mediação de Seguros, Lda, ambas do arguido Filipe Costa.
A empresa de consultadoria de Helena Marques emitiu duas faturas a 30 de outubro de 2020 no valor total de cerca de 12,4 mil euros por alegados serviços prestados às sociedades de Filipe Costa. A PJ e o MP suspeitam de que as faturas são falsas (por não se referirem a serviços efetivamente prestados) e que aquela foi uma forma de entregar alegadas contrapartidas pela adjudicação dos contratos de desmatação.
A tudo isto acresce o facto de Francisco Marques ter sido o presidente do júri do concurso ganho pela Planeta Limpo de Paulo Clara Santos, sócio de Filipe Costa.
A empresa do primo que durou apenas pouco mais de um ano
Pelo meio, aparecem ainda mais duas sociedades. Uma delas chama-se Tarefas Ocasionais Unipessoal Lda, durou pouco mais de um ano (fundada a 19 de junho de 2020 e encerrada a 8 de outubro de 2021) e pertence a Marco Clara Fernandes, primo direito de Paulo Clara dos Santos.
De acordo com os indícios recolhidos pela PJ, Paulo Clara dos Santos e Filipe Costa terão solicitado a Marco Fernandes que constituísse a Tarefas Ocasionais para ganhar ajustes diretos do Ministério da Defesa. Porquê? Porque a Planeta Limpo e a Agroclean já teriam ultrapassado os limites de adjudicações sucessivas aos mesmos adjudicatários.
A Tarefas Ocasionais ganhou dois contratos por consulta prévia durante o mês de agosto de 2020 no valor total de cerca de 139.400 euros. Estavam em causa serviços de desbravamento de terrenos militares em Lisboa e na região sul.
Há outro pormenor que liga Marco Clara Fernandes ao seu primo Paulo Santos (e também a Filipe Costa): a Agroclean teria sede social na morada de Marco Fernandes, em Seda (concelho de Alter do Chão).
Outra forma de contornar os limites legais impostos pelo Código dos Contratos Públicos passou pela sociedade Carlos & Ângelo Almeida Andrade, Lda. Paulo Santos terá simplesmente solicitado aos sócios daquela empresa que assumissem os contratos que teria negociado com Paulo Branco e Francisco Marques.
Segundo a PJ, foi assim que aquela sociedade terá ganho três contratos entre dezembro de 2020 e abril de 2021, no valor total de cerca de 143,3 mil euros.
Terá sido assim também que estas quatro sociedades (Planeta Limpo, Agroclean, Tarefas Ocasionais e Carlos & Ângelo) faturaram à Direção-Geral de Recursos da Defesa Nacional um total de 779.523 euros entre junho de 2019 e abril de 2021 em serviços de limpeza florestal e desmatação. Tudo sob o alegado contexto de um acordo entre Paulo Santos e os ex-dirigentes do Ministério da Defesa.
O vídeo, o congelador, o frigorífico, o aspirador e as quatro máquinas de ar condicionado
Finalmente, há ainda mais dois ajustes diretos sob suspeita no valor total de cerca de 27 mil euros. Mas desta vez os serviços nada têm a ver com limpeza florestal. Estão em causa, sim, serviços para a aquisição a 6 de agosto de 2019 de meios audiovisuais para a realização de dois filmes sobre o Quartel da Calçada da Ajuda, em Lisboa.
E um contrato de prestação de serviços para o concurso de conceção do futuro Campus da Defesa, celebrado a 29 de junho XXXX
Os dois contratos foram adjudicados à empresa Oesteimagem – Produções Audiovisuais, Lda, de Torres Vedras, sendo que a PJ e o MP imputam ao sócio da sociedade (Jorge Jerónimo dos Santos) um alegado acordo com Paulo Branco e Francisco Marques para alegadamente favorecerem a sua empresa.
Segundo os indícios recolhidos pela PJ, terá sido alegadamente a sociedade Oesteimagem quem terá pago o fornecimento de um congelador, um frigorífico e um aspirador da marca AEG em agosto de 2019. Ou seja, no mesmo mês em que foi adjudicado o contrato de aquisição de meios audiovisuais no valor de cerca de 19,8 mil euros.
Mais tarde, em dezembro de 2019, a Oesteimagem terá pago a fatura do fornecimento de quatro máquinas de ar condicionado a Francisco Marques.
Entre os electrodomésticos e o ar condicionado, as alegadas contrapartidas estão avaliadas em cerca de 4.904 euros.
Pelo meio, a sociedade Wisepodium de Paula Branco (mulher de Paulo Branco) terá faturado serviços à Oesteimagem no valor de 5.000 euros — que foram pagos por transferência bancária no dia 4 de novembro de 2021.
A PJ e o MP consideram que tais serviços não foram prestados e que a fatura da Wisepodium era uma forma alegadamente camuflada de o empresário Jorge Jerónimo Santos fazer chegar as alegadas contrapartidas a Paulo Branco.