Um telemóvel, computador ou tablet conectado à internet e uma conta. É o necessário para que um militar da Ucrânia possa ter acesso a uma “visão abrangente do campo de batalha” com dados pormenorizados sobre o armamento e o posicionamento do adversário. Tudo isto é possível graças ao trabalho da organização não governamental Aerorozvidka, que desenvolveu o sistema de comando e controlo designado como Delta. “Permite ver todos os dados do inimigo num ecrã.”
Radares, mensagens de rádio intercetadas, imagens de satélite, vídeos no terreno, sensores e até informações concedidas pelos Estados-membros da NATO. Para compilar este manancial de informação, o Delta utiliza numerosas fontes. Seguidamente, o sistema faz uma interpretação dos dados e transfere-os para um mapa com uma sinalética intuitiva e fácil de entender.
Idealizado em 2014, numa altura em que se desenvolvia um conflito centrado no leste da Ucrânia, o Delta teve de se expandir para cobrir a totalidade do território ucraniano após a invasão pelas tropas de Vladimir Putin. Mas foi apenas a 22 de fevereiro — dois dias antes de a guerra começar — que o sistema ficou completamente operacional. “O universo estava a dizer-nos alguma coisa”, reconheceu ao portal DOU, em maio, Artem Martynenko, um dos responsáveis por desenvolver o programa.
“Um mês e meio antes, os nossos aliados começaram a soar os alarmes sobre uma possível invasão”, conta Artem Martynenko, relatando que nessa altura houve a consciência de que era necessário “reprogramar todo o trabalho”, focar nos problemas que subsistiam e intensificar o ritmo de trabalho. “Antes, estávamos constantemente a ‘apagar fogos’ relacionados com os problemas do sistema. Decidimos depois interpretar a sua resolução como uma prioridade.”
Para isso, foram necessárias “jornadas de trabalho de 12 a 14 horas” — e até ao fim de semana. Passados dez meses, o trabalho parece ter compensado, uma vez que o Delta tornou-se um instrumento vital para as tropas no terreno. E já foi apresentado num encontro sobre novas tecnologias militares da NATO, que teve lugar no estado norte-americano da Virgínia no final de outubro. “Já participámos nas melhores incubadoras de inovação e tecnologia”, começou por enfatizar Artem Martynenko no evento da aliança transatlântica, parecendo depois desvalorizar o feito. Afinal, o objetivo para o qual a plataforma foi criada era “ganhar a guerra contra a Rússia”.
Os dias no início da guerra
Voltando a meados de fevereiro, não foi só a operacionalização do Delta a ser interpretada como um sinal “do universo”. Também foi o facto de, por essa altura, o governo ucraniano ter aprovado uma lei que permitiu que o armazenamento dos dados deste tipo de sistemas não tivesse de depender de servidores — que têm um local próprio onde estão instalados —, mas antes poderem estar integrados numa cloud, numa nuvem estritamente digital.
A relevância desta mudança legislativa, no entender de Artem Martynenko, é óbvia: “O inimigo sabia onde estávamos.” E podia, por conseguinte, destruir os servidores do Delta. “Só nos restava esperar o momento em que um míssil é disparado até ao local” e destruísse esses equipamentos, gracejou. No entanto, a mudança para a cloud não foi imediata. “Exigiu muito esforço, devido aos prazos apertados. Mudamo-nos para o online numa semana, apesar de o sistema nunca ter funcionado assim.”
Isso “mudou o rumo dos acontecimentos”, evitando que os servidores do sistema se tornassem num dos alvos da Rússia. Logo a 24 de fevereiro, dia do início do ataque lançado pela Rússia contra o território ucraniano, o Delta — na altura apenas parcialmente na cloud — começou a ser usado no terreno. Yaroslav Honchar, tenente-coronel do exército ucraniano, foi o responsável pela parte mais prática, nomeadamente assegurar a coordenação entre equipas de informáticos e militares.
“Montei uma equipa e tentei explicar o que os seus membros tinham de fazer”, recordou o tenente-coronel em declarações ao portal DOM, lembrando que as suas ordens eram recebidas com algum ceticismo por parte dos informáticos. Não obstante, esta “ferramenta incrível que todo o mundo civilizado sonhava ter” precisava de “retoques”, por estar numa “posição letárgica” focada na região de Donbass. “De forma voluntária e também à força, tive de persuadir parte da equipa a abandonar o desenvolvimento do Delta e partir para o trabalho operacional”, salientou Yaroslav Honchar, que aludiu à necessidade de “introduzir” um maior número de informações no sistema.
Para tal, como recordou Honchar, foi fundamental contar com o apoio da população civil. Numa iniciativa do próprio militar, foi criada uma espécie de chat — em que todos os ucranianos podiam denunciar o local onde tinham visto tropas ou armamento da Rússia (se bem que isso não garantisse acesso a outras funcionalidades do Delta). “Tudo isto teve um bom resultado”, destacou o tenente-coronel.
O “bom resultado” que a Rússia quer anular
No meio disto tudo, havia um adversário do outro lado que queria liquidar o bom resultado deste sistema, ainda que isso se apresentasse como um desafio. O motivo? Ao longo dos meses em que o conflito se ia desenvolvendo, os servidores do Delta foram transferidos integralmente para a cloud, um avanço que, nota a Forbes ucraniana, nem o exército norte-americano, considerado o mais avançado do mundo, está prestes a atingir, estando a solução ainda numa fase experimental. Aliás, a maior parte dos países da NATO ainda nem sequer começou esta transição.
Ora, com os serviços na cloud, a Rússia necessita de recorrer a ciberataques precisos para tentar derrubar o sistema. Do outro lado, encontrava naturalmente resistência. Embora em fevereiro o tenente-coronel ucraniano tenha insistido na urgência do Delta estar operacional em vez de estar ser constantemente aprimorado, o facto é que, ao longo dos meses, a empresa foi aumentando a segurança da plataforma.
“Apenas durante este ano”, já foram realizadas mais de “30 atualizações”, com vista a que o Delta “consiga atender melhor às condições no terreno e à necessidade de dados atualizados e verificados do inimigo”. Simultaneamente, estas melhorias traduzem-se “no domínio da segurança”.
Um dos objetivos das atualizações de segurança passou por tentar esconder o Delta nas pesquisas de motores de busca, como o Google ou o Bing, para minimizar a possibilidade de um possível ciberataque. Os utilizadores do sistema precisam também de passar por um exigente processo — controlado pelo Ministério da Defesa ucraniano — para comprovar a sua identidade. Adicionalmente, a plataforma está constantemente a ser monitorizada por especialistas da área da cibersegurança — 24 horas por dia, sete dias por semana.
Todos estes cuidados não impediram, ainda assim, que o Delta tivesse sido alvo de um ciberataque no início de novembro lançado pela Rússia, que conseguiu aceder a duas contas, sendo que uma dessas intrusões aconteceu por alegado descuido de um dos utilizadores. Moscovo preferiu não manter o secretismo e um dos hackers responsáveis pelo ataque, que se autointitula Joker, conseguiu invadir a conta pessoal de Instagram do comandante supremo das Forças Ucranianas, Valery Zaluzhny, para anunciar o feito.
Assim, os hackers russos publicaram uma fotografia de um soldado com um disfarce da personagem Joker com a seguinte legenda: “Sim, conseguimos entrar na Delta e tivemos acesso a todos os planos. Vou entregá-los às pessoas certas.”
Os meios de comunicação social russos publicaram e celebraram o êxito da operação cibernética. O próprio hacker chegou a prestar declarações à agência de notícias estatal russa, RIA: “[Acedi] a absolutamente tudo. Todos os dados que o sistema possui sobre as suas tropas e as tropas russas.”, disse o pirata informático. “Não foi fácil”, prosseguiu ‘Joker’, ressalvando, porém, que não “há sistemas absolutamente seguros”. “Todo o sistema pode ser hackeado se houver habilidade, tempo e criatividade na abordagem. Mas o mais importante é acreditar que é possível.”
O aparente êxito deste ataque informático contrasta com o tom do comunicado do Ministério da Defesa ucraniano, que reagiu dias depois ao sucedido. Confirmando que existiram apenas dois acessos indevidos, o governo ucraniano frisou, no entanto, que se tratava principalmente de uma “operação com efeitos psicológicos subversivos de inimigo”, que estava a “difundir desinformação sobre um suposto ataque”.
“Para impedir a disseminação de desinformação inimiga, o Ministério da Defesa da Ucrânia informa que o sistema [Delta] funciona de forma estável. Os dados estão protegidos de forma fidedigna e não houve qualquer invasão de larga escala”, acrescentou ainda o governo de Kiev, assegurando que tem à sua disposição os “melhores técnicos e especialistas de segurança cibernética, que monitorizam a atividade inimiga em tempo real”.
Sublinhando que o sistema Delta e as ferramentas usadas por “quem tenta proteger a Ucrânia é um alvo estratégico para o inimigo”, o Ministério da Defesa da Ucrânia atirou que, no caso do ataque ao sistema de comando e controlo, tudo não passou de um “fracasso”.
Em declarações à Forbes ucraniana, Serhiy Galchynskyi, outros dos principais responsáveis por desenvolver o programa Delta, deu mais pormenores sobre o ciberataque. O hacker realmente conseguiu aceder a algumas informações, mas não descodificou a arquitetura do sistema e muito menos logrou aceder a todos os dados nele inseridos. “É como roubar um cartão de crédito — o criminoso tem acesso aos fundos da conta, mas não a todo o sistema bancário”, explica o especialista informático, que também duvida de que, caso houvesse um acesso total ao sistema, a Rússia se vangloriasse disso em público. A seu ver, faria exatamente o contrário: usaria as informações a seu proveito e apanharia desprevenidas as autoridades ucranianas.
Numa reação menos politicamente correta, Masi Nayem, um deputado ucraniano-afegão que esteve na linha da frente (tendo ficado gravemente ferido), escreveu um artigo de opinião no jornal Ukrainska Pravda em que salientava que os russos sentiam “inveja” por aquilo que o Delta é capaz de fazer. “Ainda usam mapas de papel e, avaliando as suas capacidades intelectuais e de mobilização, jamais terão alguma coisa parecida”, disparou. Isto apesar de, na realidade, a Rússia também usar um sistema idêntico (ainda que com menos funcionalidades): o Akatsia-M.
“O Delta permite-nos travar uma guerra centrada na internet. É um conceito que aumenta o poder de combate por meio da formação de uma única rede de informações”, escreveu Masi Nayem, que vaticinou “ser muito difícil vencer uma guerra sem meios destes”. Deste modo, é natural que “seja um alvo estratégico para o inimigo”: “Isto ficou provado com o ataque”, defendeu Nayem. “A melhor resposta para os propagandistas russos será se o número de utilizadores do Delta crescer — não apenas no exército, mas também entre todas as forças de segurança e defesa da Ucrânia”, concluiu o deputado.
O timing do ataque e a colaboração com a NATO
Os engenheiros informáticos responsáveis pelo Delta viajaram em outubro para um evento da NATO nos Estados Unidos, o que expandiu além-fronteiras a visibilidade do projeto. Poucos dias depois, no início de novembro, a plataforma é alvo de um ataque russo. O Ministério da Defesa ucraniano acredita que este timing “não foi por acaso”. “A versão recentemente atualizada deste sistema foi apresentada com sucesso na conferência anual da NATO Tide Spring com especialistas de todo o mundo. Logo em seguida, o inimigo, com o objetivo de desacreditar [o Delta], passou a atacar o sistema e a divulgar informações sobre a suposta invasão através de propaganda.”
Masi Nayem também corrobora esta versão: “Recentemente, os especialistas que trabalham e desenvolvem o Delta apresentaram-no juntamente com o Ministério para a Transformação Digital numa conferência de grande prestígio na NATO. Isso causou alvoroço entre os russos”.
Apesar de ter sido criado por informáticos da Ucrânia, o Delta contou sempre com o apoio incondicional da NATO. Aliás, o sistema está disponível não só em ucraniano como em inglês, de modo a integrar com a maior celeridade possível os dados fornecidos pelos aliados da aliança. “A plataforma Delta e os seus serviços são construídos de acordo com os padrões NATO, para que o sistema seja compatível com os programas usados pelos exércitos dos Estados-membros”.
“O nosso ponto de referência é o Ocidente, os países da NATO”, destaca a ONG, lembrando que já colaborou com países da aliança que se disponibilizaram para ajudar a melhorar o sistema, tais como os Estados Unidos, o Canadá ou o Reino Unido. “Há outros países que querem ajudar. Com todos eles, há diferentes vetores que podemos debater.”
No evento Tide Spring da NATO, em que especialistas da área da tecnologia militar se reúnem para partilhar informações sobre a transformação digital no campo de batalha, a Aerorozvidka foi convidada para mostrar os progressos. E o encontro também contou com um discurso do vice-primeiro-ministro e ministro para a Transformação Digital da Ucrânia, Mykhailo Fedorov, isto apesar de o país não ser membro da organização transatlântica.
Great honour to have ???????? Vice PM & Minister of #DigitalTransformation @FedorovMykhailo @ #TideSprint:
“In partnership with #NATO countries, especially in terms of advancing tech capabilities, we will achieve our well-deserved victory faster."
Slava Ukraini!https://t.co/owCEewU2ZU pic.twitter.com/piq0eVrvJH— NATO ACT (@NATO_ACT) October 26, 2022
“O Delta é um excelente exemplo de como a Ucrânia e a NATO podem cooperar, desenvolverem-se em conjunto e obterem benefícios mútuos”, afirmou Mykhailo Fedorov, que, perante a audiência com membros dos 30 Estados-membros da aliança transatlântica, enfatizou que a Ucrânia “almeja tornar-se parte integral da organização”. “O nosso exército está já a implementar os últimos padrões NATO.”
“A Ucrânia é o melhor campo de treino porque temos a oportunidade de testar todas as hipóteses na frente de guerra e introduzir mudanças revolucionárias no que diz respeito à tecnologia militar e de que maneira é que se desenrola uma guerra moderna”, vincou o ministro, que disse acreditar que, “com a parceria com a NATO”, Kiev “vai obter uma bem-merecida e rápida vitória”.
Kiev: o primeiro teste a sério da Delta (e também Kherson)
Para uma vitória total da Ucrânia no futuro, foi preciso primeiro resistir à invasão da Rússia — iniciada a 24 de fevereiro —, isto num momento em que os militares e engenheiros informáticos da Ucrânia colocaram à prova a eficácia do programa. Para Yaroslav Honchar, o tenente-coronel responsável pela coordenação das equipas, o Delta foi mesmo “essencial” para garantir que Kiev — a capital e o principal símbolo de resistência — não caísse nos primeiros dias da invasão russa. O deputado Masi Nayem também concorda: “A eficácia ficou comprovada pelas operações em Kiev e em Kharkiv.”
Na sua conta pessoal do Reddit, a Aerorozvidka deu mais detalhes sobre como é que os primeiros dias da invasão correram. “Os soldados com acesso ao Delta podiam ver no seu tablet qualquer informação de que eles precisavam sobre o inimigo para lhe infligir danos, para trabalhar sobre o seu plano de operação ou para partilhá-lo na nuvem com outras unidades”, detalha a Aerorozvidka, acrescentando que muitos militares ucranianos “estão gratos” à empresa, porque existia uma monitorização constante do “posicionamento do inimigo” — o que lhes permitia “destruir o seu equipamento e manter a defesa, porque entendiam com clareza a situação em redor”.
Yaroslav Honchar sustentou que “grande parte do sucesso militar na defesa de Kiev se deve ao Delta”. “Enquanto os russos conduziam as suas colunas [militares] rumo à capital, ao mesmo tempo que tentavam marcar posições, nós agimos muito mais rápido do que eles pelo facto de, sem esperar por ordens, estarmos bem coordenados seguindo as informações do sistema”, explicou.
“É uma grande vantagem na guerra moderna”, reforçou, por seu turno, a ONG ucraniana, indicando que foram abatidos aproximadamente 1.500 alvos russos nos primeiros dias de guerra. “O mais importante é que o Delta coloca a vitória ucraniana mais próxima e de acordo com os modelos mais modernos. A defesa com êxito da capital, que o Delta providenciou, é um excelente exemplo disso.”
A atividade e a importância do Delta não se centraram no primeiros meses da guerra. Na reconquista da cidade de Kherson, nas mãos dos russos desde março, o sistema também desempenhou um papel fundamental. Num comunicado enviado ao New York Times, Inna Honchar, uma das responsáveis pela ONG ucraniana, assinalou que as tropas sob comando de Kiev conseguiram identificar com rapidez as cadeias de abastecimento russas no sul da Ucrânia, que depois foram convertidas em alvos. “Armazéns e pontos de controlo russos ficaram danificados as provisões tornaram-se reduzidas. As pontes também foram pontos fulcrais.”
Inteligência artificial e drones? O futuro do Delta
O futuro deste sofisticado sistema não se ficará por aqui. Em maio, Yaroslav Honchar dizia que os avanços do Delta estavam a surgir como uma “avalanche” — e isso continua a acontecer atualmente. O próximo passo poderá ser a integração de inteligência artificial no sistema, área na qual já existem “bons resultados”.
A Aerorozvidka explica que um dos projetos em desenvolvimento decorre da necessidade, ou seja, na sequência dos ataques com drones iranianos lançados pela Rússia. “Uma equipa está dedicada a aplicar a inteligência artificial num mecanismo que permita descodificar a origem dos voos de drones.”
Atualmente, o método usado é parcialmente manual. Através das câmaras de vigilância, os programadores recebem uma notificação de que um drone caiu num determinado local. Depois, precisam de assistir ao vídeo e registar a sua rota e introduzir manualmente os dados no sistema. “É uma missão árdua que leva muito tempo”, reconhece fonte da ONG: “Dependendo do drone e onde ele caiu, o vídeo pode durar 20 minutos ou três horas.”
Assim sendo, o objetivo passa por ter uma “máquina a fazer essa tarefa”. Ou seja, assim que um drone cair, a ONG pretende que o Delta consiga apurar imediatamente a sua origem, rota e localização, introduzindo essas informações automaticamente no sistema. “Os resultados não estão a ser maus, até estão a funcionar”, enfatizou a Aerorozvidka, ressalvando, contudo, que são necessárias melhorias neste procedimento.
A equipa promete não baixar os braços e continuar a ajudar as forças ucranianas no terreno, de modo a levá-las a uma vitória. “Combinado com armamento moderno de longo alcance e de alta precisão, o Delta torna-se um programa que ameaça a vida dos russos na Ucrânia”, concluiu a ONG.