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HUGO AMARAL/OBSERVADOR

HUGO AMARAL/OBSERVADOR

Demasiado velhos para serem  gays

Alguns casaram com o género oposto, tiveram filhos, mas nunca assumiram a sua orientação. A educação católica mói, os lares são conservadores. Lisboa não quer os idosos homossexuais no armário.

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O método tinha como objetivo queimar pela raiz um instinto proibido: a homossexualidade. António Serzedelo, hoje com 72 anos e na altura com perto de 30, submeteu-se ao tratamento com choques elétricos. Naquele momento até tinha uma namorada e decidiu contar-lhe que “também” gostava de rapazes. Ela disse-lhe: “Vai-te tratar” e ele, obediente, assim fez. Aconselhou-se com um médico em Lisboa e juntos caminharam para a cura.

António entrou numa sala, sentou-se e ligaram-lhe “aqueles sensores todos” ao corpo. À sua frente tinha um grande ecrã. Primeiro, apareciam imagens de homens envolvidos com mulheres. De seguida, apareciam imagens de homens envolvidos com outros homens. “Quando apareciam imagens de homens com mulheres, os choques eram muito suaves e agradáveis, eram massagens. Quando apareciam as imagens de homens com homens, os choques eram muito fortes, muito desagradáveis”. O tratamento não resultou.

Ele é idoso, ele é homossexual, ele não teve filhos e já poucos amigos vivos lhe restam. Familiares, contam-se pelos dedos. Mas ele é também o fundador da Opus Gay, uma associação com muitos membros adultos e idosos LGBT, que lhe ocupa parte do tempo e que lhe trouxe muitos contactos. Por isso, apesar de tudo, até tem uma vida ativa. Não é o caso dos mais de 100 idosos homossexuais que se confessaram “isolados e sozinhos” num questionário anónimo do projeto “Envelhecer fora do armário”, apoiado pela Câmara Municipal de Lisboa.

antónio serezelo, opus gay,

António Serzedelo fotografado em sua casa

Uma visita à Casa do Artista, uns saraus de poesia e uma exposição de pintura. A lista de atividades do projeto contou com alguns eventos simbólicos, mas foi a linha telefónica anónima que teve a maior adesão do público-alvo. Muitos ligaram só para desabafar, outros queriam a opinião de quem estava do outro lado. Alguns aceitaram ir ainda mais longe e frequentaram as consultas de psicoterapia gratuitas.

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O medo do VIH

Afinal, de que se queixam estes idosos? António Serzedelo esteve sempre no outro lado do telemóvel e ouviu todo o tipo de histórias. “Havia um senhor que se queixava muito que estava muito mal, a ver cada vez pior, quase a cegar de um olho. Depois percebemos que era resultado de uma sífilis. Mas ele não ia ao médico, porque não queria contar a parte das relações sexuais com homens.” A cegueira pode ser resultado de uma sífilis já em estado terciário, quando a pessoa não recebeu qualquer tratamento. Em alguns casos, a cegueira surge já 20 anos depois da infeção.

As doenças sexualmente transmissíveis são um dos receios dos hoje idosos homossexuais, que foram um dia jovens homossexuais no auge do VIH. “Na comunidade há muitos problemas de doenças virais destratadas ou ignoradas, porque nunca fizeram o rastreio e têm medo de o fazer”, refere o presidente da Opus Gay.

Depois, há outros que conhecem a sua doença, mas que a omitem. “Com os medicamentos retrovirais, o prolongamento da vida começou a ser uma realidade. E eles escondem, porque é mais um estigma”, explica José António Teixeira, psicoterapeuta especialista em Geriatria, que recebeu os idosos do projeto. Esses mesmos idosos que escondem a sua homossexualidade dos médicos, dos amigos e… da mulher.

"Muitos idosos gays casaram com mulheres e hoje têm filhos e netos. Na altura não tiveram alternativa. E têm pavor que os filhos ou netos venham a saber e lhes fechem a porta de casa"
António Serzedelo, coordenador de "Envelhecer Fora do Armário"

Os amantes pagos e o Professor Bambo

Alguns foram casados, tiveram filhos, hoje têm netos, e todos juntos apareceram em fotografias com uma família feliz durante muitos anos. Até um dia. “Dos casos que acompanho diariamente, noto que, de forma geral, entre os 50 e os 70 anos o homem homossexual deixa de suportar o estar casado com uma mulher e separa-se. Já não consegue mentir. A libido diminui e eles deixam de procurar sexualmente as companheiras, o que aumenta a tensão. No fundo elas sempre souberam, mesmo que isso não tenha sido declarado”, explica o psicoterapeuta de orientação psicanalítica.

Depois, a saída dos filhos de casa ajuda a clarificar tudo. “É a chamada Síndrome do Ninho Vazio. Acontece quando os filhos vão viver as suas vidas fora daquele lar. De repente, marido e mulher ficam sozinhos e encontram-se como dois estranhos“, esclarece.

Mas até esse momento a vida foi-se aguentando mais ou menos bem. Assim aconteceu com alguns dos casos que desabafaram para o outro lado do telefone, conta António. “Alguns habituaram-se a ter amantes ou namorados pagos. Vidas paralelas. Mas hoje os amantes também já têm idade e os idosos já não têm dinheiro para pagar isso…

A solidão pode levar ao desespero, e o desespero pode levar à perda de discernimento. O lado anónimo das chamadas telefónicas, sem uma única questão sobre a identidade de quem está a ligar, permite a partilha sem filtros. Quase sempre homens, apenas duas ou três mulheres.

“Um senhor de 73 anos contou-me que pediu emprestado 800 euros para ir ao Professor Bambo, porque ele lhe tinha prometido que lhe ia arranjar um namorado. Claro que não arranjou nada! E o homem tinha pedido esse dinheiro emprestado porque só recebe 500 euros de reforma. Ainda ontem voltou a ligar a dizer que se queria suicidar. A solidão é insuportável.

A organização do “Envelhecer Fora do Armário” elaborou um questionário anónimo para apurar a situação dos idosos homossexuais do concelho de Lisboa. A nível nacional não há dados.

Não é o caso do Reino Unido. Segundo um estudo da YouGov e da Stonewall, em 2011 havia cerca de um milhão de lésbicas, gays e bissexuais com mais de 55 anos. As conclusões são estas: em comparação com os idosos heterossexuais, os idosos homossexuais têm mais probabilidade de serem diagnosticados com depressão e ansiedade, de não verem a família biológica com regularidade e de viverem sozinhos.

Muitos dos idosos LGB estão solteiros e não têm filhos e metade deles admitiram sentir-se “desconfortáveis” perante a ideia de contar a sua orientação sexual ao médico, aos funcionários de um lar ou a um cuidador.

“O idoso volta à infância e ao medo de não ser amado”

Com a idade, muitos gays perdem a exuberância de outros tempos em nome do medo da rejeição. Primeiro, é preciso identificar o “retorno ao medo da infância”, comum a muitos idosos, independentemente da orientação sexual.

“O idoso recupera muitas características da primeira infância, que se verifica até aos 3 anos: os complexos da rejeição, do desamor e do abandono. A solidão leva ao medo da perda do amor, que a criança tem. A sociedade assume uma identidade maternal com os idosos, cuida deles, mas impõe também as regras, como se faz com as crianças. E alguns deles não se integram nas normas e nas referências dessa sociedade”, explica José António Teixeira, que tem no currículo uma especialização em Geriatria.

"A sociedade está programada para os jovens. E os gays têm muito o culto da beleza e da alegria. Mas os velhos também são capazes de ter essa alegria!"
António Serzedelo, presidente da Opus Gay

O pânico da rejeição dos outros faz com que alguns idosos se retraiam. “No caso dos idosos que acompanhei, esse medo de não ser amado leva ao medo de terem determinados comportamentos que sempre tiveram e que lhes davam prazer, como pintar as unhas, pintar o cabelo ou vestir roupas com cores garridas. Põem de parte hábitos que faziam parte da rotina, como frequentar bares gay ou saunas, que ainda são espaços para conhecer uma companhia”, identifica o psicoterapeuta. “Como não saem, não têm vida social, logo não conhecem amigos ou potenciais companheiros”, remata.

A “perda da juventude” é um dos fatores que pode atirar os idosos homossexuais para a solidão. Segundo um estudo publicado na Social Science & Medicine, há uma ligação entre a vivência da homossexualidade na terceira idade e a depressão. Uma das razões está na “acentuada valorização da juventude, do vigor e do aspeto físico na comunidade gay”, que leva muitos gays a viverem uma espécie de “envelhecimento acelerado”, lê-se no relatório.

“É pecado ser-se velho e querer ter-se vida sexual”

É de João Afonso a responsabilidade final da aprovação de financiamento a este projeto. O vereador com o pelouro de Direitos Sociais da Câmara Municipal de Lisboa (CML) defende o objetivo do projeto, embora admita que ele não serve toda a população.

26%

No concelho de Lisboa há cerca de 180 mil idosos, o que representa 26% da população.

Câmara Municipal de Lisboa

“Às vezes é tão importante chegar a uma pessoa como chegar a 1000. A medição da importância de um projeto não é feita pela medição da sua relevância estatística, mas sim pela qualidade de vida que vai dar ao grupo a que se dirige”, considera o responsável. Ainda assim, há que dizer que os idosos correspondem já a uma fatia considerável do bolo do concelho.

Tal como outros projetos apoiados pela CML, o “Envelhecer Fora do Armário” durou um ano. Terminou este verão. O vereador reconhece que “falta averiguar mais dados” para atacar a discriminação contra este grupo, mas já identificou um problema: “Os serviços públicos são conservadores em relação à sexualidade dos idosos”.

João Afonso, vereador Direitos Sociais CML

João Afonso, vereador com o pelouro de Direitos Sociais da Câmara Municipal de Lisboa (Filipe Amorim/Global Imagens)

Parte desta conclusão baseia-se nos depoimentos recolhidos na Santa Casa da Misericórdia, que é o maior parceiro da autarquia na rede social. Tanto João Afonso como António Serzedelo conversaram com funcionários e técnicos da rede que admitiram “atitudes conservadoras”, não só naquela organização, mas também noutras por onde passaram.

“Uma enfermeira da Santa Casa contou-me: ‘Aqui ainda há cuidadores que, se houver uma ereção de um idoso, mandam-lhe com um balde de água fria’“, revela António Serzedelo. “As pessoas já acham horrível os idosos terem relações sexuais, então se for entre idosos gays ainda acham mais terrível. Vamos perdendo esse direito. Somos tarados sexuais, umas bichas tontas. É pecado ser-se velho e querer ter-se vida sexual”.

João Afonso garante que, na Santa Casa da Misericórdia, não há “formalmente” barreiras à entrada no lar de um casal homossexual. “Em termos de regulamento não há qualquer regra de proibição, mas sabe-se que há essa discriminação. A política é de abertura mas depois há muitos constrangimentos”, avança o vereador, socorrendo-se de conversas que teve com técnicos dos serviços.

Então, como é que isto se resolve? “Há várias questões aqui. Há técnicos que dizem que ‘não querem cá dessas coisas’, mas também há utentes que não assumem a sua orientação com receio da reação dos técnicos. É um ciclo. Depois também há outros idosos que reagem negativamente se virem manifestações desses casais”, aponta. Mas o problema principal é que não há por onde começar a atuar: “Há consciência disto tudo, mas não há queixas formais. É uma realidade silenciosa”.

"Todos nós temos uma ideia de família padrão, com um casal de idoso e idosa, neste caso. E os serviços públicos funcionam com base nessa família padrão, que é uma coisa que não existe"
João Afonso, vereador de Direitos Sociais da CML

É para resolver este problema que surgiu uma ideia: a construção de um lar inclusivo. A ideia é de António Serzedelo. Este lar receberia “homens, mulheres, cidadãos com HIV, várias orientações sexuais e todas as pessoas que de alguma forma sejam ostracizadas”, explica.

João Afonso recebeu a proposta e promete analisá-la, mas com cuidado: “Pode ser necessário criar um espaço de proteção, mas o objetivo é que todos os lares sejam inclusivos. A solução está na mudança de mentalidades das organizações e da comunidade em geral. Se há quartos para casais heterossexuais nos lares, então um casal de dois homens também deve ter direito ao seu quarto.

António Serzedelo não se pode queixar. É homossexual, dá a cara, frequenta várias aulas da Universidade Sénior, tem amigos que preenchem uma agenda social e é presença assídua em eventos públicos, inclusive da Câmara de Lisboa. O idoso gay António não tem um companheiro neste momento, mas acredita que ainda há de encontrar. Na verdade, já teve vários, “amores e desgostos, mas enfim, tudo faz parte”.

António pode dar-se ao luxo de se assumir mas, aos 72 anos, garante que faz parte da verdadeira minoria: “Para sair do armário é preciso ter estatuto social e económico, senão é muito complicado. Se um doutor ou um banqueiro se assumir, é homossexual. Mas se for um pedreiro, é paneleiro. Provavelmente vai perder o emprego e vai ser gozado o resto da vida. É preciso muita coragem. E, nós idosos, pensamos muito no fim da vida… As conquistas de direitos já chegaram tarde para nós”.

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