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Os bispos católicos portugueses passaram todo o dia desta sexta-feira reunidos em Fátima numa assembleia plenária extraordinária com um único ponto na agenda: analisar o relatório da comissão independente que ao longo do último ano esteve a investigar o fenómeno dos abusos sexuais de crianças na Igreja Católica, e que estimou um número de 4.815 vítimas potenciais a partir de 512 testemunhos válidos recebidos. Os elementos da comissão, liderada por Pedro Strecht, também estiveram em Fátima da parte da manhã para entregar aos bispos a lista dos nomes dos alegados abusadores que foram identificados nos testemunhos.
Da reunião de sete horas dos bispos portugueses resultaram, para já, cinco medidas concretas que deverão ser implementadas nos próximos meses — mas também foram apontadas as limitações do relatório que poderão, em larga medida, tornar inconsequente o trabalho da comissão independente, já que a maioria dos nomes incluídos na lista de alegados abusadores poderá ser impossível de investigar.
Primeira medida: uma nova comissão para receber testemunhos de vítimas
Era uma das principais recomendações da comissão independente: que o trabalho dos elementos da comissão não ficasse por aqui e que a Igreja pudesse criar um novo grupo de trabalho, dentro das suas estruturas, que continuasse a receber denúncias e a tratar não só novos casos como também os testemunhos das vítimas que, depois deste relatório, possam sentir a vontade de contar as suas histórias.
A Igreja vai seguir a recomendação. “Queremos também deixar uma palavra de coragem a todas as vítimas que ainda guardam a dor no íntimo do seu coração para que possam ‘dar voz ao silêncio’. Estamos disponíveis para acolher a vossa escuta através de um grupo específico, que será articulado com a Equipa de Coordenação Nacional das Comissões Diocesanas de Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis”, disse o porta-voz da CEP, padre Manuel Barbosa, na conferência de imprensa que se seguiu à reunião.
D. José Ornelas, o presidente da CEP, garantiu que essa comissão vai ter um caráter de “independência“, comunicando diretamente com as comissões diocesanas existentes. Ainda não se sabe quem vai fazer parte dessa nova comissão, mas Ornelas garantiu que a ideia é usar o mesmo método seguido na criação da comissão independente: a escolha de um nome para liderar o organismo, que depois terá a missão de escolher os elementos do grupo.
Sobre esta nova comissão, deverá haver mais detalhes na próxima assembleia plenária da CEP, em abril deste ano.
Segunda medida: um memorial de homenagem às vítimas
A comissão independente também tinha recomendado com veemência à Igreja Católica que materializasse o perdão às vítimas, tanto numa celebração pública como num memorial físico. Aliás, a comissão independente até já tinha contactado o arquiteto Siza Vieira para realizar um memorial de homenagem às vítimas, mas a CEP ainda não se tinha pronunciado sobre o assunto.
Arquiteto Siza Vieira vai desenhar memorial de homenagem às vítimas de abusos sexuais na Igreja
Agora, a CEP confirma que vai dar resposta a essa recomendação. “É com dor que, novamente, pedimos perdão a todas as vítimas de abusos sexuais no seio da Igreja Católica em Portugal. Este pedido terá um gesto público no próximo mês de abril, aqui em Fátima, no decorrer da próxima Assembleia Plenária”, disse o porta-voz da Igreja, sem especificar em que é que vai consistir esse gesto público.
“Reafirmamos também o nosso firme propósito de tudo fazer para que os abusos não se voltem a repetir. Como sinal visível deste compromisso, será realizado um memorial no decorrer da Jornada Mundial da Juventude e perpetuado, posteriormente, num espaço exterior da Conferência Episcopal Portuguesa”, acrescentou Manuel Barbosa. A ideia do memorial de Siza Vieira poderá ser uma hipótese, mas nada está fechado para já.
“É preciso mudar uma cultura na Igreja e na sociedade a respeito de todos estes processos“, disse depois o presidente da CEP, D. José Ornelas, salientando que a Jornada Mundial da Juventude é um momento em que será indispensável haver uma “chamada de atenção” sobre o assunto.
Terceira medida: o acompanhamento psicológico às vítimas
Esta é, talvez, a mais complexa das medidas que a Igreja pretende tomar. “As feridas infligidas às vítimas são irreparáveis. Garantimos que, se o desejarem, terão o nosso acolhimento e disponibilizaremos o devido acompanhamento espiritual, psicológico e psiquiátrico”, disse o porta-voz da Igreja.
“As estruturas já existentes, criadas em cada diocese e a nível nacional, serão o local para acolher e acompanhar, e as dioceses assumem o firme compromisso de dar todas as ajudas necessárias para que tal aconteça. Nunca enjeitaremos as nossas responsabilidades e comprometemo-nos ainda a encetar contactos com as instituições que já estão no terreno, para sermos parte da resolução desta problemática que é transversal a toda a sociedade“, acrescentou.
Ao Observador, a advogada Paula Margarido, uma das principais responsáveis da equipa de coordenação nacional das comissões diocesanas de proteção de menores, já tinha revelado que a Igreja pretendia criar uma bolsa de psicólogos e psiquiatras para apoiar as vítimas gratuitamente.
“Manifestamos a ‘tolerância zero’ para com todos os abusadores e para com aqueles que, de alguma forma, ocultaram os abusos praticados dentro da Igreja Católica e reconhecemos a necessidade de estruturas concretas para o seu acompanhamento espiritual, pastoral e terapêutico”, disse agora o padre Manuel Barbosa.
Abusos. Igreja vai criar bolsa de psicólogos e psiquiatras para apoiar vítimas gratuitamente
Mas esta medida está longe de ser consensual. O psiquiatra Daniel Sampaio, um dos elementos da comissão independente, já tinha dito, em entrevista à CNN, que uma resposta em saúde mental dada a partir da Igreja não seria a melhor resposta. “A história demonstra que quando os psicólogos e os psiquiatras pertencem às instituições, as pessoas têm muitas dificuldades em falar dos casos dessas instituições“, disse.
Confrontado com estas declarações, D. José Ornelas esclareceu que a ideia da Igreja é que nenhuma vítima fique sem apoio psicológico “por falta de meios”. Para isso, a Igreja vai guiar-se pelo “princípio absoluto” de terá de “assegurar o apoio às vítimas, no seu desejo”, afirmou o bispo. “Não é dizer ‘tens aqui o teu psicólogo’.”
Ornelas disse ainda que a Igreja pretende “estabelecer parcerias” com quem possa prestar este serviço. “Temos instituições que já se manifestaram disponíveis para isso”, afirmou ainda, lembrando que a própria comissão independente já tinha referido a importância do SNS como principal resposta às vítimas.
Sublinhando que as entidades mais adequadas para ajudar cada vítima serão as dioceses, Ornelas salientou que “as pessoas são livres” de buscar ajuda noutros lugares. “O que interessa é que toda a gente encontre um interlocutor na Igreja“, sublinhou. “Isso não quer dizer que vamos indicar a quem é que a pessoa deve ir. O que queremos é que as pessoas superem os dramas.”
D. José Ornelas salientou também a necessidade de prestar apoio psicológico aos abusadores, que classificou como “bombas vagantes”, ou seja, pessoas que podem voltar a reincidir nos seus crimes.
Quarta medida: comissões diocesanas passam a ser compostas só por leigos
Num reconhecimento de que a imagem dos membros do clero está profundamente desgastada com a crise dos abusos de crianças, a CEP anunciou também que as comissões diocesanas de proteção de menores vão passar a ser compostas apenas por leigos — ou seja, pessoas que, mesmo ligadas à Igreja, não pertençam ao clero.
“Reconhecemos o trabalho imprescindível das Comissões Diocesanas e da Equipa de Coordenação Nacional e propomos que sejam constituídas apenas por leigos competentes nas mais diversas áreas de atuação, podendo ter um assistente eclesiástico. São valiosas estruturas da Igreja em Portugal, agora mais aptas a responder à problemática dos abusos de menores, nomeadamente no que respeita à prevenção, formação e acompanhamento, contribuindo assim para um ambiente seguro nos espaços eclesiais”, disse o porta-voz dos bispos.
Na conferência de imprensa, D. José Ornelas salientou várias vezes que as comissões diocesanas tiveram um papel fundamental na resposta à crise dos abusos — apesar de, como a comissão independente salientou também várias vezes, terem recebido um número residual de denúncias em comparação com os casos que chegaram à equipa de Pedro Strecht. Estas comissões têm também um papel importante no trabalho de prevenção dos abusos e de formação dos sacerdotes.
Quinta medida: revisão das diretrizes internas de proteção de menores
A Igreja Católica em Portugal tem um conjunto de diretrizes internas sobre o modo como os casos de abusos de crianças devem ser tratados por parte da hierarquia. A primeira versão remonta a 2012, quando o Papa Bento XVI determinou que todas as conferências episcopais do mundo teriam de criar documentos dessa natureza, na sequência do grande escândalo de abusos na Irlanda.
Em 2020, essas diretrizes foram atualizadas, na sequência das alterações introduzidas pelo Vaticano após a cimeira de fevereiro de 2019, convocada pelo Papa Francisco para discutir o problema com líderes eclesiásticos de todo o mundo. Como o Observador explicava na altura, as indicações do Vaticano eram claras: ir à polícia sempre, investigar todas as denúncias (mesmo as anónimas e as mais duvidosas), embora o segredo de confissão se mantivesse inviolável.
Agora, na sequência do relatório da comissão independente, os bispos prometem voltar a mexer nas diretrizes.
“Entre outras resoluções, procederemos à revisão das Diretrizes da Conferência Episcopal e dos planos de formação dos seminários e de outras instituições, bem como a conveniente preparação de todos os agentes pastorais”, disse o porta-voz dos bispos.
“A todos os fiéis e sacerdotes que servem a Igreja e que neste momento sofrem com os impactos deste estudo, manifestamos a nossa proximidade e encorajamento, na esperança de que estas circunstâncias nos estimulem à renovação da própria”, acrescentou o padre Manuel Barbosa, sublinhando que “o processo de reflexão e discernimento iniciado vai continuar, nomeadamente na próxima reunião do Conselho Permanente e na Assembleia Plenária”.
O que fazer com a lista dos alegados abusadores? Igreja aponta limitações
Além das cinco medidas concretas, o que dominou praticamente toda a conferência de imprensa foi uma pergunta central: afinal, o que vai ser feito com a lista de alegados abusadores sexuais que ainda estão no ativo, e que foi entregue à CEP esta sexta-feira de manhã pela comissão independente?
A resposta de D. José Ornelas teve poucas garantias e resume-se assim: cada caso é um caso e cada diocese é responsável por averiguar os nomes que lhe dizem respeito, mas sem a identidade dos acusadores será muito difícil fazer alguma coisa.
Ornelas insistiu várias vezes que a Igreja só recebeu uma lista de nomes. “É uma lista de nomes. Sendo uma lista de nomes, sem outra caracterização, torna-se difícil essa investigação, exige redobrados esforços“, disse o bispo. “O que se pode é confrontar com as informações que tenhamos acerca de tais nomes”, sublinhou, garantindo que todas as normas civis e canónicas vão ser seguidas.
“Para termos os elementos necessários para dar andamento a um processo, a não ser que tenhamos evidência, precisamos de ter dados”, destacou Ornelas. “A lista que hoje recebemos só tem nomes. Às vezes é só o Jacinto, o Almiro, etc. Às vezes só tem um nome. Claro que nós temos arquivos e podemos ir ver quais são os Albinos no nosso arquivo.”
Mas será muito difícil, insistiu. Todas as acusações têm de partir “de uma base sólida”, e não simplesmente no que “alguém pode dizer”. O mesmo para os bispos que terão ocultado casos de abuso. “Tem de haver uma base sólida também para julgar a moralidade e a ética das decisões que se tomam”, disse, apontando que até “a Procuradoria-Geral da República encontra dificuldades em tratar a maior parte dos casos que lhe chegam porque não tem elementos suficientes”.
“Ninguém é acusado nem ninguém é culpado antes de isso ser transitado em juízo. Aquilo que nós temos é encontrar esses casos e ver, realmente, a verdade dos factos“, considerou Ornelas. “Se se tem um caso que é reportado de que se faz a devida investigação e isso não chega a ser plausível, evidente que o caso não tem seguimento. Trata-se de responder à justiça das coisas.”
O presidente da CEP foi mais longe e destacou que, nos casos em que o bispo apenas tiver em cima da mesa um nome de um alegado abusador, sem um acusador, sem uma descrição do que aconteceu e sem alguém que possa contactar a pedir um testemunho, será “muito difícil” avançar com uma investigação.
Questionado sobre se esta ausência de um compromisso com o afastamento, mesmo que a título preventivo, dos alegados abusadores poderia tornar o trabalho da comissão independente em larga medida inconsequente, já que a maioria das vítimas testemunhou anonimamente, D. José Ornelas rejeitou-o — mas também disse que “não podemos querer um círculo quadrado“. Ornelas reconheceu a decisão da comissão em permitir o anonimato dos testemunhos, mas disse que, dessa forma, não é possível avançar de igual modo com todas as investigações. Ainda assim, garantiu: há casos credíveis que vão ter de ser investigados a fundo.
Sobre números, D. José Ornelas não se comprometeu: nem sobre o número total de alegados abusadores (a comissão chegou a falar em mais de 100), nem sobre quais as dioceses onde houve e não houve casos de abusos (disse apenas que na diocese das Forças Armadas não houve, uma vez que não há serviços com crianças), nem sobre o número de casos na sua própria diocese, Leiria-Fátima. Perante a insistência dos jornalistas na conferência de imprensa, que durou mais de uma hora, o presidente da CEP repetiu múltiplas vezes que a Igreja só recebeu uma lista de nomes que ainda vai ser preciso analisar com cuidado, por exemplo, para perceber quem já morreu e quem ainda está no ativo. A este respeito, a comissão independente disse que já tinha feito este trabalho de filtragem dos nomes.
No final da reunião dos bispos portugueses, D. José Ornelas não se comprometeu com o afastamento preventivo dos alegados abusadores e, mesmo dizendo que compreende a preocupação de haver abusadores em funções, reiterou que não se pode retirar alguém das funções sacerdotais sem uma acusação fundamentada — algo que, na maioria dos casos que chegaram à Igreja, não existirá.
Indemnizações? Caberá sempre ao abusador, não à Igreja
D. José Ornelas foi também questionado sobre a atribuição de indemnizações às vítimas, um dos temas quentes da crise dos abusos noutros países — onde chegou a haver dioceses a declarar falência depois de indemnizarem as vítimas de abusos. Mas, em Portugal, isso não deverá acontecer: “A questão das indemnizações é clara tanto no direito canónico como direito civil. Se há um mal feito por alguém, é esse alguém que é responsável.”
Remetendo para os eventuais acusados quaisquer responsabilidades por indemnizações às vítimas, D. José Ornelas assegurou, por outro lado, que a Igreja poderá gastar dinheiro no apoio às vítimas — nomeadamente, ajudando no apoio psicológico e psiquiátrico —, mas que isso não corresponde a uma indemnização que é imputada à instituição.
Ornelas “preocupado” com franjas conservadoras que tentam desacreditar relatório
O presidente da CEP reiterou também esta sexta-feira que o relatório da comissão independente é credível e que quem tem dúvidas “é porque fecha os olhos”. A declaração de Ornelas surgiu em resposta a uma pergunta sobre as vozes que nos últimos dias se têm levantado, sobretudo em alas mais conservadoras da Igreja, procurando minar a credibilidade do relatório, como o Observador noticiou na semana passada.
Um padre da diocese de Leiria-Fátima chegou mesmo a classificar o número de vítimas estimado pela comissão como “completamente falso, infame, nulo e sem qualquer consistência”. Outro sacerdote alegou a “pouca credibilidade dos testemunhos anónimos”. E em alguns sites mais conservadores chegou mesmo a circular a teoria da conspiração de que os inquéritos tinham sido preenchidos por “feministas anticlericais” para prejudicar a Igreja.
Para D. José Ornelas, estas teorias não colhem a aprovação da hierarquia da Igreja Católica. “Este relatório constitui uma peça muito importante para entender esta realidade”, disse, sublinhando que o documento confere um “caráter dramático” ao fenómeno dos abusos e reconhecendo que está “preocupado” com as franjas conservadoras que procuram minar o relatório. “Para que não restem dúvidas a ninguém: quem quer ter dúvidas, é porque fecha os olhos. Não é esse o parecer dos bispos nem da generalidade da Igreja.”