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Na apresentação do relatório final, a comissão independente exibiu uma lista com os anos de nascimento de todas as vítimas que testemunharam
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Na apresentação do relatório final, a comissão independente exibiu uma lista com os anos de nascimento de todas as vítimas que testemunharam

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Na apresentação do relatório final, a comissão independente exibiu uma lista com os anos de nascimento de todas as vítimas que testemunharam

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“Feministas anticlericais”, “Anticristo” e “pouca credibilidade dos testemunhos”. Conservadores tentam desacreditar relatório sobre abusos

Nas alas conservadoras da Igreja, o relatório da comissão sobre os abusos é um novo alvo preferido: há acusações de falta de rigor e teorias da conspiração que envolvem "feministas" e o "Anticristo".

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Aconteceu em vários países e Portugal não seria exceção: depois da publicação do relatório final da comissão independente que ao longo do último ano estudou a realidade dos abusos sexuais de crianças na Igreja Católica portuguesa, várias vozes ligadas à ala mais conservadora da Igreja começaram a mobilizar-se para tentar minar a credibilidade do documento.

Em artigos na imprensa, publicações nas redes sociais e até nos púlpitos das igrejas, diferentes figuras, com mais ou menos destaque público, têm vociferado contra o relatório da comissão, repetindo alegações de falta de rigor científico, afirmando que a Igreja está a ser vítima de uma suposta perseguição movida pelo anticlericalismo, forçando uma associação (anti-científica) entre pedofilia e homossexualidade e chamando até o Anticristo para o debate.

São opiniões individuais, que contrastam com o posicionamento oficial dos bispos portugueses na sequência do relatório, que foi de reconhecimento dos crimes cometidos no interior da Igreja e de pedido de perdão às vítimas — mas basta navegar por um conjunto de blogues e páginas em redes sociais para constatar a existência de uma rede conservadora que se opõe, muitas vezes, à própria hierarquia eclesiástica portuguesa.

Abusos na Igreja. Relatório da comissão é apenas a ponta do “icebergue”. Tudo começa agora

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Em 2002, depois de os jornalistas da equipa “Spotlight” do Boston Globe terem publicado as célebres investigações sobre os abusos de crianças na arquidiocese de Boston, que foram dos principais catalisadores da atual crise vivida na Igreja Católica, algumas das vozes do Catolicismo conservador norte-americano aproveitaram a deixa para intensificar os ataques contra a homossexualidade. Em França, em 2021, circulou até um documento elaborado por membros da Academia Católica de França a criticar duramente os métodos científicos da comissão independente e a tentar descredibilizar o relatório final.

Quarenta anos depois da eclosão da crise dos abusos de crianças no contexto da Igreja, o problema abateu-se sobre Portugal. Que argumentos se começam a esgrimir nos círculos mais conservadores da Igreja em Portugal para tentar minar a credibilidade do relatório da comissão independente?

“Francamente, que credibilidade tem este número?”

O grande alvo dos críticos do relatório da comissão independente têm sido os números. Segundo o documento apresentado na última semana, a comissão recebeu durante o ano passado um total de 512 testemunhos válidos de abuso de crianças no contexto da Igreja, a partir do qual a equipa estimou uma rede de 4.815 vítimas potenciais entre 1950 e a atualidade — uma estimativa que a própria comissão classificou como “imprecisa”, mas necessariamente “conservadora”, pelo que o dado a que o grupo de trabalho deu protagonismo foi o dos 512 testemunhos válidos. A comissão independente também já afirmou que, a partir dos dados recolhidos, foi possível identificar pelo nome cerca de 120 abusadores — dos quais 77% são identificados como padres.

Mas, para muitos críticos do documento final, estes números não são confiáveis, já que a grande maioria dos testemunhos foram recebidos através do preenchimento de um inquérito online no qual era possível manter o anonimato — e apenas 34 vítimas se dispuseram a falar presencialmente com os membros da comissão independente.

“A CI entrevistou 34 vítimas; recebeu 9 testemunhos, por escrito, de outras tantas pessoas abusadas; teve conhecimento, pela imprensa, de 19 casos de possíveis abusos; e constatou, nos arquivos de 20 congregações religiosas, mais 8 casos, o que totaliza 70 prováveis vítimas. A partir destes dados, a CI extrapolou o número de menores abusados para um total de 4.815”, escreveu este sábado num artigo de opinião publicado no Observador o padre católico Gonçalo Portocarrero de Almada, membro do Opus Dei. “Se a CI apresentasse resultados muito aquém da expectativa gerada pela enorme pressão mediática, é provável que fosse questionada a sua isenção e seriedade.”

"Dada a pouca credibilidade dos testemunhos anónimos e a abundância dos discursos de ódio anticlerical, porque há instituições que, como a Igreja católica, a ninguém deixam indiferente, a CI só enviou 25 denúncias para o Ministério Público, que arquivou cerca de metade, por falta de indícios elementares."
Gonçalo Portocarrero de Almada, padre do Opus Dei

No entender de Portocarrero de Almada, o número estimado pela comissão — composta por cientistas, incluindo sociólogos liderados pela investigadora Ana Nunes de Almeida — carece de “confirmação científica”.

“Dada a pouca credibilidade dos testemunhos anónimos e a abundância dos discursos de ódio anticlerical, porque há instituições que, como a Igreja católica, a ninguém deixam indiferente, a CI só enviou 25 denúncias para o Ministério Público, que arquivou cerca de metade, por falta de indícios elementares. As restantes serão investigadas até que se chegue à certeza, pelo menos moral, de que o facto denunciado aconteceu e pode ser imputado ao autor denunciado”, escreve ainda o sacerdote do Opus Dei, não referindo, contudo, que o verdadeiro motivo pelo qual a maioria dos casos não foram enviados para o Ministério Público é o facto de a quase totalidade dos casos já estarem prescritos.

Ao Observador, fonte oficial do Opus Dei esclareceu que “a posição institucional do Opus Dei é a do comunicado publicado no site” — referindo-se a uma nota em que a instituição se une ao pedido de perdão às vítimas. “As pessoas do Opus Dei são livres de construir as suas opiniões; também o Pe Gonçalo Portocarrero”, disse a mesma fonte, sem comentar o conteúdo do artigo do sacerdote, que tem sido um dos rostos mais públicos do Opus Dei.

No mesmo sentido, o jurista José Maria Seabra Duque, secretário da Federação Portuguesa pela Vida, que está ligado ao CDS e que tem sido uma das figuras mais envolvidas no debate público sobre temas como o aborto e a eutanásia, alegou num texto publicado na sua página de Facebook que os números apresentados pela comissão são “pouco fiáveis”.

Num texto em que começa por assumir a “dor e vergonha” da Igreja pelas responsabilidades na crise dos abusos, e por considerar que “a culpa mais terrível da Igreja” foi a de deixar sozinhas as muitas vítimas que tentaram falar do assunto, Seabra Duque aponta sobretudo ao relatório da comissão independente. “Confesso que tenho alguma dificuldade com o método usado”, diz. “A denúncia, sem investigação séria, sem contraditório, é muito facilmente manipulável. Por muito que nos pareça improvável que alguém invente uma situação destas, a verdade é que não é impossível, nem sequer especialmente difícil fazê-lo. Para além disso, falamos muitas vezes de acontecimentos com 40 ou 50 anos, sendo também fácil as confusões. Penso especialmente nos casos de insinuação, referidos no relatório, que a esta distância me parecem difíceis de avaliar.”

“Dito isto, percebo também que este era o único método possível de dar voz às vítimas”, assume Seabra Duque. “E este é talvez o maior mérito deste relatório: permitir a quem foi abusado na Igreja e nunca se sentiu escutado ou acompanhado, sê-lo. Na maior parte dos casos era impossível uma investigação judicial (veja-se que a maior parte dos casos enviados ao Ministério Público não chegou a ser investigado). E a verdade é que a comissão não revelou nomes, enviou-os à CEP que poderá agora investigar devidamente, seguindo as devidas regras processuais. A alternativa a este método era criar um sistema de tal forma rígido que se tornaria inviável. Por isso, continuando a não gostar do método, percebo que era o possível para permitir às vítimas de abusos na Igreja denunciar o que lhes aconteceu.”

"O relatório é de facto útil para compreender melhor o fenómeno dos abusos na Igreja, mas o método usado torna os número pouco fiáveis."
José Maria Seabra Duque, secretário da Federação Portuguesa pela Vida

Sobre os números, o jurista considera-os “a parte mais problemática” do relatório. “O relatório é de facto útil para compreender melhor o fenómeno dos abusos na Igreja, mas o método usado torna os número pouco fiáveis. Não digo que sejam poucos ou muitos. Por um lado, estimativas baseadas nos relatos das denúncias (que dão os quase cinco mil casos falados), não me parece fiável”, afirma.

Também no Facebook, o padre Manuel Pina Pedro, da diocese de Leiria-Fátima — que em março de 2020 tinha chegado às páginas dos jornais por criticar publicamente a decisão da Igreja Católica de encerrar as igrejas devido à pandemia, o que mereceu inclusivamente uma reprimenda pública por parte do então bispo da diocese, D. António Marto —, veio criticar o relatório da comissão independente.

“Relativamente aos números apresentados de 4815 vítimas, perguntamos: como é que 512 testemunhos podem produzir um número exorbitante de 4815 vítimas? Também se diga que destes alegados casos, apenas 25 foram entregues ao Ministério Público e parece que metade já foram arquivados. Refira-se ainda, que a dita comissão não é nenhum órgão judicial e até prova em contrário toda a gente goza de inocência”, escreveu o sacerdote na sua página pessoal.

“Diga-se também de passagem, que na comunicação à imprensa pela referida comissão, o número de 4.303 vítimas surge como fruto de um questionamento feito às 512 pessoas, em que lhes perguntaram se conheciam mais casos de vítimas. E assim surgiu este resultado. Francamente, que credibilidade tem este número?”, questionou o padre, elencando um conjunto de dados semelhante aos usados por Portocarrero de Almada.

Continua o sacerdote: “O que os pesquisadores realmente encontraram, pessoalmente, são 34 pessoas (23 homens e 11 mulheres) com quem conversaram cara a cara ou via Zoom, que lhes contaram os abusos sexuais que sofreram quando crianças, nas mãos de clérigos ou pessoas a eles associadas, a entidades católicas (monitores escoteiros, professores, pessoal escolar). Outras 14 pessoas vieram contar-lhes, em voz alta, casos dos quais foram testemunhas, mas não vítimas. Depois, há 9 pessoas que escreveram cartas de papel contando seus testemunhos (de abusos sofridos). 8 casos nos arquivos de Congregações Religiosas. Toda a imprensa, em 70 anos, descobriu 19 casos. Tudo isto junto dificilmente chegaria a milhares de vítimas.”

"4815??? Este número é completamente falso, infame, nulo e sem qualquer consistência, pois desta percentagem até agora, ninguém foi condenado judicialmente. Pois sem sentença, não há condenação!"
Manuel Pina Pedro, padre da diocese de Leiria-Fátima

“Mas como já se disse atrás a comissão fez-se valer ainda mais de 512 questionários anónimos que descreviam abusos. Face ao que foi dito é no mínimo muito triste e lamentável que certas pessoas ainda se fiem nestes números de 4815 alegadas vítimas e os apregoem a ‘todo o vapor’”, sublinha Manuel Pina Pedro, acrescentando ainda: “Quando há problemas numa família, numa empresa, ou em qualquer instituição, devem-se enfrentar à porta fechada com quem de direito e não divulgá-los aos quatro ventos pela comunicação social.”

“4815??? Este número é completamente falso, infame, nulo e sem qualquer consistência, pois desta percentagem até agora, ninguém foi condenado judicialmente. Pois sem sentença, não há condenação!”, escreveu o mesmo padre, noutra das muitas publicações que dedicou ao tema nos últimos dias.

“O relatório da comissão só tem um destino: o lixo”

Navegando pelos perfis das redes sociais de várias figuras associadas a uma ala mais conservadora e tradicionalista da Igreja Católica, é possível encontrar múltiplas partilhas e citações de um texto publicado por Mafalda Miranda Barbosa, professora de Direito da Universidade de Coimbra, que tem tido alguma presença pública em debates sobre a eutanásia. Nesse texto, partilhado pela académica de modo privado no seu perfil do Facebook, mas entretanto tornado público em várias citações, Mafalda Miranda Barbosa acusa a comissão independente de não ter cumprido as “mais elementares regras processuais”.

“O princípio do contraditório e o princípio da presunção de inocência, por exemplo, foram postos na gaveta, sem apelo, nem agravo. De acordo com as declarações de membros da comissão, os sacerdotes envolvidos deveriam ser imediatamente expulsos do seu ministério, o que pressupõe uma culpa formada e um juízo acabado sobre a responsabilidade dos mesmos. Ficamos, assim, a saber que foi aditado um novo órgão de administração da justiça. Não contamos só com tribunais, mas com comissões independentes, compostas maioritariamente por psicólogos, psiquiatras e sociólogos, na realização de uma justiça célere, embora pouco justa”, escreveu a jurista.

Nesse texto, Mafalda Miranda Barbosa aponta sobretudo à questão da credibilidade dos números, que considera duvidosa. “A comissão anuncia que encontrou cerca de 4.800 vítimas de abusos sexuais cometidos por padres. Trata-se de um número a que se chega, segundo percebi, de acordo com extrapolações matemáticas, mais ou menos duvidosas, que se baseiam em apenas 34 testemunhos e 500 formulários anónimos (sublinho, anónimos) recebidos por internet, cuja credibilidade ninguém pode assegurar, até porque nada impede que uma pessoa submeta mais do que uma resposta”, acrescenta.

"Trata-se de um número a que se chega, segundo percebi, de acordo com extrapolações matemáticas, mais ou menos duvidosas, que se baseiam em apenas 34 testemunhos e 500 formulários anónimos (sublinho, anónimos) recebidos por internet, cuja credibilidade ninguém pode assegurar, até porque nada impede que uma pessoa submeta mais do que uma resposta."
Mafalda Miranda Barbosa, professora de Direito da Universidade de Coimbra

A jurista dá um exemplo: “A sua fidedignidade é tanta que, num deles, refere-se que num seminário, que tinha capacidade para albergar 200 crianças, tinham sido violados num ano mais de 1.000 jovens.”

Porém, Mafalda Miranda Barbosa não refere o dado vital: o exemplo que dá é tirado, justamente, de uma lista de exemplos apontados pela comissão independente como testemunhos que foram eliminados por não terem credibilidade. Na verdade, a comissão independente explica que eliminou 51 testemunhos por terem vários problemas de credibilidade, incluindo a apresentação de “números inverosímeis, como no caso de referência a um certo seminário menor, afirmar-se que ‘naquele ano houve pelo menos 1000 crianças abusadas’ no seu interior, sabendo-se por outra via que, nessa época, o seminário tinha uma população não superior a 200 rapazes”.

Continua a jurista: “Na televisão, surgem testemunhas de pessoas que dizem ter preenchido o formulário como reação a declarações do Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, que tinham considerado injustas. Tudo isto, por si só, é suficiente para garantir que o relatório da comissão só tem um destino: o lixo.”

A teoria dos inquéritos preenchidos por “ativistas feministas”

O ataque cerrado à credibilidade do relatório da comissão independente transpôs, inclusivamente, as fronteiras portuguesas. No dia seguinte à divulgação do relatório, o portal de informação religiosa espanhol Religión en Libertad, de pendor conservador, publicava um longo texto com o título “Os estranhos números do estudo português sobre abusos: 4.800 vítimas ou só 34 testemunhos?”, onde o editor do portal, Pablo J. Ginés, se dedica a desfazer o trabalho da comissão — colocando até a expressão “independente” entre aspas.

Ginés classifica o número estimado pela comissão como “um cálculo que se faz por extrapolação, com matemáticas mais ou menos criativas e mais ou menos duvidosas”. “Testemunhos de vítimas cara a cara encontraram 34. E uns 500 formulários anónimos recebidos por internet, inverificáveis”, continua o editor espanhol, que volta a insistir nos números já referidos: os 34 testemunhos diretos, as nove pessoas que escreveram cartas, os 19 casos encontrados na imprensa, que totalizariam poucas dezenas de casos.

“O resto do relatório depende dos 512 longos e detalhados formulários preenchidos anonimamente por internet. Não há forma de assegurar que esses formulários sejam fidedignos. Uma só pessoa, dando vários e-mails, poderia ter preenchido vários formulários. Muitos deles poderiam ter sido preenchidos por inimigos da Igreja, militantes feministas, de género, de outras religiões ou seitas, anticlericais em geral, etc. Inimigos da Igreja Católica!”, escandaliza-se Ginés.

O editor espanhol aponta ainda um outro argumento para descredibilizar o relatório: o facto de haver uma percentagem muito grande de vítimas mulheres (42,2%), mais do que noutros países, onde a preponderância de homens entre as vítimas foi mais expressiva. Para Ginés, está aqui a prova de que este relatório não pode ser entendido como fiável: “O abuso eclesial é sobretudo algo que homens fazem sobre rapazes buscando sexo gay.” Perpetuando a ideia falsa de que existe uma ligação entre homossexualidade de abuso de crianças, o editor espanhol alega (como muitos na Igreja) que o grande problema por trás dos abusos na Igreja é a infiltração de homossexuais na instituição, que depois buscam em jovens adolescentes a satisfação das suas necessidades.

"Não há forma de assegurar que esses formulários sejam fidedignos. Uma só pessoa, dando vários e-mails, poderia ter preenchido vários formulários. Muitos deles poderiam ter sido preenchidos por inimigos da Igreja, militantes feministas, de género, de outras religiões ou seitas, anticlericais em geral, etc. Inimigos da Igreja Católica!"
Pablo J. Ginés, editor do portal Religión en Libertad

Com base nestes números, surge a teoria da conspiração: “Por exemplo, se ativistas feministas anticlericais quisessem denegrir a Igreja para a debilitar, poderiam preencher os questionários anónimos online com testemunhos falsos, mas com história femininas, em parte porque lhes seria mais fácil e em parte para apresentar a Igreja como opressora da mulher.”

Este artigo do Religión en Libertad foi replicado, em português, no blogue Senza Pagare, uma página tradicionalista que tem difundido vários textos associando o abuso de crianças à homossexualidade e até à educação para a sexualidade.

Padre acusa comissão de “branquear” relação entre abusos e homossexualidade

Um dos discursos mais duros contra o relatório da comissão independente, contra os membros da comissão e até contra a hierarquia eclesiástica portuguesa veio do padre Pedro Quintela, sacerdote da diocese de Setúbal, que é fundamentalmente conhecido pelo seu trabalho no apoio a toxicodependentes. O padre usou a homilia da missa deste domingo na paróquia do Monte de Caparica, que foi publicamente transmitida no YouTube, para durante cerca de 20 minutos ler um longo texto escrito por si e destinado a tentar descredibilizar o relatório da comissão — o vídeo chegou a estar indisponível, já depois da publicação deste artigo, e mais tarde voltou a poder ser visto, após o Observador ter divulgado o áudio em baixo.

O sacerdote começa a leitura do texto dizendo que foi aconselhado por “mão amiga, sábia e prudente” a não ler tudo o que escreveu, para não ser processado por difamação. “Pelo meu temperamento gostava de nomear algumas coisas”, diz. Além de alegar que a Igreja está a ser vítima de uma perseguição anticlerical, o padre Pedro Quintela disse também aos seus paroquianos e a todos os que viram a missa pela internet que o relatório é “discutível” e “inaceitável” em muitas partes.

“Dediquei-me a ler o relatório publicado na segunda-feira passada. Já li perto de metade, é muito grande. Não serei redundante a repetir o que é consensual, obviamente, sobre a tragédia que se abateu sobre quem foi abusado. Mas o relatório não é apenas consensual. É também discutível. Muito discutível e, em não poucas páginas, para mim inaceitável. Ou será que sou obrigado a considerar como absoluta e inquestionável a sua metodologia, os seus propósitos e resultados? Pensar é dizer não, ensinava um filósofo francês do século XX”, disse o sacerdote.

Para Pedro Quintela, “é absolutamente falso, manipulador e injusto passar por cima de tudo o que são direitos, liberdades e garantias, dando um passo no sentido em que a vida pública é, não só, atingida pelo populismo, esse que todos os dias estamos a criticar, quando se pretende que os políticos sejam substituídos pelos juízes; como agora também que os juízes sejam destituídos pelos psiquiatras” — uma referência, ainda que sem nomes, ao facto de a comissão independente ter integrado dois psiquiatras entre os seus seis elementos, Pedro Strecht e Daniel Sampaio.

“Sim, porque não tenhamos dúvidas: o relatório é uma sentença, daquelas sentenças em relação às quais já não se pode apresentar recurso”, disse o sacerdote.

No mesmo sentido que o artigo do Religión en Libertad, Pedro Quintela aponta para uma suposta relação entre abusos de crianças e homossexualidade, alegando que é “significativa no relatório em apreço a tentativa de branquear a conexão, todavia estatisticamente irrefutável, entre abusos de menores e perfis homossexuais”.

“Não me acusem para já de ser troglodita. Faço aliás um parênteses para homenagear pessoas homossexuais que conheço, de quem sou amigo e que nada têm de pedófilos. É óbvio que a homossexualidade não é sinónimo de pedofilia. Mas é óbvio também que há no relatório uma preponderância de pessoas com práticas homossexuais pedófilas. E aí o relatório não é isento porque tenta escondê-lo”, argumenta Pedro Quintela, sublinhando que o documento traz exemplos de comportamentos homossexuais por parte de agressores sexuais, o que, segundo aquele padre, comprova um argumento clássico entre os conservadores: a ideia de que a culpa dos abusos na Igreja é da presença de pessoas homossexuais no clero.

"É significativa no relatório em apreço a tentativa de branquear a conexão, todavia estatisticamente irrefutável, entre abusos de menores e perfis homossexuais."
Pedro Quintela, padre da diocese de Setúbal

“O que o poder pretende, com isto, é que da identificação da Igreja com tais horrores decorra a insignificância, a impotência e o desprezo por qualquer coisa que a mesma Igreja tenha a dizer sobre o homem e a organização da sua vida em sociedade: aborto, eutanásia, fantasmas sobre o que é ser homem ou mulher, família tradicional, novas configurações da mesma nascidas da perda do centro”, alegou o padre, sem especificar, contudo, quem pretende estas coisas. “Tudo isso deixa de poder dialogar com o pensamento católico, a que não se deixa de colar a pequeníssima parte como expressiva de um todo sistémico.”

À semelhança de outros exemplos citados, o padre Pedro Quintela também criticou a estimativa de 4.815 vítimas potenciais feita pela comissão a partir dos dados recolhidos. Considerando que os números do relatório não são “expressivos e suficientes”, Pedro Quintela disse que, a partir de 34 depoimentos presenciais e 512 inquéritos online, “a extrapolação para 4.800 vítimas de abusos não é ciência, não é direito, não é justiça, é manipulação, brutal manipulação”.

O “Anticristo” ou a Igreja como vítima

Outro dos argumentos usados por aqueles que, dentro da Igreja, têm tentado desacreditar o relatório da comissão independente é a ideia de que a Igreja não só não é responsável pelo problema dos abusos e do encobrimento, como é também a grande vítima desta crise — estando a ser perseguida por uma suposta onda de anticlericalismo na sociedade portuguesa.

“Estamos de facto e infelizmente, perante uma tremenda, falsa, hipócrita e pérfida injúria e difamação a Jesus Cristo, à Sua Santa Igreja Católica, a todos os sacerdotes em Portugal e de um modo geral a todos os fiéis. Isto é mais um grande escândalo, do mais incrível, à Igreja em Portugal e não só, que brada justiça ao Céu! Estamos também perante mais uma campanha bem orquestrada para ferir gravemente a Igreja e o seu clero. Pois, isto interessa e está orientado para o projeto da Nova Ordem Mundial e o seu Anticristo”, escreveu o padre Manuel Pina Pedro na sua conta de Facebook, onde também republicou o já citado texto da jurista Mafalda Miranda Barbosa.

Nesse texto, a professora universitária critica o psiquiatra Pedro Strecht pelo que disse em relação à Igreja Católica.

“Do alto da sua sapiência, o presidente da referida comissão ousa dar conselhos à Igreja, inclusivamente no que respeita à questão do segredo de confissão. A ignorância sempre foi atrevida e não seria agora que haveria de encontrar-se uma exceção. E as pessoas, em geral, asseguram a sua participação na campanha de histeria gerada em torno do assunto, proclamando que a partir de hoje não vão voltar a deixar os filhos na catequese”, argumenta Mafalda Miranda Barbosa.

“Suponho que também não deixarão os filhos na escola, nas atividades desportivas e que as vão segregar da família, seio onde se verifica a maior percentagem de abusos sexuais de menores”, acrescenta. “Quanto a mim, gostaria apenas de dizer que, a Igreja, que transcende os membros que a compõem, jamais vacilará, porque contra ela não prevalecerão as portas do inferno, por mais soezes que sejam os ataques que lhe pretendem dirigir.”

O relatório final foi apresentado pela comissão independente na segunda-feira da semana passada

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Num artigo de opinião no Observador, o padre Gonçalo Portocarrero de Almada ataca a comissão independente por ter apresentado o seu relatório publicamente, em vez de se limitar a entregá-lo discretamente à Igreja.

“Terminada a investigação, era suposto a CI entregar o relatório final a quem lhe tinha encarregado esse trabalho, a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), à qual competia a sua análise e divulgação. Foi, portanto, escusada a apresentação pública pela CI, em ambiente de grande espetacularidade mediática. Dada a gravidade da matéria, teria sido preferível um estilo mais sóbrio e que, por respeito pelas vítimas e pela sua dor, se evitasse a descrição de episódios escabrosos”, escreveu.

Nesse mesmo artigo, Portocarrero de Almada sugere até que a Igreja Católica, longe de ser cúmplice dos crimes dos padres, é na verdade vítima.

“A hierarquia católica não enjeita as suas responsabilidades no que se refere aos abusos de menores, embora não seja crime, segundo a lei portuguesa, o encobrimento de situações desta natureza, por quem não tem o dever de ofício de as denunciar, como é o caso dos bispos diocesanos em relação a abusos praticados por elementos do seu clero. Contudo, em termos éticos, é exigível que a hierarquia eclesial atue, com celeridade e determinação, ante qualquer indício, ou denúncia, de crimes desta natureza, nomeadamente impedindo ao alegado abusador qualquer contacto com possíveis vítimas”, escreveu.

“Enquanto pessoa moral coletiva, a Igreja não é responsável pela atuação dos seus ministros quando estes, faltando gravemente aos compromissos de castidade, obediência e pobreza, assumidos na sua ordenação sacerdotal ou profissão religiosa, procederam criminosamente. Aliás, a Igreja não responde por quaisquer delitos praticados, a título individual, pelos seus ministros (furtos, infrações de trânsito, etc.)”, acrescentou o padre do Opus Dei, ignorando o problema da ocultação dos casos de abusos de crianças, levada a cabo pela hierarquia da Igreja durante décadas com recurso a estratégias (como a transferência dos padres entre paróquias) com padrões identificados pela comissão independente.

“Na realidade, a Igreja católica portuguesa não só não foi cúmplice dos abusadores, como foi sua vítima, quer nas pessoas cristãs abusadas, que não são menos Igreja do que os seus pastores – seria clericalismo negá-lo! – quer no enorme dano causado à instituição”, escreveu Portocarrero de Almada. “Pode, pois, constituir-se como parte ofendida nos processos a instaurar aos prevaricadores.”

No mesmo artigo de opinião, o sacerdote sublinha que o problema dos abusos de crianças é transversal à sociedade e não é exclusivo da Igreja Católica, pelo que é preciso “analisar este drama com objetividade, sem ceder à visão cega dos fanáticos religiosos, que negam esta indiscutível realidade, nem ao ódio anticlerical dos que veem em cada padre um pedófilo e consideram que a Igreja católica é uma associação de criminosos”.

No mesmo sentido, o padre Pedro Quintela, na homilia do último domingo, lamentou que os bispos portugueses tenham aceitado fazer “um inquérito desta natureza exclusivamente à Igreja Católica” e acusou a comissão independente de ter criado um “efeito social” nefasto para a Igreja. Referindo-se a estudos internacionais, o sacerdote argumentou que “a responsabilidade dos clérigos nestas coisas terríveis anda pelos 3%”.

“Sim, é brutal, mas não exclusivo nem predominante, a pedofilia na Igreja Católica. E foi esse, como parece, o efeito social criado com este relatório, como se a Igreja fosse a fábrica e a sede destes horrores”, considerou o padre.

"Enquanto pessoa moral coletiva, a Igreja não é responsável pela atuação dos seus ministros quando estes, faltando gravemente aos compromissos de castidade, obediência e pobreza, assumidos na sua ordenação sacerdotal ou profissão religiosa, procederam criminosamente."
Gonçalo Portocarrero de Almada, padre do Opus Dei

“Não me passa pela cabeça dizer que não existem responsabilidades no clero pedófilo”, admitiu Pedro Quintela. “Para mim, pensar é antes recusar o modo como se configuram novas crenças que se pretendem límpidas e pudicas, e transpiram principalmente uma vingança cultural, generalizações e massacre de uma instituição secularmente na mira dos que pretendem o progresso sem o desenvolvimento.”

E o que é o “progresso sem o desenvolvimento”? No entender daquele padre, é “o progresso entendido assanhadamente como rutura, como revolução, face às convicções tradicionais, sem, por isso, o desenvolvimento da pessoa, nas suas dimensões pessoais e comunitárias”. É esse “progresso sem desenvolvimento” que “traz consigo o aborto, a eutanásia e fantasiosas famílias que não desenvolvem a vida de ninguém — antes, a implodem”, acrescentou o sacerdote, numa formulação que usa a linguagem que a Igreja habitualmente usa para rejeitar a homossexualidade.

Bispos cederam “às elites”

No conjunto de ataques à credibilidade do relatório da comissão independente, tem havido espaço também para críticas à hierarquia da Igreja Católica.

Na homilia deste domingo na paróquia do Monte de Caparica, o padre Pedro Quintela questionou-se sobre “o que passou pela cabeça da hierarquia para avançar com este relatório” e acusou os bispos portugueses de cederem “às elites clericalizadas”, ou seja, a um grupo de “clérigos e leigos que, dentro da Igreja, estão mundanizados” e que querem que “a doutrina da Igreja diga o que mundo dita à Igreja”.

“Refiro-me àqueles católicos de serviço que têm acesso a publicar na grande imprensa”, apontou o sacerdote, sem especificar nomes, mas acusando-os de querer que a Igreja seja “como o Anticristo”, ou seja, “vegetariana, pacifista, boazinha e aberta ao diálogo” — evocando aqui palavras tornadas célebres pelo cardeal italiano Giacomo Biffi, um conservador que chegou a ser apontado como possível sucessor de João Paulo II, e que morreu em 2015.

O padre acusou ainda a Conferência Episcopal Portuguesa de não ter ouvido “o povo simples” quando decidiu convocar a comissão independente. Ao “confundir a opinião publicada com o sentido de fé dos cristãos”, os bispos cederam à vontade dos que queriam, supostamente, perseguir a Igreja Católica. “Só gente muito mundanizada desejava este relatório. Os fiéis fiéis, quer dizer, os que vão à missa fielmente, os que têm filhos e família, os que visitam familiares e vizinhos doentes, o que rezam, sabiam e sabem que este foi um exercício que lançou o pânico nos simples”, alegou o padre. “Eles queriam a verdade, sim, não queriam porém ser colocados na arena dos novos coliseus.”

“Se a hierarquia tivesse consultado o povo simples, este relatório não teria sido feito nestes termos”, garantiu o sacerdote.

Leia aqui o relatório completo sobre os abusos na Igreja

A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa foi constituída no final de 2021 por decisão da Conferência Episcopal Portuguesa. Liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, a equipa incluiu também o psiquiatra Daniel Sampaio, a socióloga Ana Nunes de Almeida, o ex-ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio, a assistente social Filipa Tavares e a cineasta Catarina Vasconcelos. O relatório final, com perto de 500 páginas, foi publicado na segunda-feira da semana passada e deu conta de 512 testemunhos válidos, a partir dos quais foi reconstituída uma rede de 4.815 vítimas potenciais.

A comissão independente está também a finalizar uma lista com os nomes dos alegados abusadores que ainda se encontram no ativo, da qual deverão constar pouco mais de 100 nomes, e que será entregue à Conferência Episcopal Portuguesa e ao Ministério Público entre o final de fevereiro e o início de março.

Em reação ao relatório, a Conferência Episcopal Portuguesa agradeceu o trabalho da equipa liderada por Pedro Strecht e prometeu “tolerância zero” em relação aos abusadores.

Artigo atualizado às 20h19 desta quarta-feira, com um áudio com o mesmo conteúdo do vídeo de Youtube relativo à homilia do padre Pedro Quintela, de 19 de fevereiro, que deixou de estar disponível após a publicação deste artigo. E novamente atualizado às 12h10 desta quinta-feira, com a indicação de que o vídeo no Youtube que tinha ficado indisponível, voltara a ficar novamente disponível.

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Nota: este artigo foi objeto de um direito de resposta e retificação que pode ler aqui.

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