Já eram quase nove da noite e Diogo* ainda estava no trabalho. Não que estivesse a fazer alguma coisa importante. Tinha-se arrastado o dia todo pelo escritório e agora estava sentado a olhar para o ecrã do computador à espera de uma milagrosa inspiração para acabar o projeto — devia tê-lo terminado há duas semanas.
Estava assim há cinco meses, mais ou menos desde o nascimento de Manuel*, o primeiro filho. Nem se reconhecia. Sempre fora uma pessoa focada na carreira e, com pouco mais de 30 anos, tinha um futuro promissor à sua frente, mas ultimamente não se conseguia concentrar em nada.
A vontade de ir para casa também não era muita. Já sabia que ia ouvir as queixas da mulher por (mais uma vez) estar a chegar tarde, por não a ajudar a tomar conta do filho e não participar na vida do bebé.
Houve uma altura em que o foco de Raquel* também era a carreira, mas isso mudou radicalmente com a gravidez. Agora, só uma coisa importava: o Manuel. Única e exclusivamente o Manuel. Como se mais nada (nem ninguém) existisse.
Diogo sempre teve consciência de que a sua vida iria dar uma volta com o nascimento do filho, mas nunca imaginou algo assim. A verdade é que nunca sentiu uma ligação com o bebé. Aliás, nem sequer sabia o que fazer quando estava com ele.
Se ao menos não tivesse cedido nas insistências de Raquel em ter um filho, nada disto estaria a acontecer. Continuariam focados na carreira, as discussões seriam menos frequentes, não teriam de estar constantemente enfiados em casa e poderiam continuar a conviver com os amigos. Mas já nem isso lhe apetecia. Tinha sido convidado para um churrasco em casa de um amigo, mas não iria com certeza. O sábado iria ser passado no sofá em frente à televisão.
A pouca ligação com o filho, a falta de concentração, de motivação e de interesse por tudo são apenas alguns dos sintomas de uma depressão pós-parto. Uma condição muito associada às mulheres, mas que também afeta os homens: de acordo com diversos estudos, é um problema que afeta entre três a 10% dos homens.
“Uma depressão pós-parto não acontece só porque se teve um bebé. Acontece depois do nascimento, mas relaciona-se com uma série de fatores associados à chegada do bebé, muitas vezes prévios à gravidez e ao parto”, explica Maria de Jesus Correia, psicóloga na Maternidade Alfredo da Costa, ao Observador.
Da dor psicológica à dor física
Os sintomas de uma depressão pós-parto, tanto nos homens como nas mulheres, são semelhantes aos de qualquer outra depressão e surgem ao longo das semanas após o nascimento do bebé, com tendência a agravar-se com o passar do tempo.
A “diminuição da competência profissional” e da “capacidade de se concentrar”, o “cansaço permanente” e por vezes “sem justificação”, “alterações no padrão de sono e alimentar” são outros dos sintomas, acrescenta Maria de Jesus Correia.
Mas o turbilhão de emoções que se sente com o nascimento de um bebé não significa automaticamente uma depressão: “Temos de diferenciar o que é um misto de espanto, melancolia, pasmo, surpresa e transcendência, da verdadeira depressão pós-parto. Depressão é um termo clínico preciso. Outra coisa é estar ‘atordoado’ e ter de desempenhar simultaneamente dois papéis de sinal contrário: uma alegria (nostálgica) do nascimento do bebé e o luto da gravidez, uma situação prolongada no tempo em que se investiu muito em termos emocionais e que termina subitamente, sendo substituída pelo nascimento”, sublinha o pediatra Mário Cordeiro ao Observador.
Não é fácil fazer um diagnóstico de depressão pós-parto nos homens, já que muitos têm dificuldade em admitir o que se passa: “Ora não há queixas, ora são desvalorizadas, ora não se faz a ligação direta ao parto”, refere Gustavo Pedrosa, psicólogo e terapeuta familiar na Oficina de Psicologia.
“Geralmente, estes casos ou são identificados mais tarde, ou não são identificados como uma depressão pós-parto. A maior parte dos homens não sabe que pode ter uma depressão pós-parto. Quase não se fala sobre esta questão e mais depressa se responsabiliza este mal-estar a uma atitude egoísta por parte do pai, ou a ciúmes do pai em relação ao filho”, adianta o especialista.
Uma das diferenças entre uma depressão pós-parto nas mulheres e nos homens está precisamente nestas “questões sociais e culturais”. “Os homens têm uma forma diferente de expressar a depressão: queixam-se menos, têm mais dificuldade em chorar e em verbalizar a tristeza”, esclarece a psicóloga da MAC.
O facto de esta depressão estar associada a um acontecimento que deveria ser de pura felicidade leva os homens (e também as mulheres) a não pedirem ajuda. Já para não dizer que os homens têm tendência a chamar a si a responsabilidade de “proteger e cuidar da mulher” e “assegurar o equilíbrio em casa”, como se só a mulher tivesse direito a estar mais frágil.
Esta “limitação de expressão” nos pais acaba por levar ao aparecimento de sintomas físicos — uma situação apelidada de somatização –, como “dores de cabeça ou no corpo”, queixas “permanentes” e sem uma “causa física aparente”. Foi precisamente isso que aconteceu com João*, de 32 anos. Além do cansaço e da dificuldade em concentrar-se no trabalho, este pai queixava-se de dificuldades em dormir e dores de cabeça.
Quais são os gatilhos?
Mas já não era a primeira vez que João passava por algo semelhante, ou seja, que tinha dificuldade em ajustar-se psicologicamente a uma situação de grande exigência a nível emocional. Quando estava na faculdade, teve episódios de ataques de pânico e de ansiedade, tendo sido medicado com ansiolíticos. Um quadro de grande ansiedade que voltou a repetir-se quando mudou de emprego e para o qual voltou a recorrer a medicamentos.
Os antecedentes psicológicos, os traços de personalidade neuróticos, uma má relação conjugal e um apoio reduzido a nível social são alguns dos fatores de risco para o desenvolvimento de uma depressão pós-parto, tanto para as mães, como para os pais, refere um estudo publicado no Journal of Neuroscience Research na edição de janeiro/fevereiro de 2017.
A mesma investigação adianta ainda que a depressão pós-parto da mãe é considerada um grande fator de risco para o desenvolvimento da mesma condição psicológica no pai e vice-versa.
A psicóloga da MAC refere outros gatilhos: ser uma pessoa “com medo de coisas novas”, a “privação de sono” e, consequentemente, o “aumento do cansaço“. “A gravidez e a chegada de um bebé implicam uma quantidade enorme de exigências de adaptação, tanto para a mãe como para o pai. O homem não tem a vivência física da gravidez, mas os processos internos e externos à chegada do bebé são muito parecidos. A vida fica mais difícil, há noites mal dormidas. É natural que depois do nascimento do bebé, quando se está sujeito a uma fase mais exigente, venha ao de cima aquilo que existe de mais frágil em termos de estrutura de personalidade”, defende Maria de Jesus Correia.
O receio de não conseguir corresponder às exigências do papel de pai também pode estar na base deste quadro depressivo. Gustavo Pedrosa fala precisamente numa “imaturidade emocional” de alguns pais, que os leva a “não se sentirem preparados” para abarcar todas as responsabilidades relacionadas com o nascimento de um filho. “Isto acontece em particular no primeiro filho”, acrescenta o psicólogo.
A verdade é que também se notam alterações a nível hormonal nos homens com depressão pós-parto, tal como acontece com as mulheres, numa escala bastante inferior. “Os pais que se envolvem profundamente nas gravidezes e no parto, têm comprovadamente uma subida de estrogénios e, sobretudo, de endorfinas”, defende Mário Cordeiro. “As hormonas mudam-nos. Parece-me uma evidência ‘de quarta classe’. E ainda bem, porque a ideia do pai mauzão, castigador, afastado, distante, que só ‘entrava em jogo depois do intervalo’ já passou à história científica e, esperemos, cada vez passe à história em termos sociais.”
Os níveis de cortisol, uma hormona associada à resposta do ser humano ao stress, por exemplo, aumentam nos homens, semanas antes do parto. Estes níveis voltam a diminuir depois do nascimento do bebé, muito graças à interação com a criança. O mesmo acontece com os níveis de testosterona: diminuem após o parto — os pais apresentam níveis de testosterona cerca de 30% inferiores aos homens que não têm filhos. E quanto mais horas passarem com o filho, mais baixos são os níveis de testosterona.
Mãe-pai-filho: o papel do homem neste triângulo
À semelhança de Diogo, outra das queixas de João era o facto de a mulher estar tão focada no bebé que praticamente não tinha tempo para ele e para a relação a dois — ainda antes do parto já receava o impacto que o nascimento do bebé pudesse ter no relacionamento.
Aliás, a transição para a parentalidade está muito associada a uma diminuição da qualidade da relação entre o casal. “Há uma tendência para a mulher se focar em si própria, virar-se mais para a sua relação com o bebé e ficar à espera da disponibilidade do homem para ela. Isso é importante, mas a mulher não pode esquecer o homem e é fundamental que ambos se valorizem mutuamente e continuem a dar atenção um ao outro”, explica Maria de Jesus Correia.
Esta relação no casamento implica não só arranjar tempo para estarem os dois enquanto casal, mas para ambos estarem envolvidos no processo de cuidar do bebé.
João sentiu dificuldade em posicionar-se nesta nova dinâmica familiar. Por exemplo, de cada vez que ia dar banho ao bebé, a mulher dizia-lhe para não segurar o filho daquela maneira e tirava-lhe o bebé dos braços. Tiago* sentiu precisamente o mesmo. Quando os pais da mulher se mudaram para sua casa para ajudar com o bebé, a sogra chegava-se sempre à frente para dar banho ao neto ou para lhe mudar a fralda. Quase como se não lhe passasse pela cabeça que o genro pudesse fazer este tipo de tarefas melhor que ela.
Não que Tiago não estivesse contente com o nascimento do filho. Pelo contrário. Mas sentia-se perdido e triste. Havia alturas em que queria pegar no bebé, quando ele estava a dormir no berço, mas não o fazia com medo de o estragar com mimos. À noite, o choro do bebé entrava-lhe pela cabeça e sentia um medo que não conseguia bem explicar: tinha medo de algo estar errado, medo de o bebé morrer.
O pediatra Mário Cordeiro destaca precisamente o facto de “algumas mães, com um toquezinho possessivo, agarrarem-se ao bebé e, até inconscientemente, afastarem o pai e ficarem ‘in love’ com o filho, o que causa, em muitos homens, sentimentos de abandono e de ‘estarem na bancada’”. “É bom que as mães tenham consciência disso e que sintam que o pai é um dos vértices do triângulo pai-mãe-filho, e não um ponto de substituição do desempenho maternal.”
Maria de Jesus Correia sublinha também a importância de a mulher “partilhar as tarefas de forma equilibrada e dialogada” e de deixar que o pai “desfrute do seu filho individualmente e sozinho, sem ter a mulher a dar palpites ou a ensinar como se faz”. Até porque, ao contrário do que nos diz a “tendência social e cultural”, ser mãe não é algo “instintivo” e ser pai não requer obrigatoriamente um período de aprendizagem. “Não é linear”, acrescenta.
“Por vezes é impossível dar a volta”
A psicóloga da MAC refere ainda a importância de as mulheres estarem “sensibilizadas” para esta questão e atentas ao que se passa com o companheiro para, caso ele se sinta emocionalmente mais frágil, incentivá-lo a pedir ajuda.
Até porque a depressão pós-parto não é algo que desapareça com o tempo. É algo que só tem tendência a “agravar-se ou a transformar-se num quadro de doença somática”. Já para não falar nas consequências que uma depressão pós-parto pode ter na relação do casal e no relacionamento pai-filho. Maria de Jesus Correia refere que o facto de um pai não estar bem, pode “contaminar as relações” e levá-lo a ser mais “agressivo” ou a ter “menos paciência para o bebé” e, consequentemente, prejudicar a “forma como se relaciona” com o filho.
Gustavo Pedrosa explica que, uma vez que muitas vezes não é feito o diagnóstico de depressão pós-parto, os casais que lhe chegam ao consultório já estão a “gerir as consequências” desta situação, seja o início de um divórcio ou uma má relação com o filho.
“É uma situação que pode marcar profundamente o casal e, por vezes, é impossível dar a volta. Mesmo identificando a depressão pós-parto anos mais tarde, é muito difícil voltar atrás, porque a mágoa no casal e a falta de partilha é tanta e os sintomas da depressão estão tão entranhados porque não foram tratados”, afirma o terapeuta familiar.
Vários estudos falam das consequências de uma depressão pós-parto nos homens para o desenvolvimento dos filhos. De acordo com a investigação publicada no Journal of Neuroscience Research, a maneira como uma criança é criada pode influenciar o seu desenvolvimento mental e comportamental, daí ser tão importante ter pais emocionalmente estáveis.
A interação entre pai e filho, especificamente, pode ser crucial no desenvolvimento da criança a nível biopsicológico, nomeadamente na sua capacidade de resposta ao stress, sendo que o risco de a criança desenvolver problemas a nível emocional e comportamental aumenta, devido aos comportamentos menos positivos ou até negativos do pai com depressão.
Um outro estudo publicado na revista Lancet, em 2005, comprovou que a depressão pós-parto nos homens estava relacionada com um aumento do risco de a criança desenvolver problemas a nível do comportamento a partir dos três anos.
Há ainda uma forte ligação entre os pais que apresentem sintomas de depressão pós-parto e crianças que desenvolvam problemas do foro psiquiátrico, em particular no que toca a comportamentos desafiantes e de má conduta. Uma outra investigação, publicada em 2008, refere que 12% das crianças com pais deprimidos desenvolveram problemas psiquiátricos enquanto que apenas 6% daquelas que não tiveram pais com depressão pós-parto desenvolveram os mesmos problemas.
É por isso essencial que a depressão pós-parto seja diagnosticada rapidamente para depois se proceder ao tratamento mais adequado. “O grande risco da depressão é as pessoas subvalorizarem e não pedirem ajuda atempada. É fundamental que se perceba que, numa situação de depressão, o sucesso terapêutico inclui a complementaridade de um fármaco anti-depressivo e de uma psicoterapia”, sublinha a psicóloga da MAC, Maria de Jesus Correia.
*Os nomes são fictícios