Na última sexta-feira antes do “Dia da Liberdade” em Inglaterra, o Reino Unido anunciou ter registado quase 52 mil novos casos, algo que não acontecia desde meados de janeiro — mas as previsões para o mês de agosto apontam para um cenário bem pior, a chegar aos 100 mil casos diários. Esta segunda-feira, dia 19 de julho, o “Dia da Liberdade” (#freedomday) representa a última etapa do desconfinamento, mas só em Inglaterra, porque Escócia, Irlanda do Norte e País de Gales não vão relaxar totalmente as medidas para já. O governo inglês considera que esta é a altura de desconfinar, mas alguns especialistas britânicos e internacionais receiam o impacto que este alívio das medidas pode ter nos mais jovens e no resto do mundo.
No início de julho, antes da decisão anunciada, Boris Johnson já se mostrava confiante, dizendo que era cada vez mais claro que o programa de vacinação tinha “quebrado a ligação entre a infeção e a mortalidade”, conforme citou a BBC. Mas há especialistas que alertam que esta ligação não foi quebrada, apenas enfraquecida, o aumento no número de infeções continuará a causar um aumento no número de internamentos e mortes, ainda que em menor número do que no início do ano.
“A ligação entre infeção e morte pode ter sido enfraquecida, mas não foi quebrada, e a infeção ainda pode causar uma morbilidade substancial tanto na doença aguda quanto na de longa duração”, escreveram os especialistas num artigo publicado na revista científica The Lancet, a 7 de julho, que entretanto já foi subscrito por mais de 1.200 cientistas.
Ao mesmo tempo que anunciava o levantar das medidas restritivas impostas pela pandemia de Covid-19, o primeiro-ministro britânico alertava que o vírus ainda não tinha desaparecido e que era preciso ter uma abordagem cautelosa. A diferença é que esta abordagem cautelosa vai deixar de estar nas mãos do governo e passar a estar nas escolhas de cada um.
O que muda a partir desta segunda-feira em Inglaterra?
Não há limites para o número de pessoas num espaço
O levantamento das medidas de restrição implica que todos os espaços podem voltar a abrir sem limite de pessoas por área disponível, incluindo restaurantes e bares, eventos desportivos e culturais, casamentos e outras festas em espaços fechados, assim como os locais de culto.
Os espaços de diversão noturna, e outros locais onde se juntem muitas pessoas, são “encorajados” pelo governo a pedir certificados digitais (de vacinação, recuperação ou diagnóstico) aos clientes, mas alguns proprietários já disseram estar contra a medida por considerarem uma forma de discriminação dos mais novos que ainda não tiveram acesso à vacina, noticiou a BBC.
O que antes era norma, agora passa a ser uma recomendação, como o uso de máscara quando há muitas pessoas num espaço. O governo deixa apenas em aberto a possibilidade de vir a impor certificados digitais no acesso a determinados espaços, no futuro e se necessário.
NEW: Former Australian health secretary @stephenjduckett:
"There is no reputable public health adviser of any kind who would recommend opening up at a time when the virus is spreading rapidly. It just defies any logic, any science of any kind."#FreedomDayUK pic.twitter.com/33cQzKnEdh
— The Citizens (@allthecitizens) July 16, 2021
Teletrabalho deixa de ser incentivado
O governo britânico vai deixar de apelar a que as pessoas se mantenham em teletrabalho sempre que possível, como vinha fazendo até agora, mas admite manter a expectativa de que as pessoas vão regressando ao trabalho gradualmente durante o verão.
Restaurantes não são obrigados a impor o uso de máscara
Mesmo que o uso de máscaras deixe de ser obrigatório em todos os espaços, por ordem do governo, e passe a ser uma escolha pessoal, como indicou o primeiro-ministro Boris Johnson, há alguns espaços de hotelaria e restauração que planeiam manter a obrigatoriedade de máscara, noticiou o jornal The Guardian.
Os sindicatos estão preocupados com a segurança dos funcionários destes espaços. Por um lado, os ajuntamentos de pessoas sem máscaras, a circulação sem restrições e a possibilidade de os clientes levarem produtos em take-away, pode aumentar o risco de os funcionários serem infetados, sobretudo os mais novos que ainda não estão vacinados. Por outro lado, os clientes podem reagir contra os empregados se lhes for dito que em determinado espaço se mantêm as regras que o governo deixou cair.
“Os empregadores mantém o dever legal de gerir os riscos para as pessoas afetadas pelo seus negócios”, lê-se na recomendação do governo. Ou seja, cada espaço deverá fazer a sua própria avaliação de risco e definir as medidas de mitigação que considere apropriadas.
Os empresários não são especialistas em saúde pública e não se pode esperar que saibam qual a melhor forma de agir quando há conselhos confusos e, às vezes, contraditórios a vir de fontes oficiais”, contesta Claire Walker, co-diretora executiva da Câmara do Comércio britânica, citada pela BBC.
Uso de máscara deixa de ser obrigatório em todos os espaços públicos
Esta é uma das medidas de prevenção de que muitos locais não estão dispostos a abdicar, nomeadamente os hospitais e os transportes públicos. Alguns presidentes de câmara, nomeadamente em Great Manchester e Londres, preparam-se mesmo para se sobrepor à ordem do governo e aconselhar vivamente que as pessoas mantenham o uso de máscara nos transportes públicos, segundo o The Observer. Na orientação do governo fica apenas a “expectativa e recomendação que as pessoas usem máscaras faciais nos locais sobrelotados, como os transportes públicos”.
Nos hospitais cresce a preocupação que utentes e profissionais sejam infetados nos estabelecimentos de saúde, que isso diminua a quantidade de pessoal disponível e que se atrasem ainda mais as atividades de saúde não relacionadas com a Covid-19. Se, com a obrigatoriedade do uso da máscara, já era difícil impor a medida a certas pessoas, agora será ainda mais difícil, lamentou Sarah-Jane Marsh, diretora do hospital de Birmingham para mulheres e crianças, citada pelo jornal The Guardian.
Tom Wingfield, consultor da Faculdade de Medicina Tropical de Liverpool, vai mais longe e defende o uso de máscara não só para prevenir a transmissão de SARS-CoV-2, mas também para reduzir a transmissão de outros vírus respiratórios. “Usar máscara facial por rotina vai ser uma medida fundamental de saúde pública à medida que nos aproximamos de um longo e difícil inverno para o NHS [Serviço Nacional de Saúde], durante o qual vamos enfrentar a ameaça de taxas crescentes de pessoas internadas nos hospitais, sobretudo os mais vulneráveis, seja com Covid-19 ou com outras doenças respiratórias sazonais.”
As companhias aéreas easyJet e a Ryanair também já avisaram que vão manter as regras das autoridades de saúde europeias, nomeadamente o uso de máscara, independentemente das alterações feitas em Inglaterra.
Isolamento deixa de ser obrigatório para algumas pessoas
O isolamento profilático de pessoas que sejam contactos de risco, e que tenham recomendação das autoridades de saúde para o fazerem, vai manter-se até dia 16 de agosto, mas a partir daí deixa de ser obrigatório para as pessoas que tenham completado o esquema vacinal ou que tenham menos de 18 anos, noticiou a BBC. Caso diferente para as pessoas que tenham um teste positivo — essas terão de ficar em isolamento.
Os contactos de risco que estejam totalmente vacinados ou tenham menos de 18 anos devem, no entanto, fazer um teste PCR. Todas as pessoas podem ainda fazer regularmente (duas vezes por semana) testes de diagnóstico gratuitamente.
O anúncio desta medida de alívio surge depois de mais de meio milhão de pessoas ter recebido um alerta de isolamento profilático na primeira semana de julho em Inglaterra e no País de Gales — um crescimento de 46% em relação à semana anterior — e muitos negócios estarem a queixar-se de falta de pessoal, obrigados ao isolamento mesmo estando vacinados e com teste negativo.
Este alerta, enviado por uma aplicação do NHS, notifica as pessoas que tiveram um contacto de risco — mais de 15 minutos a menos de dois metros — e que terão de ficar 10 dias de quarentena. O jornal The Telegraph reportou, no entanto, que a aplicação, que funciona por Bluetooth, é demasiado sensível. O jornal cita situações de pessoas que receberam as notificações sem terem estado em contacto com ninguém infetado e que o sinal terá atravessado a parede a partir da casa de um vizinho infetado.
Não haverá imposição de distanciamento social
A partir desta segunda-feira deixará de haver limite para quantas pessoas podem estar juntas a conviver, assim como termina a imposição de que as pessoas tenham de estar a dois metros de distância das outras, quando não pertencem ao mesmo agregado familiar. Mas o governo deixa um alerta de “vão com calma”.
“Para minimizar o risco num momento de alta prevalência [das infeções], deve limitar-se o contato próximo com aqueles com quem normalmente não se convive e aumentar o contato próximo gradualmente. Isso inclui minimizar o número, a proximidade e a duração dos contatos sociais”, lê-se nas recomendações do governo britânico.
Que riscos corre Inglaterra e o resto do mundo com o fim das medidas?
Mesmo antes do “Dia da Liberdade”, o número de novas infeções e internamentos já estava a aumentar no Reino Unido e as previsões são de que assim continue, pelo menos, até ao final do verão. Alguns especialistas defendem que abrir tudo sem restrições antes de ter todos os adultos vacinados vai colocar uma enorme pressão sobre os mais jovens, que podem não ter doença tão grave mas que não estão livres de sequelas e complicações depois da infeção com SARS-CoV-2. Além disso, a pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde britânico vai naturalmente aumentar.
Um terço de jovens hospitalizados teve complicações pós-alta, diz estudo
A Bloomberg destaca que, apesar de o Reino Unido ter sido dos primeiros países a iniciar a vacinação, só recentemente os mais jovens começaram a ser vacinados. E, com um esquema de oito semanas de intervalo, muitos só vão conseguir tomar a segunda dose já depois do verão. Neste momento, apenas 16,2% das pessoas entre os 18 e 24 anos e 20,4% das pessoas entre os 25 e os 29 anos estão totalmente vacinadas, refere a Bloomberg.
Especialistas ouvidos pela Nature News receiam que a estratégia inglesa vise conseguir a imunidade de grupo misturando a vacinação dos mais velhos com a infeção natural dos mais novos — incluindo crianças —, algo que veem como sem precedentes e perigoso. William Hanage, investigador na Faculdade Harvard T. H. Chan de Saúde Pública, em Boston, lembra que já não é a primeira vez que o governo britânico tenta alcançar a imunidade de grupo para este vírus deixando a transmissão ocorrer livremente.
Mike Ryan, diretor executivo do Programa de Emergências de Saúde da Organização Mundial de Saúde, disse que a pressa para abrir a economia, aceitando como inevitáveis as infeções e até encorajando a que acontecessem “mais cedo do que tarde”, equivale a um “vazio moral e de estupidez epidemiológica”.
NEW: "I believe the strategy of herd immunity is actually murderous.
"I think that's a word we should use…you are doing something that will result in thousands, and in some cases tens of thousands of people dying."
Professor @WmHaseltine of the USA on UK govt's policy pic.twitter.com/oIh71HFsm9
— The Citizens (@allthecitizens) July 16, 2021
Deixar que a infeção corra livremente entre crianças e jovens, que não têm acesso a vacinação e que, em breve, vão deixar de ficar em isolamento profilático, causará graves problemas na educação das crianças, sobretudo nas mais vulneráveis, defendem os autores da carta publicada na The Lancet. “Permitir que a transmissão continue durante o verão criará um reservatório de infeção, que provavelmente irá acelerar a propagação quando as escolas e universidades reabrirem no outono.”
Mas o perigo de uma transmissão fora de controlo não se esgota dentro de fronteiras. Quanto mais pessoas forem infetadas, incluindo pessoas que já tenham sido vacinadas, maior a probabilidade de surgir uma variante (ou mais) que tenha mais habilidade para escapar aos anticorpos ou para infetar as nossas células. E isso será um problema não só para Inglaterra como para o resto do mundo, como já vimos acontecer com a variante Alpha e Delta. O tempo que demorará a vacinar o resto da população não se compara com o tempo muito superior que pode demorar a criar uma nova versão de uma vacina para combater variantes mais resistentes.
Toda a experiência que temos com vírus mostra que se os deixarmos replicar numa população parcialmente imunizada, iremos [criar condições] para a seleção de variantes capazes de se escapar à ação das vacinas”, disse o virologista Richard Tedder do Imperial College de Londres.
Christina Pagel, diretora da unidade de pesquisa operacional clínica da University College London, lembra que o Reino Unido tem uma posição central nas viagens em termos globais. “Qualquer variante que se torne dominante no Reino Unido provavelmente vai-se espalhar pelo resto do mundo”, disse, citada pelo The Guardian. Como agravante, o Reino Unido serve de modelo para as decisões de muitos países que podem assim ver carta branca para relaxarem as medidas cedo demais.
Havia alternativa a este levantar de todas as medidas?
“Se não levantarmos as restrições agora, quando vamos fazê-lo?”, pergunta Mark Woolhouse, professor de Epidemiologia de Doenças Infecciosas na Universidade de Edimburgo, em reação ao anúncio feito pelo governo britânico. “O governo considera que, para Inglaterra, os benefícios de levantar as restrições ultrapassam os riscos. O governo reconhece que há riscos, mas o que precisamos perceber é que haverá riscos em qualquer altura em que as restrições sejam levantadas”, disse no dia 12 de julho.
Mas a reação deste professor de Epidemiologia não é consensual. “Conforme estabelecido numa carta conjunta [à revista científica] The Lancet, que desde então já recebeu o apoio de mais de mil signatários — cientistas, profissionais de saúde e outros —, o relaxamento das medidas planeado para o ‘dia da liberdade’ são uma aposta perigosa, irresponsável e experimental que representa uma ameaça muito real de danos desnecessários para o público britânico”, comentou Stephen Griffin, professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Leeds.
O documento em que se baseou o governo britânico para tomar a decisão refere logo no primeiro ponto que os internamentos vão aumentar depois de dia 19, mas que é impossível prever quanto, uma vez que isso depende do comportamento das pessoas. Os autores do documento consideram que “o pico dos internamentos estará muito abaixo do que aconteceu em janeiro de 2021”, mas também “não descartam que ocorra uma onda tão grande ou maior” do que se assistiu no início do ano. “A prevalência da infeção vai certamente manter-se extremamente alta, pelo menos, durante o resto do verão”, ainda que não se espere que o pico no número de mortes seja tão alto como em janeiro, refere o relatório.
Vários investigadores criticam a visão de “tudo ou nada” assumida pelo governo, defendendo que se podiam levantar algumas medidas agora e outras mais tarde. Até porque os modelos mostram que “um aumento rápido nos contactos [entre pessoas] pode resultar no pior cenário possível, com um pico maior nos internamentos e mais mortes do que nos cenários em que o aumento dos contactos acontece de forma mais gradual”, lembrou Azra Ghani, coordenador da Epidemiologia de Doenças Infecciosas na Imperial College de Londres. “Com uma abordagem mais gradual podíamos manter a transmissão em níveis mais baixos até todos os adultos terem tido a possibilidade de tomar ambas as doses da vacina.”
Os jovens estão preocupados com o fim súbito das restrições, especialmente enquanto não estão protegidos pelas vacinas, referiu a Bloomberg. Mais de metade dos cerca de mil jovens (entre os 16 e os 24 anos) inquiridos num estudo citado pela Bloomberg pondera continuar a usar máscaras nas lojas, restaurantes e transportes públicos depois de dia 19.
Esta perspetiva é acompanhada pela população adulta no Reino Unido. Um inquérito conduzido pelo The Observer a dois mil adultos, nos dias 8 e 9 de julho, mostrou que 65% continuaria a usar máscara nos supermercados e em outras lojas, que 54% usaria nos transportes públicos e que, mesmo nos restaurantes e bares, havia mais pessoas a pensar usar — 46 e 43%, respetivamente — do que a ponderar não usar — 30 e 27%.