“Eu e Celeste entramos com um balde: eu me lembro bem do balde porque tinha munição. As armas, nós enrolamos em um cobertor. Levamos tudo para a pensão e colocamos em baixo da cama. Era tanta coisa que a cama ficava alta. Era uma dificuldade para nós duas dormirmos ali. Muito desconfortável. Os fuzis automáticos leves, que tinham sobrado para nós, estavam todos lá. Tinha metralhadora, tinha bomba plástica”. Dilma Rousseff, 66 anos, não fala muito sobre o período de tempo em que fez frente à ditadura militar brasileira. Sabe-se que o seu nome de guerra era Estela, que aprendeu a disparar e que, juntamente com o ex-marido, Carlos Araújo, roubou 2,5 milhões de dólares da casa da amante de um ex-governador de São Paulo. Depois disso, foi presa, passando três anos sujeita a tortura, que incluiu choques elétricos.
“Ao falar disto hoje, não parece a mesma pessoa”, disse em 2003 à Folha de S. Paulo a primeira mulher presidente do Brasil. A mesma que no domingo, dia 5 de outubro, espera garantir um segundo mandato à frente da presidência do Brasil. Desta vez, sem o momentum que Lula criou, em 2010, quando escolheu Dilma. Desta vez, com a bagagem acumulada durante quatro anos e que, mais recentemente, incluem os grandiosos protestos de maio e junho contra a Copa e o escândalo que envolve a Petrobras, a empresa de petróleo controlada pelo Estado que comprou uma empresa privada do Texas por um preço acima do que seria normal. Rousseff era, na altura, presidente do Conselho de Administração do gigante petrolífero e a oposição tem dúvidas sobre o envolvimento da ainda Presidente durante esse negócio. Segundo a Datafolha, 39% dos brasileiros aprovam o seu Governo. Mas poucos acreditarão que Dilma consiga ser eleita na primeira volta deste domingo. As últimas sondagens indicam que Rousseff vai à frente com 40% dos votos, o que, a confirmar-se, a empurrará para uma segunda ronda. Falta saber com quem irá disputar o lugar. Marina Silva, do PSB, surge com 24% das intenções de voto e Aécio Neves (PSDB) aparece com 21%.
Mas quem é, afinal, Dilma? A guerrilheira? A tecnocrata que antes de 2010 nunca tinha feito campanha? A mulher em quem Lula confiava e a quem entregou o Brasil? A intelectual que um dia foi peregrina à casa de Marcel Proust?
A burguesa radicalizada
Dilma Vana Rousseff nasceu a 14 de dezembro de 1947, a segunda filha do segundo casamento de Petar Russev, um imigrante comunista búlgaro que deixou a Europa nos anos 30 do século XX, mudou o nome para Pedro Rousseff e que tornou-se um homem de negócios bem-sucedido. Pedro casou com Dilma Jane Coimbra Silva e da união nasceram três filhos, criados num ambiente de alguma riqueza e onde os livros abundavam. Em casa dos Rousseff, havia três empregadas.
Em 1964, durante o golpe militar que impôs a ditadura militar brasileira, Dilma estudava na universidade e sentiu o apelo dos grupos radicais. Com 19 anos entrou para a Polop (Política Operária) e depois para o Colina (Comando de Libertação Nacional). No final dessa década, casou com Cláudio Galeno Linhares, uma união que não durou muito, mas que foi intensa. O casal esteve envolvido na luta contra a ditadura, viveu na clandestinidade, guardou e transportou armamento e dinheiro roubado, planeou e executou momentos de luta. Dilma Rousseff garante que nunca participou em atos violentos durante o período de militância. Quando deixou Galeno, juntou-se a outro militante, Carlos Araújo, com quem viveu durante 25 anos e de quem teve uma filha, Paula.
Após o roubo de dinheiro à amante do ex-governador de São Paulo, Dilma é presa, em 1970. Três anos depois, é libertada e decide estudar Economia, fazendo também um curso de teatro. No final dos anos 70, envolve-se na criação do Partido Democrático Trabalhista, em Porto Alegre. Nos anos 80, desempenha vários cargos governamentais, chegando a secretária da Energia no governo federal do Rio Grande do Sul, onde consegue livrar o Estado do apagão geral que se fez sentir por todo o país no final do mandato de Fernando Henrique Cardoso (FHC). É aí que conhece Lula. Mais tarde, quando este se torna Presidente, Dilma será a sua ministra de Minas e Energia.
“Lula acredita. Dilma compreende”
Em 2005, rebenta o caso “Mensalão” (que expôs o escândalo de corrupção política em que os deputados do PT compravam o voto dos restantes deputados) e no centro do furacão está José Dirceu, chefe da Casa Civil de Lula. Dirceu foi afastado, Dilma foi convidada para o seu lugar e aí conquistou a confiança de Lula. As diferenças entre os dois tornaram-se complementares. Como escrevia a New Yorker, em 2011, no final do primeiro ano de mandato da nova Presidente, se Lula não prestava atenção aos pormenores, Rousseff conhecia sempre todos os pormenores. Se tudo em Lula gritava política, Dilma era exímia com as políticas. Lula sonhava, Dilma fazia. Paulo Sotero, do Instituto Brasileiro no Woodrow Wilson Center for Scholars, citado pela mesma revista, resume desta forma a relação entre os dois: “Lula acredita. Dilma compreende”.
Lula, o metalúrgico sindicalista que é um símbolo do Brasil e que fala diretamente para o povo, deixou a presidência com mais de 80% de popularidade. E apontou Dilma, a burguesa intelectual que ouve ópera, para lhe suceder. Foi por causa do apoio de Lula que Dilma, a quem todos apontavam não ter o carisma do anterior Presidente e ser inexperiente em termos de campanhas políticas, se tornou a primeira mulher Presidente do Brasil. Mas nem este apoio foi suficiente para que conseguisse ser eleita à primeira. Marina Silva trocou-lhe as voltas e Dilma não conseguiu 50% dos votos na primeira chamada às urnas. Quatro anos depois, a história parece repetir-se.
Quando foi eleita, herdou o legado de Lula e de Fernando Henrique Cardoso e todos esperaram que continuasse os méritos destes, aumentando o crescimento económico e diminuindo a desigualdade do país. Mas se os seus antecessores governaram um Brasil pobre, que, graças aos apoios estatais como a Bolsa Família, começou a sair da pobreza, o Brasil de Dilma é outro. É o Brasil da classe média baixa, que já não se contenta com políticas que lutem contra a fome, a pobreza e a doença. É um Brasil que quer mais: mais serviços, melhores escolas e infraestruturas, menos corrupção na política.
A Dama de Ferro do Brasil
E Dilma deu passos nesse sentido. Para começar, reatou laços com Fernando Henrique Cardoso, inimigo de Lula desde os anos 70, adversário deste nas duas campanhas presidenciais em que concorreu. Quando Obama visitou Brasília em março de 2012, Dilma convidou os dois ex-Presidentes para o almoço oficial, mas só Fernando Henrique pôde comparecer. Meses depois, no aniversário deste, Dilma escreveu uma elogiosa carta pública para o congratular. Segundo a New Yorker, honrar Fernando Henrique Cardoso significou uma mensagem importante para a classe bancária e económica brasileira, que idolatra o antigo Presidente.
Na política externa, Rousseff afastou-se de Lula, que forjou amizade com muitos chefes de Estado anti-Ocidente. Aproximou-se de Chávez, de Castro, de Khadafi, de Bashar al-Assad e de Ahmadinejad. Dilma, vítima de tortura nos anos 70, não se sente confortável com governos que torturam, tendo declarado que isso iria influenciar a relação do Brasil com o Irão, por exemplo.
A sua postura relativamente aos casos de corrupção – demitiu vários ministros por suspeitas de serem corruptos, repetiu diversas vezes que não tolera esse tipo de comportamentos – e o mau feitio de que é acusada já lhe valeram o título de Dama de Ferro.
Mas muitos consideram que a economia é o ponto fraco de Dilma. Desde 2011, o Brasil tem crescido apenas 1,8% ao ano, com a inflação a rondar os 6%. Segundo a revista Forbes, as filas de investidores que se apressavam para comprar um pedaço do sonho brasileiro começaram a virar-se para outros mercados, como o mexicano. A economia brasileira entrou recentemente em recessão técnica e a inflação está a aumentar. Mesmo que seja reeleita, Dilma Rousseff não terá à sua frente um Brasil pujante, como o que herdou em 2011. Quatro anos depois, o que existe é um Brasil hesitante, em cujo horizonte começam a adensar-se algumas nuvens.